Imaginemos
um cidadão português…
TERESA DE SOUSA
01/05/2016 - PÚBLICO
As
injustiças sociais abriram o campo à xenofobia e ao nacionalismo.
Politicamente, as democracias europeias estão a sufocar.
1. Imaginemos um
cidadãos português da classe média, que não teve oportunidade de
ler Hayek (O Caminho da Servidão é digno de ser lido,
independentemente do ponto de vista de cada um) ou Milton Friedman e
os seus Chicago boys, que não se lembra da revolução conservadora
de Reagan e Thatcher ou da proclamação de Deng sobre a glória de
enriquecer, que desconhece Keynes e os neokeynesianos e que se
confronta com duas notícias que lhe chegaram aos ouvidos nos últimos
quinze dias. A primeira, na sequência do escândalo dos Panama
Papers (que vê todos os dias ser “branqueado” nas televisões
com o argumento de que é perfeitamente legal em muitos casos), está
em perfeitas condições intelectuais para perceber: nos últimos
cinco anos saíram de Portugal para vários “paraísos fiscais”
(o nome basta para se perceber a coisa) 10 mil milhões de euros. Que
é muito dinheiro, é fácil de entender sem qualquer fundamentação
teórica. Que lhe parece bastante imoral, também. Quanto mais não
seja porque anda a “apertar” o mês graças à carga fiscal que
lhe caiu em cima, cobrada sem apelo nem agravo, obrigando-o a ter de
ouvir uma longa pregação moral sobre o seu dever de viver
modestamente. No mínimo fixa perplexo. O problema não é só dele,
claro está. Sob condições diferentes, a maioria dos cidadãos
europeus, mesmo dos países mais ricos, viu nestes últimos anos de
crise o “aperto” dos seus rendimentos depois de vários anos de
estagnação dos salários a bem da competitividade europeia. Em
quase todos, mesmo no bom tempo, as desigualdades aumentaram e o
Estados social diminuiu. Nesses países e no nosso a palavra que lhes
vendem para explicar tudo isto é “globalização”. E é verdade.
A segunda notícia
já vem de trás, alastra como uma mancha de óleo e é justificada
pela mesma palavra. Primeiro, descobriu que a poderosa VW, o exemplo
acabado da extraordinária performance da indústria alemã, andava a
enganar toda a gente com os testes de emissões de carbono. A
infracção, chamemos-lhe assim, estava a ser copiada por outras
grandes construtoras e foi descoberta na América que é muito
liberal mas que tem a mão muito mais pesada quando a lei não é
cumprida. As últimas notícias vêm do Japão, onde a Mitsubishi
reconheceu na semana passada que andava há 25 a enganar os clientes
desta vez sobre o consumo de combustível. Pensará ele: mas se toda
a gente anda a tentar contornar as leis, em que é que devo
acreditar? E depois ainda tem de ouvir dizer aos responsáveis
políticos (ou a uma parte deles) que vai ter de continuar a fazer
sacríficos a bem do crescimento económico futuro e pagar os
impostos que lhes puserem à frente, que já nem sequer são para bem
do Estado social. Descobre que, afinal, há dois países. Um que é o
dele e outro que é o das grandes e médias empresas e das grandes ou
médias riquezas que têm à sua disposição um manancial de
soluções para não pagarem tantos impostos, tudo justificado com a
necessidade de competir no mercado global. É legal? Pois é. Mas é
absolutamente imoral e as democracias vivem de um sentimento de
justiça que assenta no respeito da lei mas também em padrões
morais comuns.
2. A era da
globalização nasceu com o fim da Guerra Fria e com a inclusão da
China, da Rússia e de outros países nos mercados internacionais;
com a revolução das novas tecnologias; e, finalmente, com a ideia
segundo a qual a liberalização dos mercados faria o seu papel de
ajustamento inteligente dos recursos internacionais. Ainda nos
lembramos das manifestações violentas que, no final do século
passado, faziam das cimeiras do G7, da OMC ou da União Europeia uma
verdadeira batalha campal. Mas, nessa altura e apesar dos estragos,
apenas representavam movimentos radicais e marginais contra o
capitalismo consumista ou furiosamente ambientalistas. Desapareceram
até à crise financeira. Mesmo que pareça aborrecido, convém olhar
um pouco para trás para perceber onde chegámos. Quando se começou
a falar de globalização, muita gente, sobretudo à esquerda,
preferia chamar-lhe “americanização” porque beneficiaria em
primeiro lugar a grande economia americana e o seu modelo.
Rapidamente, no entanto, se descobriu que os primeiros beneficiários
eram as economias emergentes que, pela primeira vez, enriqueciam o
suficiente para tirar da miséria milhões e milhões de pessoas. A
China foi o caso mais visível, mas não foi o único. Nas
democracias ricas, pelo contrário, a globalização começou por
atingir quem trabalhava na indústria, com o fenómeno da
deslocalização, e quem tinha poucas qualificações e que, graças
à competição internacional, se via remetido para empregos de
baixos salários (os chamados working poors). As desigualdades
aumentaram. Na Suécia como no Reino Unido. O crédito fácil
disfarçou esta realidade até à crise financeira e ao fim do
dinheiro barato com que as classes médias mantinham os seus elevados
padrões de vida. O “pensamento único” continuou a dominar,
convicto de que a inteligência dos mercados bastava para afectar os
recursos de uma maneira eficaz, desde que a política se afastasse do
caminho. A resposta do centro-esquerda começou com os Novos
Democratas de Clinton, tentando adaptar a justiça social à
liberalização dos mercados e a Europa seguiu-lhe o exemplo, com a
terceira-via de Blair e a sua expansão para o continente, de Lisboa
a Berlim. A receita parecia boa: qualificar as pessoas e apostar nas
vantagens científicas e tecnológicas das economias mais ricas. Os
resultados não foram tão bons como o esperado, sobretudo no combate
às desigualdades. O grande instrumento da social-democracia europeia
para uma melhor redistribuição da riqueza tinham sido os impostos.
A globalização criara uma dinâmica que obrigava a descê-los para
a economia se manter competitiva.
3. A crise
financeira veio demonstrar que os mercados não eram tão
inteligentes como se pensava e que a política teria de regressar
para tentar impor-lhes regras que evitassem os seus efeitos sociais
mais perversos. Mas a grande mudança foi política. Hoje, na Europa
e nos Estados Unidos, a revolta das classes médias contra a falta de
oportunidades e o aumento das desigualdades não se traduz em
manifestações violentas mas em escolhas eleitorais. Parte das
classes médias que se vêm como perdedoras da globalização votam
nos partidos de extrema-direita e populistas ou em novas versões da
esquerda radical e no regresso ao passado de alguns partidos
sociais-democratas, cansados da terceira-via (falo de Corbyn e não
de Costa, só para esclarecer). A própria Europa, prometida como
protectora dos efeitos nefastos da globalização, falhou
completamente a sua missão logo à primeira crise séria que teve de
enfrentar. As injustiças sociais abriram o campo à xenofobia e ao
nacionalismo, fazendo dos refugiados de hoje e dos imigrantes de
ontem e de amanhã a gasolina que está a inflamar os extremismos,
substituindo uma alternativa que a social-democracia ainda não
conseguiu oferecer. Politicamente, as democracias europeias estão a
sufocar.
É este o nosso
dilema. O dilema do cidadão português que assiste estupefacto ao
que se passa à sua volta, que não é contra os mercados nem contra
a abertura ao mundo, que não embirra com os ricos mesmo que tenha
alguma inveja, mas que assiste, fatalista ou revoltado, ao que se
passa à sua volta. E que começa a perceber uma coisa: a conversa
que lhe deram nos últimos anos afinal tem muito que se lhe diga.
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