quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Do “fuck it!” ao “what the fuck?!?” / Trump ganhou, os deploráveis vingaram-se e a América está em cacos


Do “fuck it!” ao “what the fuck?!?”

JOÃO MIGUEL TAVARES 10/11/2016 – 06:19

No dia 8 de Novembro de 2016 ocorreu uma espectacular derrota do jornalismo.

Hillary Clinton não foi a maior derrotada na madrugada de quarta-feira. À frente dela estão as empresas de sondagens. E à frente das empresas de sondagens estão os jornais, as televisões (a certa altura, até a Fox News se afastou de Trump), e basicamente todos nós, que trabalhamos na comunicação social. Uma lição para o falecido Emídio Rangel: sim, Donald Trump transformou-se numa figura nacional através da televisão; sim, a televisão deu-lhe muita atenção no início da corrida, quando parecia não ser mais do que o comic relief republicano; mas não, a televisão não consegue vender presidentes da República como quem vende sabonetes.

Trump foi destruído, gozado, arrasado, por tudo o que é revista e jornal; foi transformado numa caricatura patética por Alec Baldwin no Saturday Night Live e humilhado nos melhores talkshows. Entre as 200 principais publicações americanas, apenas seis apoiaram Trump. A comunicação social acompanhou obsessivamente a “locker room talk”, mais a dúzia de mulheres que testemunhou que Trump as tinha efectivamente assediado. Nada disso importou para a América branca, rural e pouco habilitada, que votou em massa no candidato menos qualificado da história das presidenciais americanas.

Porquê? Não vale a pena procurar uma razão muito precisa e circunscrita. Não foi a presença de Obama, que continua a ter bastante popularidade. Não foram os e-mails. Não foi o FBI. Foi um grande, enorme, gigantesco “fuck it!” – um voto anti-sistema de quem está profundamente zangado com a nova América e saudoso da velha (sete em cada dez apoiantes de Trump preferem os anos 50 ao mundo actual). Quase dois terços dos votantes declararam que Trump não tinha o temperamento certo para ser Presidente dos Estados Unidos. Ainda assim, 20% desses americanos votaram nele. Preferiram quebrar o sistema, até porque não acreditam que seja possível corrigi-lo. E quando se trata de partir, Donald Trump é o homem certo.

Aquilo que os democratas jamais esperaram é que o eleitorado republicano ficasse imune a meses de infindáveis editoriais, artigos de opinião, ensaios, reportagens, debates televisivos e belos sketches humorísticos a sublinhar a fraude que Donald Trump era (e é). Daí que os democratas tenham escrito nas suas caras um grande, enorme, gigantesco “what the fuck?!?” – sim, havia algumas hipóteses de Trump ganhar, mas ninguém acreditava nisso. Os jornalistas gostam de olhar para si próprios como um contrapoder, mas frequentam os mesmos restaurantes dos políticos, vivem no mesmo ecossistema, usam os mesmos talheres. E dentro desse quadro mental – que também é o meu – não havia forma de Donald Trump vencer as eleições depois de tudo aquilo que disse e fez.


Nesse aspecto, somos todos um pouco cavaquistas: confrontado com os mesmos factos, qualquer cidadão deveria chegar à conclusão de que Trump era imprestável. E, de facto, entre os leitores do New York Times, Hillary Clinton arrasou Donald Trump. O problema é que 50% dos eleitores americanos não só estavam fora desse quadro mental liberal, qualificado e endinheirado, como o odiavam profundamente. Trump nunca se cansou de repetir que o sistema estava viciado e que a comunicação social comungava do vício. A mensagem passou: 60 milhões de americanos ignoraram olimpicamente tudo o que viram, leram e ouviram ao longo de ano e meio. Não admira o ar de defunto da comunicação social. No dia 8 de Novembro de 2016 ocorreu uma espectacular derrota do jornalismo.


Trump ganhou, os deploráveis vingaram-se e a América está em cacos

JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES 09/11/2016 - 10:42

O populismo floresce onde há um sentimento de insegurança e de ameaça, económica e/ou identitária. Donald Trump manipulou-o habilmente a seu favor, jogando com os medos e revolta da população.

1. Há um século atrás os EUA celebravam triunfalmente a sua identidade nacional como um melting pot, um caldeirão de culturas e de raças que se fundiam numa nova identidade americana. A popularização da expressão deve-se à peça de teatro homónima do judeu britânico Israel Zangwill, The Melting Pot. Na sua exibição inaugural em Washington, na capital federal, em 1908, mereceu o forte aplauso do Presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, que a aclamou do seu camarote: “é uma grande peça Sr. Zangwill, uma grande peça!” Em The Melting Pot Israel Zangwill combinou elementos do clássico drama romântico de William Shakespeare, “Romeu e Julieta” — transposto do Renascimento italiano para América / Nova Iorque do início do século XX —, com uma celebração da fusão cultural norte-americana. Os protagonistas, David e Vera, ambos imigrantes oriundos da Rússia, são de diferentes religiões: David é judeu e Vera cristã. O seu amor, impossível na Velha Europa pelas barreiras sociais, religiosas e políticas, tornava-se possível no Novo Mundo onde aquilo que os separava ficou definitivamente para trás. O melting pot é uma metáfora dos EUA como terra prometida e república democrática. As diferentes componentes migratórias fundiam-se num todo harmonioso, gerando uma nova cultura comum e valores cívicos partilhados.

2. “O tribalismo está a destruir a América”, a frase é premonitória e antecipa o que tem vindo a ocorrer nas eleições presidenciais de 2016. É da autoria de Robert Reich, antigo ministro do trabalho de Bill Clinton e professor da Universidade de Berkeley. Os EUA tornaram-se “um país mais dividido em termos de classe económica. Cada vez mais os ricos parecem habitar um país diferente do resto. Mas o novo tribalismo da América pode ser visto mais claramente na sua política. Hoje em dia, os membros de uma tribo (que se autodenominam liberais, progressistas e democratas) têm pontos de vista e valores muito diferentes dos membros da outra (conservadores, apoiantes do Tea Party e republicanos). Cada tribo tem ideias contrastantes sobre direitos e liberdades (para os liberais, os direitos reprodutivos e direitos iguais de casamento; para os conservadores, o direito de possuir uma arma e fazer o que quiser com a sua propriedade). Cada uma tem os seus próprios totens (seguro social versus governo reduzido) e tabus (cortes nos direitos ou aumento de impostos) [...], a sua própria versão da verdade (uma acredita na mudança climática e na evolução, a outra não); e os seus próprios meios de comunicação que confirmam as suas crenças. Cada tribo é chefiada por senhores da guerra rivais, cujos combates quase interromperam o governo nacional em Washington. Cada vez mais, as duas tribos vivem separadamente nas suas próprias regiões — Estado azul ou vermelho, zonas costeiras ou do interior, urbanas ou rurais —, com os governos estaduais ou locais reflectindo seus valores contrastantes […]. Mas o facto é que as duas tribos estão a estilhaçar a América, muitas vezes colocando as metas tribais acima do interesse nacional.” (Ver “Tribalism is tearing America apart" in Salon, 25/03/2014).

3. O melting pot explodiu e a América está em crise de identidade. O que é ser norte-americano? Nos últimos tempos as divisões e fracturas internas tornaram-se claramente visíveis para o mundo exterior. Mas o fenómeno não é novo. Pelo menos desde os anos 1990 a sociedade norte-americana é atravessada por aquilo que é designado como “guerras de cultura”. Grosso modo, correspondem ao tribalismo na política norte-americana denunciado por Robert Reich. Com a campanha para as presidenciais de 2016, entre Hillary Clinton e Donald Trump, o tribalismo da política interna dos EUA subiu a um novo e perigoso patamar. Para além das características dos candidatados — ambos mal-amados por grande parte dos eleitores, com especial intensidade no caso de Donald Trump —, esconde-se um problema mais profundo: a extrema diversidade da sociedade. Esta foi acentuada pela mudança radical dos fluxos migratórios, ocorrida partir dos anos 1950. Até aí eram largamente de origem europeia. No último meio século a população oriunda da América Latina, seguida da população com origem na Ásia, constituem os grandes fluxos de crescimento migratório e demográfico, especialmente a primeira. Como consequência, no Sul e Oeste, o espanhol latino-americano ameaça a supremacia do inglês-americano e pode transformar os EUA num Estado bilingue. Quanto ao catolicismo, tende a superar o protestantismo. Os mexicanos são um caso particular, pela sua presença em massa nos Estados do Sul, do Texas à Califórnia, onde a demografia e migrações os projectam como o maior grupo populacional. E esses territórios já foram do México no século XIX.

4. A política interna norte-americana está cheia de tensões e contradições. Ambos os partidos — republicanos e democratas — estão em fase de transição para novas lógicas político-ideológicas e em mutação das suas bases de apoio. Os republicanos, que se vêem a si próprios, laudatoriamente, como o Grand Old Party (GOP), acentuam as suas raízes antigas, datadas de meados do século XIX. Evidenciam o papel quase mítico de Abraham Lincoln, na abolição da escravatura e durante a guerra civil. Mas hoje o partido é bastante conservador, em termos de valores sociais, e profundamente liberal/(neo)liberal na economia. A sua base de apoio mais sólida está entre a população de origem europeia, especialmente aquela que vive nos muitos Estados do interior dos EUA. Quanto aos democratas — que no século XIX tinham a sua principal base de apoio nos Estados do Sul e estiveram, em parte, na origem da guerra civil e da tentativa de secessão da federação norte-americana —, preferem apresentar-se hoje como herdeiros de Franklin D. Roosevelt, das suas medidas sociais e económicas durante a Grande Depressão dos anos 1930. Outro ícone é John F. Kennedy, o primeiro presidente de origem não anglo-saxónica e protestante (ou seja, não WASP-White Anglo-Saxon Protestant), oriundo de uma família de origem irlandesa e católica, visto como progressista. Mas essa era outra América. O Partido Democrata tinha já a preferência dos votos das minorias (leia-se judeus e católicos), ambos tendo por detrás uma cultura europeia e ocidental comum. O movimento pelos direitos cívicos dos afro-americanos estava no seu início. Outras questões de identidade não se colocavam.

5. O Partido Democrata afirma-se como progressista na economia — sendo o que mais defende a intervenção reguladora do Estado e medidas de justiça social fora da ortodoxia (neo)liberal — e suporta os direitos das minorais (afro-americanos, latinos, asiáticos, muçulmanos, etc.). Mas o seu programa ideológico e base eleitoral de apoio está repleta de contradições. Denuncia o Partido Republicano como o partido dos super-ricos, mas, ironicamente, o Partido Democrata também está cheio de super-ricos. Se o Partido Republicano atrai os super-ricos do petróleo (a família Bush, por exemplo) e de outros sectores tradicionais, como o imobiliário — a área de negócio original de Donald Trump —, o Partido Democrata atrai outros super-ricos. Os milionários das novas tecnologias (Apple, Google, Facebook, etc.) e do show business estão entre os seus maiores apoiantes e financiadores. Mais: abandonou grande parte da classe trabalhadora branca aos republicanos. O seu programa progressista — emancipação feminina, igualdade de género, casamento homossexual, etc. — tem boa ressonância entre as classes média e alta, com formação académica, e nos media (CNN, New York Times, Time magazine, etc.). Não apela aos trabalhadores menos qualificados. Nem é coerente com o conservadorismo social das minorias étnicas, que são largamente imbuídas de valores tradicionais, embora com tonalidades não ocidentais (latinos, asiáticos, muçulmanos, etc.). Basta ver que nenhum país muçulmano encara, sequer, a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou da igualdade de género, tal como a conhecemos no Ocidente. Por isso, paradoxalmente, o seu programa progressista depende do apoio de minorias fortemente tradicionalistas.

6. A intensificação da diversidade cultural abriu uma nova linha de fractura paralela às clássicas divisões económicas entre ricos e pobres, entre privilegiados e excluídos. Esta tornou-se tanto ou mais explosiva do que as fracturas tradicionais de riqueza. O liberalismo/(neol)liberalismo excessivo da economia norte-americana idolatra sistematicamente os vencedores e esquece os vencidos da competição económico-empresarial. Abriu a porta a uma globalização agressiva e desigual. Esse é o problema criado pela direita republicana desde os anos Reagan, na década de 1980. Quanto à esquerda democrata, embora com um contrapeso meritório a nível social, abriu a caixa de pandora das políticas de identidade com o movimento da New Left a partir dos anos 1960. Apesar do mérito de terem contribuído para eliminar discriminações, geraram, também, um efeito perverso de fragmentação. Ao desconstruírem os mitos fundadores da identidade nacional norte-americana — dos pais fundadores WASP e do melting pot —, fizeram sobressair as diferenças culturais. A diversidade cultural foi elevada a novo mito constitutivo da federação. Mas antes de ganhar raízes já explodiu também. Donald Trump foi o grande incendiário nesta campanha eleitoral. Mas o substrato sociológico que criou o terreno para a combustão é-lhe anterior. Onde antes havia americanos (ainda que sob a ficção de um melting pot e com uma identidade hegemónica fundamentalmente de origem europeia, masculina e judaico-cristã), agora há americanos brancos, WASP, mulheres, índios, afro-americanos, latinos, asiáticos, judeus, muçulmanos, homossexuais, etc. Os pais fundadores são menosprezados como dead white males. As tribos são muitas. A discórdia também. Tal como as grandes diferenças de riqueza, uma grande diversidade é má para a democracia. O populismo floresce onde há um sentimento de insegurança e de ameaça, económica e/ou identitária. Donald Trump manipulou-o habilmente a seu favor, jogando com os medos e revolta da população.

7. A campanha do Partido Democrata esteve cheia de erros, o maior dos quais, provavelmente, foi a escolha da própria Hillary Clinton como candidata presidencial. Esta foi vista por muitos eleitores, mesmo entre os apoiantes naturais do Partido Democrata, como a tentativa de perpetuação de uma elite oligárquica (a dinastia política dos Clinton) no poder. Para além disso, a sua arrogância moral, típica das elites, e o ataque indiscriminado ao eleitorado de Trump — qualificando os seus eleitores como um “cabaz de deploráveis” —, teve, provavelmente, o efeito contrário: mobilizou-os para irem maciçamente votar. A imprensa norte-americana vista como referência de bom jornalismo ­— do New York Times à CNN, passando, pelo Huffington Post até ao Washington Post e à Time magazine etc. —, também se saiu muito mal. Paradoxalmente, terá sido também uma das grandes responsáveis pela vitória de Trump. Primeiro, tratou-o como uma curiosidade dando-lhe grande cobertura pelas afirmações provocatórias, esperando divertir-se com isso e que este dividisse os republicanos. Depois, já candidato oficial, e vendo o perigo da sua vitória, passou para o extremo oposto. Perdeu objectividade nas notícias e prestou-se à divulgação de escândalos vazados deliberadamente pelo Partido Democrata. As revelações da WikiLeaks e Julian Assange — até aí um ícone da liberdade de imprensa e da transparência —, tornaram-se incómodas e eram desvalorizadas. O excesso de partidarismo e proximidade com os democratas foi contraproducente. Parecia dar razão às acusações de corrupção e de fraude feitas por Trump. Claro que o Partido Republicano fez o mesmo com a imprensa que lhe é próxima — Fox News, New York Post, Washington Examiner, etc. — mas essa nunca foi vista por ninguém, a não ser pelos republicanos mais acérrimos, como exemplo de imprensa de qualidade. Quanto às sondagens — e previsões de muitos especialistas —, falharam mais uma vez. A previsão da vitória numa eleição com um sistema eleitoral complexo, ainda por cima com candidatos com estas características, deveria ter merecido particulares cuidados e reservas. Tal como aconteceu no Brexit, o efeito de pressão social sobre os deploráveis fez ricochete. Não querendo revelar o seu voto, não entravam nas previsões. Menosprezados pelas elites e espicaçados no seu amor-próprio, os deploráveis vingaram-se. O resultado está à vista: Trump ganhou e a América está em cacos.

Investigador

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