Fernanda
Câncio e a privacidade
JOÃO
MIGUEL TAVARES 17/05/2016 - PÚBLICO
Que
tenha sido o próprio Sócrates a dinamitar a tese de Fernanda
Câncio, eis o que não deixa de ser uma cruel ironia.
Sou amigo da
Fernanda Câncio há mais de dez anos, desde que trabalhámos juntos
no Diário de Notícias. Ter conseguido manter essa amizade ao longo
de tempos politicamente tão extremados sempre foi para mim uma
alegria e um consolo. Várias vezes discordámos em público (um dos
seus últimos tweets sobre mim: “custa-m mto ouvir joao miguel
tavares dizer tanto disparate”), mas sempre soubemos acarinhar a
diferença entre “tu disseste uma idiotice” e “tu és um
idiota”. É coisa muito rara no espaço público português, onde
sempre faltou o fair-play, sobretudo entre pessoas que ganham a vida
a escrever e a opinar, como é o nosso caso.
Eu gosto muito da
Fernanda, mas quero crer que se não gostasse estaria a dizer
exactamente o mesmo sobre o seu artigo na Visão: acredito nela.
Acredito no que disse sobre José Sócrates, não por fé cega na
nossa amizade, mas porque é coerente com o que já se sabe sobre o
processo. No seu longo texto, queixa-se sobretudo do Correio da Manhã
(CM) e da forma como está a ser tratada pelo Ministério Público.
Várias vezes defendi o CM, e ainda recentemente (“Os
interrogatórios a Sócrates devem ser divulgados?”, 31/5/2016)
argumentei a favor da sua legitimidade para divulgar as gravações
dos inquéritos judiciais. De 2012 a 2014, enquanto jornais e
televisões assobiavam para o ar, o CM continuava a acompanhar a vida
do ex-primeiro-ministro José Sócrates e a mostrar a gritante
contradição entre os seus rendimentos e o seu estilo de vida.
Muitos – demasiados – chamaram coscuvilhice àquilo que era
simplesmente jornalismo. Como se viu.
Isso não significa,
contudo, que a actuação do Correio da Manhã esteja isenta de erros
graves, o mais gritante dos quais é a forma como tem tratado o
envolvimento de Fernanda Câncio na Operação Marquês. O erro é
triplo: 1) pediu, por intermédio dos dois jornalistas que são
assistentes no processo, que ela fosse constituída arguida,
extrapassando largamente as funções do jornalismo; 2) enfiou Câncio
e Sofia Fava no mesmo saco, um total absurdo tendo em conta as
notícias que o próprio jornal tem escrito sobre o caso; 3) nunca se
dignou contactar a visada, culminando numa inaceitável declaração
de Octávio Ribeiro em entrevista ao jornal i: “Ela também tem os
nossos contactos e sabe onde são os nossos estúdios.”
Cozinhada em lume
brando há ano e meio, Fernanda Câncio teria algum dia de reagir.
Para alguém que sempre defendeu uma visão radical de protecção da
vida privada, não terá sido uma decisão fácil. Existe, acerca
disso, uma bela frase no seu artigo: “Não tenho forma de ganhar
esta guerra porque o simples facto de a travar significa que já a
perdi.” É um facto. Nós discordamos há muito quanto ao tema da
privacidade: a Fernanda sempre entendeu como invasiva qualquer
notícia acerca da sua vida pessoal; eu sempre entendi que a sua
relação com um primeiro-ministro, para mais sendo ela jornalista,
seria notícia em qualquer parte do mundo.
Sócrates, aliás, é
a demonstração ao vivo e a cores da razão porque o espaço privado
de um político – e de quem com ele se relaciona – sofre uma
forte compressão quando assume funções públicas. Sócrates é o
cúmulo da confusão entre público e privado: percebe-se hoje que a
sua defesa da privacidade era essencialmente instrumental – servia
para camuflar as sombras da sua vida pública. Que tenha sido o
próprio Sócrates a dinamitar a tese de Fernanda Câncio, eis o que
não deixa de ser uma cruel ironia.
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