A
ameaça do contágio
JORGE ALMEIDA
FERNANDES
13/11/2016 – 06:17
A vitória de Donald
Trump vai repercutir-se na cena política europeia. Esquerdas e
direitas deverão “imaginar o inimaginável”, como ver Marine Le
Pen vencer as presidenciais francesas ou Beppe Grillo dominar a
política italiana. Se o querem evitar deverão mudar de vida desde
já.
A vitória de Donald
Trump, um “super-Brexit” a seguir à surpresa do “Brexit”,
significa que os europeus devem aprender a imaginar o inimaginável
sob pena de despertarem tarde. No curto prazo, isto resume-se em duas
perguntas. Estamos preparados para assimilar uma vitória de Marine
Le Pen nas presidenciais francesas de 2017? Estamos preparados para
enfrentar uma Itália em desmoronamento e governada pelo Movimento 5
Estrelas (M5S) de Beppe Grillo?
É improvável que
tal aconteça? Sim, é muito improvável. Mas será mais improvável
do que a vitória de Trump parecia há um ano — para não dizer há
dias atrás?
As eleições
americanas tiveram uma ressonância mundial por se tratar de um
brutal choque vindo da mais influente potência mundial, o que cria
um universal clima de incerteza. Os dirigentes europeus foram
apanhados de surpresa. Reconheceu Paolo Gentiloni, ministro dos
Negócios Estrangeiros italiano: “Foi uma surpresa que mudará as
coisas no mundo. [Aquela noite] será recordada como histórica.”
Mais incisivo foi um tweet de Gérard Araud, embaixador francês em
Washington: “Um mundo que se desmorona debaixo dos nossos olhos.”
Tweet do embaixador
francês em Washington: “Um mundo que se desmorona debaixo dos
nossos olhos.”
Não me ocupo aqui
dos efeitos estratégicos e económicos, que serão seguramente muito
pesados, talvez dramáticos, mas que dizem respeito a outra ordem de
problemas. De resto, muitos crêem que as eleições americanas
marcam o fim de uma era e a entrada em terra incognita da qual nos
faltam mapas. Depois de ter imaginado em 1989 a vitória definitiva
da democracia liberal, o politólogo americano Francis Fukuyama vê
agora, com o triunfo de Trump, o Ocidente a ser de novo resenhado, a
partir da América, por populismos nacionalistas. Podemos suspeitar
de que será um daqueles acontecimentos com enorme potencial de
contágio sobre a Europa. A influência dos modelos, modas e
fenómenos vindos da América é uma constante histórica. Não foi o
“trumpismo” que inspirou as insurreições populistas que há
muito grassam na Europa. Mas entra agora em cena.
A primeira pergunta
deste texto diz respeito ao efeito de estímulo que a consagração
do populismo na América previsivelmente terá sobre o quadro
político europeu. Há um terreno em que esse impacto parece
imediatamente evidente: a imigração e a crise dos refugiados.
Le Pen e Beppe
Grillo
Haverá no próximo
ano eleições em vários países, designadamente na França,
Alemanha, Holanda e, provavelmente, na Itália. Haverá, já em
Dezembro, a repetição das eleições presidenciais na Áustria, em
que é favorito Norbert Hofer, candidato da extrema-direita.
Centremo-nos em Paris e Roma, onde podem ocorrer “terramotos”.
Na França, a Frente
Nacional (FN), de Marine Le Pen, estará quase inevitavelmente
presente na segunda volta das presidenciais de 2017. É o que
registam as sondagens, o que dizem os politólogos e pensam os
políticos. É um terreno pantanoso. A esquerda e o centro-esquerda
estão balcanizados, desmoralizados e sem projecto. O centro-direita
está partido entre duas linhas distintas, uma assumida por Alain
Juppé e que crê que uma recuperação económica susterá o avanço
da FN, a outra protagonizada por Nicolas Sarkozy e que aposta em
“roubar” os temas nacionalistas e identitários à FN, para
esvaziar as suas reservas eleitorais, repetindo o que fez em 2007.
Não foi o
'trumpismo' que inspirou as insurreições populistas que há muito
grassam na Europa. Mas entra agora em cena.
Marine Le Pen sabe
que tem demasiados anticorpos. Por isso recebe a vitória de Donald
Trump como uma benesse. É a prova da potência dos temas
identitários, anti-elite e anti-imigração nas democracias
ocidentais. Anota um jornalista francês: “As temáticas
identitárias e a defesa do proteccionismo económico, já dopadas
pelos efeitos combinados da crise migratória e da ameaça
terrorista, anunciam-se mais dominantes do que nunca na corrida ao
Eliseu.”
Na França, a Frente
Nacional (FN), de Marine Le Pen, estará quase inevitavelmente
presente na segunda volta das presidenciais de 2017
A FN sabe que tem um
“tecto de vidro”, um limite invisível que não consegue
ultrapassar. Com o sistema maioritário e não dispondo de aliados,
não pode fazer acordos de desistência na segunda volta das
legislativas, o que a mantém praticamente fora do Parlamento e com
representações locais muito baixas em relação ao seu voto. As
presidenciais são o terreno mais favorável. A simples passagem à
segunda volta ameaça fazer explodir o quadro político francês,
pois provocará o descalabro do partido que ficar de fora, seja o
Partido Socialista, seja os Republicanos.
O secretário-geral
do PS, Jean-Christophe Cambadélis, tem evocado a possibilidade de
vitória de Marine Le Pen como arma para mobilizar o partido. Está
agora perante um quadro mais ameaçador. Marine aposta em que a
vitória de Trump radicalize o novo clima mental europeu —
imigração, proteccionismo, nacionalismo, enfim, a soberania
nacional contra a UE e os constrangimentos da globalização. E que
ajude a tornar mais “aceitáveis” as suas ideias. Poderá imitar
Trump e dizer abertamente o que está implícito no seu programa: “A
França para os franceses.” Que se passará dentro de seis meses?
Na Itália, o quadro
é diverso. Está marcado para 4 de Dezembro um referendo sobre a
revisão constitucional. A reforma foi aprovada pelo Parlamento no
fim de 2015, numa altura em que o primeiro-ministro, Matteo Renzi,
gozava de enorme popularidade. Renzi cometeu o erro de personalizar a
consulta popular e associar o seu destino político à vitória do
“sim”: “Se perder vou para casa.”
A imprensa —
italiana e internacional — encara a vitória de Trump como um
extraordinário impulso para os populistas que lideram a campanha do
“não”, o M5S e a Liga Norte, de Matteo Salvini (extrema-direita)
e como um grave problema para Renzi, que tenta desesperadamente
salvar o “sim”, em minoria nas sondagens (52-48%).
Entretanto, Beppe
Grillo tornou-se num ardente adepto de Trump, com quem partilha, além
dos temas, o desbragamento na linguagem. Celebrou assim a sua
eleição: “É uma loucura. Isto é a deflagração de uma época.
É o apocalipse da informação, das TVs, dos grandes jornais, dos
intelectuais e dos jornalistas. Isto é um vaffanculo (f...) geral.”
Renzi está numa
posição muito difícil. Se perder o referendo, demitir-se-á, o
Partido Democrático entrará em ebulição e, se houver eleições
antecipadas, o movimento de Grillo tem sérias hipóteses de as
vencer, dentro da nova lógica que domina a política italiana:
“Todos contra Renzi”. O M5S, que ainda não é um verdadeiro
partido, só tem programa negativo: antipolítico, anticasta,
antiglobalização, anti-euro, anti-imigração.
Um boomegrang Trump?
Os dirigentes
europeus não podem negar o problema. Diz um jornalista francês que
já não podem fechar os olhos. “Apanhados entre a pulsão
autoritária e niilista, de um lado, e o fanatismo jihadista do
outro, temos de escutar a cólera e o ódio que crescem. Os cidadãos
são pirómanos com uma caixa de fósforos num armazém de dinamite.”
O comissário
europeu Pierre Moscovici já tirou algumas conclusões pensando no
próximo ciclo eleitoral: “Esta eleição [de Trump] foi possível
porque muitas pessoas sentiram que foram deixadas de lado na
globalização. (...) A questão da desigualdade tem de voltar ao
topo das prioridades.” Outro problema é a “distância entre as
elites e os cidadãos”. Trata-se de evitar que a “próxima
catástrofe aconteça na Itália, na França, na Alemanha ou em
qualquer outro país. Não quero Marine Le Pen em França.” Por
enquanto trata-se de boas palavras. Faltam os actos.
Esta eleição [de
Trump] foi possível porque muitas pessoas sentiram que foram
deixadas de lado na globalização. (...) A questão da desigualdade
tem de voltar ao topo das prioridades.”
Pierre Moscovici,
comissário europeu
O politólogo
holandês Cas Mudde, especialista em extrema-direita europeia, faz
uma análise sofisticada e realista ao relativizar o impacto do
“trumpismo” tendo em conta o factor tempo. Num artigo no The
Guardian (9 de Novembro), começa por sublinhar o evidente papel de
estímulo de Trump sobre os populistas europeus: ajuda-os a serem
“aceites no mainstream político” e favorece uma viragem à
direita perante a “crise dos refugiados”.
Mas prossegue: “A
questão chave dos próximos anos vai ser [o modo] como Trump
governe.” A sua base política é frágil e contraditória, sendo
previsível que subam as tensões entre ele e o Partido Republicano.
E conclui: “Enquanto a vitória de Trump pode fortalecer o já
considerável ímpeto da extrema-direita europeia nos próximos
meses, ela pode voltar mais tarde para a assombrar. O previsível
caos da presidência Trump pode levar a uma ressaca popular contra a
extrema-direita.” Esta deveria ser mais prudente na celebração de
Trump — aconselha Mudde.
O negócio do medo
Há outro aspecto
importante. O negócio dos dirigentes populistas é explorar os medos
populares, uns reais outros imaginários, condensando-os numa
“insurreição” como soube fazer Trump. Escreveu um jornalista:
“Não ataquem os eleitores de Trump. São humanos. Têm medo.” O
medo é uma das mais potentes e perigosas paixões humanas, mais
poderosa do que o próprio ódio.
As duas tentações
das elites dirigentes tem sido associar mecanicamente o populismo à
economia ou reagir com cenários catastróficos. A paixão populista
não se reduz aos “perdedores da globalização”, exprime-se e é
potenciada por sentimentos: a insegurança, o medo do futuro, a
erosão dos valores tradicionais, o medo ou o desprezo pelo “outro”
(xenofobia e racismo), a rejeição das elites que os esquecem e os
não escutam. Não podemos esquecer que, contra o que se anunciava,
Trump recebeu um grande número de votos de cidadãos com curso
superior, que não são de forma alguma “perdedores da
globalização” mas que terão sido seduzidos pelo seu
nacionalismo, político e económico.
As reacções
catastrofistas empolam a força do populismo e da extrema-direita,
incitam à passividade, a uma atitude defensiva e à ruptura das
pontes com o “povo populista”. A desintoxicação dos medos é
uma prioridade política europeia. Observam também os analistas que
a “fúria popular” não é necessariamente espontânea mas
construída por uma elite política que a incentiva, tarefa em que
Trump foi “genial”.
Não ataquem os
eleitores de Trump. São humanos. Têm medo”, escreveu um
jornalista. O medo é uma das mais potentes e perigosas paixões
humanas, mais poderosa do que o próprio ódio.
Pablo Iglesias,
líder do Podemos e que ao contrário de Trump fala a partir de uma
visão de extrema-esquerda, fez há dias uma observação
interessante sobre as dinâmicas do protesto. Falava no contexto da
luta interna no seu partido, que aqui não interessa, para justificar
uma nova viragem na sua linha política. Depois de ter entrado em
cena em 2014 com teses radicais, vestiu a pele da social-democracia
sueca e deverá agora de novo assumir uma atitude ultra-radical.
Porquê?
“O que funciona
hoje na Europa são os discursos beligerantes [e
anti-institucionais]. Os que soam hard, duro. O espaço em que se
abre uma fenda tem a ver com os anos trinta. (...) Perceberam-nos
como mentirosos ao dizer que éramos sociais-democratas. (...) O
Podemos aspira a mudar a sociedade, não a representá-la.” No
caso de Iglesias, isto quer dizer: para sermos escutados e termos
mais votos devemos radicalizar o protesto, estar dentro das
instituições e, ao mesmo tempo, combatê-las na rua.
A vitória de Trump
ocorreu na noite de 8 para 9 de Novembro, no 27.º aniversário da
noite da queda do Muro de Berlim. A ironia da História está em que,
desta vez, é um Presidente-eleito americano que se propõe construir
outro “muro”, na fronteira do México.
Imigração e crise
dos refugiados será terreno onde terá maior impacto a consagração
do populismo na América
A dúvida de
Fukuyama
O Annus mirabilis de
1989 incitou o então jovem Francis Fukuyama a publicar na revista
National Interest um ensaio célebre, O Fim da História, mais tarde
transformado em livro, em que anunciava a vitória final da
democracia liberal sobre as outras ideologias. Demorou a perceber o
equívoco.
Publicou ontem no
Financial Times um longo artigo, “Os EUA contra o mundo?”, em que
define a vitória de Trump como outro momento de ruptura histórica,
mas em sentido inverso. “A espantosa vitória de Donald Trump sobre
Hillary Clinton marca uma separação das águas não apenas na
política americana mas para toda a ordem mundial. Parece estarmos a
entrar numa nova era de populismo nacionalista, em que a ordem
liberal dominante que foi construída desde os anos 1950 está sob o
ataque de coléricas e enérgicas maiorias democráticas. O risco é
a deriva para um mundo de competitivos e igualmente furiosos
nacionalismos. Se isso acontecer marcará um momento tão importante
como a queda do Muro de Berlim em 1989.”
A propósito da
Europa, lembra um dito irónico do filósofo Ernest Gellner, sobre a
esquerda na I Guerra Mundial: a carta enviada para uma caixa de
correio chamada “classe” foi por engano parar a outra chamada
“nação”. Será este o novo horizonte da Europa, a competição
dos interesses nacionais?
A América pode
sobreviver a Trump. Mas não provavelmente o Ocidente”
Financial Times
Temos falado de
Trump. Depois dele, chegará a vez de repensar a América. “A
América pode
sobreviver a Trump.
Mas não provavelmente o Ocidente”, escreve o Financial Times.
Refere-se ao efeito do “America First” e do seu beligerante
isolacionismo. Mas quanto e como mudará a América na sua cultura
democrática? Para lá da figura de Trump, “a personalidade mais
inadequada a liderar a primeira potência do mundo”, o que
significará a espantosa acumulação de poderes do actual Partido
Republicano: um Presidente, a Câmara dos Representantes, o Senado e
o Supremo Tribunal? O problema não é a acumulação, que não é
inédita nem grave em si mesma. É que o Partido Republicano mudou,
já não é o velho Grand Old Party porque foi colonizado por
ultraconservadores e agora por Trump. Não está em causa a
democracia americana. Estão em causa a orientação e a imagem da
América.
Que novas políticas
e regressões se antevêem? O nosso interesse é simples: de uma
forma ou de outra, vão projectar-se na Europa.
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