OPINIÃO
Não, António, as
vacas não voam
JOÃO MIGUEL TAVARES
24/05/2016 / PÚBLICO
Uma vaca voadora –
e de repente ali estava, diante de nós, o símbolo perfeito do
regoverno socialista. Todo o pensamento político do
primeiro-ministro encapsulado numa bugiganga a pilhas comprada no
aeroporto de Heathrow. Se não viram na televisão, vejam, por favor,
porque António Costa a oferecer à ministra da Modernização
Administrativa a vaca voadora na cerimónia do novo Simplex é, no
seu cândido simbolismo vacum, o apontamento político mais
esclarecedor do ano. O primeiro-ministro pegou na vaquinha por um fio
de coco, carregou num botão e as asas da vaca leiteira começaram a
bater alegremente, enquanto ele declarava, todo dentes e sorrisos:
“Não há impossíveis! A prova é a de que até há vacas que
voam!”
Podia ser apenas uma
piada – mas não foi. Foi, isso sim, algo mais próximo do lapso
freudiano. Munido de inesgotáveis pilhas e fé em gado alado,
António Costa está a governar o país como se as vacas pudessem
voar: contra todas as probabilidades e com uma dose bovina de
pensamento mágico. Reparem, aliás, que o objecto em causa não só
era vaca, como era leiteira. Até o adjectivo é revelador:
“leiteira” no sentido popular de “sorte” e “fortuna ao
jogo”.
Não, não estou a
embirrar com o primeiro-ministro. Acredito profundamente na
importância simbólica da sua vaca voadora, porque ela traduz uma
característica fulcral da psique portuguesa, que nos marca pelo
menos desde o milagre de Ourique: a crença numa intervenção
sobrenatural como forma de ultrapassar dificuldades naturais. No
tempo de D. Afonso Henriques, Deus intervinha pessoalmente nas
batalhas, colocando-se ao lado dos justos – a independência de
Portugal passou a justificar-se porque o próprio Senhor do Universo
decidira interromper os seus afazeres galácticos para abençoar o
jovem Afonso na luta contra os mouros. Já António Costa prefere
entregar o papel de Deus a uma vaca voadora – Portugal não vai
voltar a afundar-se nos mercados internacionais, apesar da acumulação
de indicadores desfavoráveis e da aberrante coligação
anticapitalista, pela simples razão de que não há impossíveis. As
vacas voam!
O objectivo do
bovino eléctrico é, afinal, o mesmo do milagre de Ourique, tal como
é o mesmo do mito sebástico: transferir para os céus ou para o
futuro a resolução dos nossos problemas imediatos. O voluntarismo
português, que António Costa ilustrou com a sua vaca volitante, não
é nunca uma tentativa de superação – é uma fezada, um desejo de
milagre. Em todo o lado existem discursos motivacionais, mas o seu
objectivo costuma ser o de convocar o povo para os sacrifícios que
se avizinham, à maneira de Churchill: “Só tenho para oferecer
sangue, suor e lágrimas.” Aquilo que sempre apreciei no discurso
de Passos Coelho, Vítor Gaspar ou Maria Luís Albuquerque foi a
ausência de paninhos quentes e a admissão de que era necessário
fazer sacrifícios para que o país voltasse a ser credível cá
dentro e lá fora.
Como se vê, esse
discurso acabou, acusado de “colaboracionismo”. E entre as mais
graves reposições de António Costa está precisamente essa
mentalidade messiânica e parola, sempre em busca de um golpe de
sorte que resolva a nossa vida por nós – olhem, até as vacas
voam! Não, pá, não voam. E não precisamos que voem. O que
precisamos, como dizia Natália Correia, é de espetar os cornos no
destino. É duro, dá trabalho, mas mil vezes isso do que gastar a
vida à procura de vaporosas manadas no céu socialista, com o país
preso por um fio de coco.
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