Do
“fuck it!” ao “what the fuck?!?”
JOÃO MIGUEL TAVARES
10/11/2016 – 06:19
No
dia 8 de Novembro de 2016 ocorreu uma espectacular derrota do
jornalismo.
Hillary Clinton não
foi a maior derrotada na madrugada de quarta-feira. À frente dela
estão as empresas de sondagens. E à frente das empresas de
sondagens estão os jornais, as televisões (a certa altura, até a
Fox News se afastou de Trump), e basicamente todos nós, que
trabalhamos na comunicação social. Uma lição para o falecido
Emídio Rangel: sim, Donald Trump transformou-se numa figura nacional
através da televisão; sim, a televisão deu-lhe muita atenção no
início da corrida, quando parecia não ser mais do que o comic
relief republicano; mas não, a televisão não consegue vender
presidentes da República como quem vende sabonetes.
Trump foi destruído,
gozado, arrasado, por tudo o que é revista e jornal; foi
transformado numa caricatura patética por Alec Baldwin no Saturday
Night Live e humilhado nos melhores talkshows. Entre as 200
principais publicações americanas, apenas seis apoiaram Trump. A
comunicação social acompanhou obsessivamente a “locker room
talk”, mais a dúzia de mulheres que testemunhou que Trump as tinha
efectivamente assediado. Nada disso importou para a América branca,
rural e pouco habilitada, que votou em massa no candidato menos
qualificado da história das presidenciais americanas.
Porquê? Não vale a
pena procurar uma razão muito precisa e circunscrita. Não foi a
presença de Obama, que continua a ter bastante popularidade. Não
foram os e-mails. Não foi o FBI. Foi um grande, enorme, gigantesco
“fuck it!” – um voto anti-sistema de quem está profundamente
zangado com a nova América e saudoso da velha (sete em cada dez
apoiantes de Trump preferem os anos 50 ao mundo actual). Quase dois
terços dos votantes declararam que Trump não tinha o temperamento
certo para ser Presidente dos Estados Unidos. Ainda assim, 20% desses
americanos votaram nele. Preferiram quebrar o sistema, até porque
não acreditam que seja possível corrigi-lo. E quando se trata de
partir, Donald Trump é o homem certo.
Aquilo que os
democratas jamais esperaram é que o eleitorado republicano ficasse
imune a meses de infindáveis editoriais, artigos de opinião,
ensaios, reportagens, debates televisivos e belos sketches
humorísticos a sublinhar a fraude que Donald Trump era (e é). Daí
que os democratas tenham escrito nas suas caras um grande, enorme,
gigantesco “what the fuck?!?” – sim, havia algumas hipóteses
de Trump ganhar, mas ninguém acreditava nisso. Os jornalistas gostam
de olhar para si próprios como um contrapoder, mas frequentam os
mesmos restaurantes dos políticos, vivem no mesmo ecossistema, usam
os mesmos talheres. E dentro desse quadro mental – que também é o
meu – não havia forma de Donald Trump vencer as eleições depois
de tudo aquilo que disse e fez.
Nesse aspecto, somos
todos um pouco cavaquistas: confrontado com os mesmos factos,
qualquer cidadão deveria chegar à conclusão de que Trump era
imprestável. E, de facto, entre os leitores do New York Times,
Hillary Clinton arrasou Donald Trump. O problema é que 50% dos
eleitores americanos não só estavam fora desse quadro mental
liberal, qualificado e endinheirado, como o odiavam profundamente.
Trump nunca se cansou de repetir que o sistema estava viciado e que a
comunicação social comungava do vício. A mensagem passou: 60
milhões de americanos ignoraram olimpicamente tudo o que viram,
leram e ouviram ao longo de ano e meio. Não admira o ar de defunto
da comunicação social. No dia 8 de Novembro de 2016 ocorreu uma
espectacular derrota do jornalismo.
Trump
ganhou, os deploráveis vingaram-se e a América está em cacos
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 09/11/2016 - 10:42
O
populismo floresce onde há um sentimento de insegurança e de
ameaça, económica e/ou identitária. Donald Trump manipulou-o
habilmente a seu favor, jogando com os medos e revolta da população.
1. Há um século
atrás os EUA celebravam triunfalmente a sua identidade nacional como
um melting pot, um caldeirão de culturas e de raças que se fundiam
numa nova identidade americana. A popularização da expressão
deve-se à peça de teatro homónima do judeu britânico Israel
Zangwill, The Melting Pot. Na sua exibição inaugural em Washington,
na capital federal, em 1908, mereceu o forte aplauso do Presidente
dos EUA, Theodore Roosevelt, que a aclamou do seu camarote: “é uma
grande peça Sr. Zangwill, uma grande peça!” Em The Melting Pot
Israel Zangwill combinou elementos do clássico drama romântico de
William Shakespeare, “Romeu e Julieta” — transposto do
Renascimento italiano para América / Nova Iorque do início do
século XX —, com uma celebração da fusão cultural
norte-americana. Os protagonistas, David e Vera, ambos imigrantes
oriundos da Rússia, são de diferentes religiões: David é judeu e
Vera cristã. O seu amor, impossível na Velha Europa pelas barreiras
sociais, religiosas e políticas, tornava-se possível no Novo Mundo
onde aquilo que os separava ficou definitivamente para trás. O
melting pot é uma metáfora dos EUA como terra prometida e república
democrática. As diferentes componentes migratórias fundiam-se num
todo harmonioso, gerando uma nova cultura comum e valores cívicos
partilhados.
2. “O tribalismo
está a destruir a América”, a frase é premonitória e antecipa o
que tem vindo a ocorrer nas eleições presidenciais de 2016. É da
autoria de Robert Reich, antigo ministro do trabalho de Bill Clinton
e professor da Universidade de Berkeley. Os EUA tornaram-se “um
país mais dividido em termos de classe económica. Cada vez mais os
ricos parecem habitar um país diferente do resto. Mas o novo
tribalismo da América pode ser visto mais claramente na sua
política. Hoje em dia, os membros de uma tribo (que se autodenominam
liberais, progressistas e democratas) têm pontos de vista e valores
muito diferentes dos membros da outra (conservadores, apoiantes do
Tea Party e republicanos). Cada tribo tem ideias contrastantes sobre
direitos e liberdades (para os liberais, os direitos reprodutivos e
direitos iguais de casamento; para os conservadores, o direito de
possuir uma arma e fazer o que quiser com a sua propriedade). Cada
uma tem os seus próprios totens (seguro social versus governo
reduzido) e tabus (cortes nos direitos ou aumento de impostos) [...],
a sua própria versão da verdade (uma acredita na mudança climática
e na evolução, a outra não); e os seus próprios meios de
comunicação que confirmam as suas crenças. Cada tribo é chefiada
por senhores da guerra rivais, cujos combates quase interromperam o
governo nacional em Washington. Cada vez mais, as duas tribos vivem
separadamente nas suas próprias regiões — Estado azul ou
vermelho, zonas costeiras ou do interior, urbanas ou rurais —, com
os governos estaduais ou locais reflectindo seus valores
contrastantes […]. Mas o facto é que as duas tribos estão a
estilhaçar a América, muitas vezes colocando as metas tribais acima
do interesse nacional.” (Ver “Tribalism is tearing America apart"
in Salon, 25/03/2014).
3. O melting pot
explodiu e a América está em crise de identidade. O que é ser
norte-americano? Nos últimos tempos as divisões e fracturas
internas tornaram-se claramente visíveis para o mundo exterior. Mas
o fenómeno não é novo. Pelo menos desde os anos 1990 a sociedade
norte-americana é atravessada por aquilo que é designado como
“guerras de cultura”. Grosso modo, correspondem ao tribalismo na
política norte-americana denunciado por Robert Reich. Com a campanha
para as presidenciais de 2016, entre Hillary Clinton e Donald Trump,
o tribalismo da política interna dos EUA subiu a um novo e perigoso
patamar. Para além das características dos candidatados — ambos
mal-amados por grande parte dos eleitores, com especial intensidade
no caso de Donald Trump —, esconde-se um problema mais profundo: a
extrema diversidade da sociedade. Esta foi acentuada pela mudança
radical dos fluxos migratórios, ocorrida partir dos anos 1950. Até
aí eram largamente de origem europeia. No último meio século a
população oriunda da América Latina, seguida da população com
origem na Ásia, constituem os grandes fluxos de crescimento
migratório e demográfico, especialmente a primeira. Como
consequência, no Sul e Oeste, o espanhol latino-americano ameaça a
supremacia do inglês-americano e pode transformar os EUA num Estado
bilingue. Quanto ao catolicismo, tende a superar o protestantismo. Os
mexicanos são um caso particular, pela sua presença em massa nos
Estados do Sul, do Texas à Califórnia, onde a demografia e
migrações os projectam como o maior grupo populacional. E esses
territórios já foram do México no século XIX.
4. A política
interna norte-americana está cheia de tensões e contradições.
Ambos os partidos — republicanos e democratas — estão em fase de
transição para novas lógicas político-ideológicas e em mutação
das suas bases de apoio. Os republicanos, que se vêem a si próprios,
laudatoriamente, como o Grand Old Party (GOP), acentuam as suas
raízes antigas, datadas de meados do século XIX. Evidenciam o papel
quase mítico de Abraham Lincoln, na abolição da escravatura e
durante a guerra civil. Mas hoje o partido é bastante conservador,
em termos de valores sociais, e profundamente liberal/(neo)liberal na
economia. A sua base de apoio mais sólida está entre a população
de origem europeia, especialmente aquela que vive nos muitos Estados
do interior dos EUA. Quanto aos democratas — que no século XIX
tinham a sua principal base de apoio nos Estados do Sul e estiveram,
em parte, na origem da guerra civil e da tentativa de secessão da
federação norte-americana —, preferem apresentar-se hoje como
herdeiros de Franklin D. Roosevelt, das suas medidas sociais e
económicas durante a Grande Depressão dos anos 1930. Outro ícone é
John F. Kennedy, o primeiro presidente de origem não anglo-saxónica
e protestante (ou seja, não WASP-White Anglo-Saxon Protestant),
oriundo de uma família de origem irlandesa e católica, visto como
progressista. Mas essa era outra América. O Partido Democrata tinha
já a preferência dos votos das minorias (leia-se judeus e
católicos), ambos tendo por detrás uma cultura europeia e ocidental
comum. O movimento pelos direitos cívicos dos afro-americanos estava
no seu início. Outras questões de identidade não se colocavam.
5. O Partido
Democrata afirma-se como progressista na economia — sendo o que
mais defende a intervenção reguladora do Estado e medidas de
justiça social fora da ortodoxia (neo)liberal — e suporta os
direitos das minorais (afro-americanos, latinos, asiáticos,
muçulmanos, etc.). Mas o seu programa ideológico e base eleitoral
de apoio está repleta de contradições. Denuncia o Partido
Republicano como o partido dos super-ricos, mas, ironicamente, o
Partido Democrata também está cheio de super-ricos. Se o Partido
Republicano atrai os super-ricos do petróleo (a família Bush, por
exemplo) e de outros sectores tradicionais, como o imobiliário — a
área de negócio original de Donald Trump —, o Partido Democrata
atrai outros super-ricos. Os milionários das novas tecnologias
(Apple, Google, Facebook, etc.) e do show business estão entre os
seus maiores apoiantes e financiadores. Mais: abandonou grande parte
da classe trabalhadora branca aos republicanos. O seu programa
progressista — emancipação feminina, igualdade de género,
casamento homossexual, etc. — tem boa ressonância entre as classes
média e alta, com formação académica, e nos media (CNN, New York
Times, Time magazine, etc.). Não apela aos trabalhadores menos
qualificados. Nem é coerente com o conservadorismo social das
minorias étnicas, que são largamente imbuídas de valores
tradicionais, embora com tonalidades não ocidentais (latinos,
asiáticos, muçulmanos, etc.). Basta ver que nenhum país muçulmano
encara, sequer, a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo
sexo, ou da igualdade de género, tal como a conhecemos no Ocidente.
Por isso, paradoxalmente, o seu programa progressista depende do
apoio de minorias fortemente tradicionalistas.
6. A intensificação
da diversidade cultural abriu uma nova linha de fractura paralela às
clássicas divisões económicas entre ricos e pobres, entre
privilegiados e excluídos. Esta tornou-se tanto ou mais explosiva do
que as fracturas tradicionais de riqueza. O
liberalismo/(neol)liberalismo excessivo da economia norte-americana
idolatra sistematicamente os vencedores e esquece os vencidos da
competição económico-empresarial. Abriu a porta a uma globalização
agressiva e desigual. Esse é o problema criado pela direita
republicana desde os anos Reagan, na década de 1980. Quanto à
esquerda democrata, embora com um contrapeso meritório a nível
social, abriu a caixa de pandora das políticas de identidade com o
movimento da New Left a partir dos anos 1960. Apesar do mérito de
terem contribuído para eliminar discriminações, geraram, também,
um efeito perverso de fragmentação. Ao desconstruírem os mitos
fundadores da identidade nacional norte-americana — dos pais
fundadores WASP e do melting pot —, fizeram sobressair as
diferenças culturais. A diversidade cultural foi elevada a novo mito
constitutivo da federação. Mas antes de ganhar raízes já explodiu
também. Donald Trump foi o grande incendiário nesta campanha
eleitoral. Mas o substrato sociológico que criou o terreno para a
combustão é-lhe anterior. Onde antes havia americanos (ainda que
sob a ficção de um melting pot e com uma identidade hegemónica
fundamentalmente de origem europeia, masculina e judaico-cristã),
agora há americanos brancos, WASP, mulheres, índios,
afro-americanos, latinos, asiáticos, judeus, muçulmanos,
homossexuais, etc. Os pais fundadores são menosprezados como dead
white males. As tribos são muitas. A discórdia também. Tal como as
grandes diferenças de riqueza, uma grande diversidade é má para a
democracia. O populismo floresce onde há um sentimento de
insegurança e de ameaça, económica e/ou identitária. Donald Trump
manipulou-o habilmente a seu favor, jogando com os medos e revolta da
população.
7. A campanha do
Partido Democrata esteve cheia de erros, o maior dos quais,
provavelmente, foi a escolha da própria Hillary Clinton como
candidata presidencial. Esta foi vista por muitos eleitores, mesmo
entre os apoiantes naturais do Partido Democrata, como a tentativa de
perpetuação de uma elite oligárquica (a dinastia política dos
Clinton) no poder. Para além disso, a sua arrogância moral, típica
das elites, e o ataque indiscriminado ao eleitorado de Trump —
qualificando os seus eleitores como um “cabaz de deploráveis” —,
teve, provavelmente, o efeito contrário: mobilizou-os para irem
maciçamente votar. A imprensa norte-americana vista como referência
de bom jornalismo — do New York Times à CNN, passando, pelo
Huffington Post até ao Washington Post e à Time magazine etc. —,
também se saiu muito mal. Paradoxalmente, terá sido também uma das
grandes responsáveis pela vitória de Trump. Primeiro, tratou-o como
uma curiosidade dando-lhe grande cobertura pelas afirmações
provocatórias, esperando divertir-se com isso e que este dividisse
os republicanos. Depois, já candidato oficial, e vendo o perigo da
sua vitória, passou para o extremo oposto. Perdeu objectividade nas
notícias e prestou-se à divulgação de escândalos vazados
deliberadamente pelo Partido Democrata. As revelações da WikiLeaks
e Julian Assange — até aí um ícone da liberdade de imprensa e da
transparência —, tornaram-se incómodas e eram desvalorizadas. O
excesso de partidarismo e proximidade com os democratas foi
contraproducente. Parecia dar razão às acusações de corrupção e
de fraude feitas por Trump. Claro que o Partido Republicano fez o
mesmo com a imprensa que lhe é próxima — Fox News, New York Post,
Washington Examiner, etc. — mas essa nunca foi vista por ninguém,
a não ser pelos republicanos mais acérrimos, como exemplo de
imprensa de qualidade. Quanto às sondagens — e previsões de
muitos especialistas —, falharam mais uma vez. A previsão da
vitória numa eleição com um sistema eleitoral complexo, ainda por
cima com candidatos com estas características, deveria ter merecido
particulares cuidados e reservas. Tal como aconteceu no Brexit, o
efeito de pressão social sobre os deploráveis fez ricochete. Não
querendo revelar o seu voto, não entravam nas previsões.
Menosprezados pelas elites e espicaçados no seu amor-próprio, os
deploráveis vingaram-se. O resultado está à vista: Trump ganhou e
a América está em cacos.
Investigador
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