quarta-feira, 18 de maio de 2016

Marcelo Rebelo de Sousa e o Acordo Ortográfico de 1990


Marcelo Rebelo de Sousa e o Acordo Ortográfico de 1990
FRANCISCO MIGUEL VALADA 18/05/2016 - PÚBLICO
O debate sobre o AO90 nunca foi aberto, por isso é um erro mencionar-se uma reabertura. Aquilo que houve foi uma imposição.

Há algumas semanas, soube que Marcelo Rebelo de Sousa, pouco depois de ter tomado posse como Presidente da República, decidira reabrir o debate sobre o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). De facto, a confirmar-se tal informação, tratar-se-ia de atitude, além de merecedora de várias ovações de pé, em absoluta harmonia com um artigo publicado no Expresso, dias antes da tomada de posse, no qual Rebelo de Sousa não adoptara o AO90. Entretanto, notícias na comunicação social têm confirmado essa vontade de reavaliar o ponto da situação ortográfica.

Contudo, neste contexto, “reabrir o debate” não será a opção mais feliz, pois existe um prefixo a mais. Salvo iniciativas pontuais (uns colóquios aqui, umas audições ali, umas audiências acolá), o debate sobre o AO90 nunca foi aberto, por isso é um erro mencionar-se uma reabertura. Aquilo que houve foi uma imposição. Aliás, a consequência imediata da escassez de sessões de esclarecimento e da abundância de propaganda é uma maior permeabilidade de leitores de português europeu em relação a opiniões, digamos, peculiares.

Por exemplo, há quem afirme publicamente que “se disser Egito escreve sem ‘p’, mas se disser Egipto escreve com ‘p’ (1)”; há quem divulgue a ideia de a “dupla grafia” ser “recorrente na história da língua portuguesa” e apresente exemplos tão sui generis como “regime”/“regímen”, “areia”/“arena”, “imprimido”/“impresso” ou “olho”/“óculo” (2); há igualmente quem escreva “agora ‘facto’ é igual a fato (de roupa)” (3). Convém ter bastante cautela com estas opiniões e só um debate esclarecedor dará a possibilidade de explicar o que está em causa — além de permitir aos autores destas opiniões virem a terreiro defender-se ou retractar-se.

Convém igualmente que haja, por fim, um órgão de soberania a pôr os pontos nos ii em relação a esta matéria e a tomar uma atitude responsável, sendo muito provavelmente o Presidente da República o mais indicado, porque se sente obrigado a praticar algo que não prega. Isto é, adopta uma grafia para inglês ver. Depois da confidência de Cavaco Silva (com a agravante de ter culpas no cartório) – "Todos os meus discursos saem com o acordo ortográfico mas eu, quando estou a escrever em casa, tenho alguma dificuldade e mantenho aquilo que aprendi na escola” (4) –, temos agora Rebelo de Sousa a afirmar: "o Presidente da República, nos documentos oficiais, tem de seguir o Acordo Ortográfico. Mas o cidadão Marcelo Rebelo de Sousa escrevia tal como escrevem os moçambicanos, que não é de acordo com o Acordo Ortográfico” (5).

Em peça da RTP (6), é perceptível que esta afirmação de Rebelo de Sousa provocou o riso de um dos interlocutores. Não percebi a piada. Isto é, o riso foi perceptível, mas a piada não foi: porque existe uma relação entre perceptível e perceber, porque perceptível é aquilo que pode ser percebido e percebido é o que se percebeu e perceber é ter a percepção de algo. O mesmo acontece com o que pode ser recebido, pois pode receber-se e receber é dar recepção. O mesmo acontece com concebido, conceber e concepção. Por isso existe aquele ‘p’, de -pç-, em concepção, percepção e recepção (7).

Por isso e não só. Aquele ‘p’ também permite que se evite a vulgarização de desastres, como a recente tradução portuguesa “a recessão de luz sobre os painéis solares” do original francês “la réception de la lumière sur les panneaux solaires” (8). Vindo ‘perceptível’ a talhe de foice, recordemos um factor importante: com o AO90, no Brasil, ‘perceptível’ mantém-se; com o AO90, em Portugal, ‘perceptível’ passa a ‘percetível’. Há quem lhe chame “unificação ortográfica” (9) ou “ortografia comum” (10).

Como é sabido, a Assembleia da República não tem percebido – ou não tem querido perceber: nesta matéria, como noutras, a doutrina diverge –as provas apresentadas sobre a supremacia dos defeitos do AO90 em relação às suas hipotéticas virtudes e as gritantes diferenças entre a quimera de um acordo ortográfico em abstracto e o desastre AO90 em concreto. Aliás, os actos e omissões deste órgão de soberania em relação a esta matéria podem ser apresentados como um excelente exemplo de assimetria entre a vontade do eleitor e a atitude do eleito.

O Governo, pela voz do primeiro-ministro, não toma “a iniciativa de desfazer o acordo ortográfico” (11) e, garante o ministro dos Negócios Estrangeiros, "aguarda serenamente" a ratificação do AO90 pelos restantes membros da CPLP. Isto é, "aguarda serenamente" que outros tomem iniciativas, em vez de se preocupar com as vítimas portuguesas que o desastre vai produzindo. Por exemplo, no Diário da República de 4/5/2016, o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa, nos “parâmetros preferenciais” para a contratação de um professor associado, determina o seguinte: “Ser titular do grau de Doutor em Estratégia ou História dos Fatos Sociais” (12). Exactamente: História dos Fatos.

Aguardando serenamente que outros ratifiquem aquilo que, atempadamente, membros da comunidade científica portuguesa recomendaram que não fosse ratificado por Portugal (13), o ministro dos Negócios Estrangeiros vai permitindo que, no Diário da República, além de continuarem a adoptar grafias inadmissíveis em português europeu, também deturpem a língua inglesa. Um excelente exemplo aparece na edição de 6/5/2016, com “questões relacionadas com fatores [sic] humanos” traduzido da seguinte forma: “human fator issues” (14). Fator issues? Efectivamente: fator issues. Esperemos que nenhum inglês veja.

Seria extremamente importante que a louvável iniciativa do Presidente da República produzisse resultados palpáveis, ou seja, que a Assembleia da República e o Governo abandonassem a gestão desta matéria nos termos actuais, prestando atenção aos pareceres emitidos pela comunidade científica e à vontade manifestada por diversos sectores da sociedade. Caso contrário, existe sempre aquela alternativa que não nos agrada, mas da qual não devemos abdicar, em caso de urgência: os representantes devolverem a palavra aos representados, através de um referendo (15). Esperemos que não seja necessário. Esperemos que Rebelo de Sousa resolva.


Versão ligeiramente modificada de texto originalmente publicado no portal da comunidade portuguesa na Bélgica

Autor de Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009)

1) Público, 17/11/201.

2) Público, 7/1/2010 e 15/7/2005.

3) Sol, 10/2/2012.

4) Agência Lusa, 22/6/2016.

5) Agência Lusa, 4/5/2016.

6) RTP, 3/5/2016.

7) Verifique-se o quadro apresentado entre 11:19 e 11:44.

8) Agência Lusa, 15/11/2014 (apud Aventar, 19/11/2014).

9) Aventar, 24/10/2014.

10) Público, 15/3/2015.

11) Público, 28/1/2016.

12) Diário da República, 2.ª série — N.º 86 — 4 de Maio de 2016, p. 14203.

13) Convém ler (aliás, convinha que tivessem sido lidos há muito tempo) os pareceres da Associação Portuguesa de Linguística e do Departamento de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, incluídos na documentação compilada por António Emiliano, com as consultas realizadas em 2005 pelo Instituto Camões sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 [dossier que contém todos os pedidos de parecer enviados a diversas instituições e todas as respostas recebidas] e alojada quer na página de António Emiliano, quer na Biblioteca do Desacordo Ortográfico, organizada por João Roque Dias.

14) Diário da República, 2.ª série — N.º 88 — 6 de Maio de 2016, p. 14439.


15) https://referendoao90.wordpress.com/documentos-para-recolha-de-assinaturas/

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