Veículos
todo-o-terreno abrem ferida atrás de ferida na costa alentejana
A
falta de meios de vigilância permite a progressiva destruição da
biodiversidade provocada por veículos todo-o-terreno nas zonas
dunares e onde existem charcos temporários
Carlos Dias /
28-5-2016 / PÚBLICO
Aquele que é hoje o
Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV)
começou por se chamar “área de paisagem protegida”, um título
que hoje não passa de uma memória estraçalhada pelas feridas
entretanto infligidas neste litoral. As dunas, uma das suas imagens
de marca, são devassadas, abrindose no seu flanco múltiplos trilhos
que as põem em risco. Como em risco estão os charcos temporários,
abrigo de várias espécies ameaçadas, e que estão indefesos
perante as investidas dos visitantes.
“Vimos quase uma
dezena de trilhos lado a lado abertos por moto-quatro, motas e jipes,
numa área de grande sensibilidade ambiental”
A zona dos Aivados,
no concelho de Odemira, em pleno PNSACV, foi o local escolhido pela
organização do 12.º Festival Terras sem Sombras para realizar, no
início do mês, uma das suas acções de sensibilização sobre a
importância da biodiversidade, focalizada na importância da
preservação dos charcos temporários. José António Falcão,
director do Departamento do Património Histórico e Artístico da
Diocese de Beja (DPHADB), entidade organizadora do festival,
descreveu um cenário preocupante: “Vimos quase uma dezena de
trilhos lado a lado abertos por moto-quatro, motas e jipes, numa área
de grande sensibilidade ambiental.”
Ao longo do percurso
que realizaram, numa distância de seis quilómetros, os sinais de
“vandalismo assumido” eram patentes até na destruição das
placas que assinalavam os percursos permitidos. Assim como nas
atitudes de turistas que circulavam em moto-quatro “em cima das
dunas, numa acção muito agressiva”, descreve António Falcão. As
autocaravanas em zonas protegidas foi outra das incongruências
assinaladas, a par de trilhos abertos pela força dos veículos
todo-o-terreno e que em muitos pontos atravessam os valiosos charcos
temporários.
Manuel João Pinto,
biólogo na Faculdade de Ciências de Lisboa e que já há 25 anos
estuda a zona dos Aivados, confirmou ao PÚBLICO a devassa que ali
ocorre. “Há cada vez mais trilhos em zonas protegidas”, facto
que está a conduzir a um grave problema que é comum a todo o
Alentejo: “A aramagem sistemática das propriedades, alegando-se
razões de segurança”, diz o especialista, alertando para as
consequências resultantes da vedação das propriedades, que acabam
por se transformar em “impedimento à circulação da fauna
terrestre”, afectando desta forma a biodiversidade.
Referindo-se à
destruição de charcos temporários, João Pinto lembra que, nos
anos 1990, fez um levantamento deste tipo de zonas húmidas e foram
contabilizados mais de uma centena. Dezenas deles “desapareceram
entretanto”, sobretudo na zona sul do parque natural, onde está
instalado o perímetro de rega do Mira. Na zona norte, que engloba os
Aivados, “também desapareceram” alguns, mas em menor escala.
A drenagem dos
terrenos onde se localizam as zonas húmidas “já existia em 1958,
mas não tinha as características que tem hoje”, salienta o
biólogo, destacando a abertura de “valas de drenagem tão fundas
quanto possível”, que por vezes chegam até à rocha ou à camada
argilosa e endurecida que fica por debaixo dos charcos temporários,
para retirar a água.
Sem meios
O Instituto de
Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) “está desprovido de
meios “técnicos e de pessoal, para fazer a vigilância de um
território com 85 mil hectares de área e que abrange os concelhos
de Sines, Odemira, Alzejur, Vila do Bispo e Monchique, assinala a
bióloga Ana Paula Canha que juntamente com Carla Pinto Cruz
elaboraram um Plano de Gestão de Charcos Temporários.
Ana Paula realça a
existência de “plantas endémicas — algumas delas muito raras e
que só existem na Península Ibérica — e que se encontram ao lado
dos trilhos” utilizados por quem conduz as moto-quatro. “Corremos
o risco de perder o resto dos charcos”, admite a bióloga, que é
professora na escola secundária de Odemira, frisando que estas zonas
húmidas “têm espécies únicas”, tanto vegetais como animais.
Na agricultura
tradicional, que foi desaparecendo do interior do parque natural, “o
charco era sempre zona natural e um dos sítios mais ricos em
anfíbios de Portugal e um mosaico único de biodiversidade”, que
agora corre o risco de se perder, conclui a bióloga, frisando que
neste momento se luta para salvaguardar “os que ainda existem”.
“O quadro descrito
resulta em grande medida do significativo aumento da procura dos
espaços naturais costeiros, e muito em particular das áreas do
PNSACV, o que tem como resultado situações de conflito,
nomeadamente por circulação e estacionamento de viaturas em áreas
interditas”, reconhece, ao PÚBLICO, Valentina Calixto, directora
do Departamento de Conservação da Natureza e Florestas do Algarve.
A “fragilidade dos
ecossistemas dunares” é posta em causa pela circulação de
viaturas todo-o-terreno, já que “resulta numa destruição da
vegetação e em alterações das características topomorfológicas
que se mantêm visíveis ao longo do tempo, frequentemente durante
anos”, confirma Valentina Calixto.
Apesar de toda a
sensibilização que as várias entidades públicas com
responsabilidades na gestão do parque natural têm vindo a realizar,
“continua a verificar-se a ocorrência de situações irregulares,
muitas das quais alvo de autos de notícia”, acentua a directora,
destacando os investimentos já realizados ou em projecto no
ordenamento das acessibilidades à linha de costa, nomeadamente na
instalação de parques de estacionamento.
Referindo-se à
escassez de meios humanos para exercer a fiscalização, salienta que
os serviços “têm exercido as suas competências ao longo dos anos
com constrangimentos, o que tem fragilizado a obtenção dos
resultados desejados”. No PNSACV encontram-se “em permanência”
seis vigilantes da natureza, diz.
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