Expropriação
para fazer mesquita deixa desesperados senhorio e seus inquilinos
POR O CORVO • 17
MAIO, 2016
Uma providência
cautelar vai ainda tentar travar a tomada de posse administrativa,
marcada para 23 de maio, de dois prédios que darão lugar à nova
mesquita da comunidade do Bangladesh, a erguer junto ao Martim Moniz.
O dono dos imóveis pede uma indemnização quase quatro vezes
superior à oferecida pela Câmara de Lisboa, que deverá gastar 1,5
milhões de euros no templo. Fala em grandes prejuízos económicos e
diz-se disposto a resistir até ao fim ao que considera ser uma
grande injustiça. Os seus inquilinos, dois dos quais bangladeshis,
têm a sobrevivência económica ameaçada. Advogada do senhorio diz
que a CML tratou o processo “às três pancadas”.
Texto: Samuel Alemão
A angústia no rosto
de Shah Mohammed Rahmatullah, 48 anos, em escassos instantes toma o
lugar da incredulidade ostentada há um par de minutos. E faz passar
para um plano secundário a amarga ironia de este cidadão do
Bangladesh, a residir em Lisboa há nove anos, se encontrar na
iminência de ver a vida profissional e pessoal desmoronar-se no
espaço de uma semana, devido à projectada construção da nova
mesquita que servirá sobretudo os seus compatriotas da zona da
Mouraria. A Câmara Municipal de Lisboa (CML) vai expropriar o seu
senhorio, no dia 23 (segunda-feira), pelas 16h, e, por isso, ele terá
de sair do sítio onde tem uma loja, que sustenta a família, mas
também o seu sócio e cinco empregados.
“Veja, ela já tem
o visto pronto e tudo. Chega no dia 22 deste mês”, diz ao Corvo
Shah, mostrando no ecrã do smartphone uma fotografia do passaporte
da mulher, já devidamente visado pela embaixada portuguesa em Nova
Deli. Ela aterrará, com os dois filhos, no aeroporto Humberto
Delgado, na véspera da tomada administrativa do prédio onde
funciona o seu negócio de comunicações e informática, na Rua do
Benformoso. A câmara oferece-lhe uma indemnização de 42.500 euros
pela perda de posição de arrendamento, mas o empresário diz que
tal valor é insuficiente para o prejuízo que se avizinha. “Não
preciso desse dinheiro, preciso é do negócio. Como é que vou
sustentar a minha família e como é que estas pessoas vão viver?”,
questiona.
“Pagamos impostos
e segurança social em Portugal, não nos podem fazer uma coisa
destas. Não estamos a roubar ninguém, precisamos de trabalhar”,
afirma Shah M Rahmatullah, tentando esconder o melhor que pode um
misto de raiva e ultraje. “A comunidade é importante, mas antes
dela venho eu e o meu negócio. De que serve a comunidade, se nós
não sobrevivermos?”, pergunta Shah, que foi informado da situação
por António Barroso, o proprietário do imóvel onde está instalado
o seu negócio, quando este conversava com O Corvo, à entrada da
agência de viagens de Afzal Mohammed, 58, empresário natural de
Moçambique, que também se vê na iminência de sair, a troco de
apenas 10.200 euros.
O que já há meses
se adivinhava como uma questão de difícil resolução ameaça,
agora, tornar-se numa situação de contornos de aguda crise pessoal
para, pelo menos, uma dezena de pessoas: António Barroso e a mulher,
Shah e a família, bem como os seus sócio e empregados, sem contar
com os gerentes e funcionários da garagem da Rua da Palma, cujo
senhorio é a CML. O plano da autarquia, iniciado em 2012, de fazer
uma mesquita, e sob ela uma praça pública que ligará as ruas da
Palma e do Benformoso – obra que, no total, custará 1,5 milhões
de euros ao erário municipal -, chegou à fase em que é necessário
desocupar os terrenos dos imóveis que hoje ali existem. A utilidade
pública de tal operação foi aprovada pelo executivo camarário a
28 de Outubro passado.
A tomada de posse
administrativa das parcelas 4 e 5, correspondentes aos números 145 e
151 A e B, está marcada para as 16h da próxima segunda-feira (23 de
maio). “Não saio daqui. Acho que tenho o direito de resistir até
ao limite das minhas forças. Nem que seja a última coisa que faço”,
jura António Barroso, 63 anos, sentado no pequeno gabinete das
traseiras da sua loja de revenda de produtos de retrosaria, situada
na mesma rua. “Já o disse e volto a dizer: não me importo que
façam a mesquita, desde que me paguem o que é justo. Ou então
arranjam-me um prédio, nesta zona, onde eu consiga tirar o mesmo
rendimento que tenho agora”, explica, lembrando que toda a área em
redor do Intendente se tem valorizado bastante, nos últimos anos.
O dono dos imóveis
tem muito a perder. Além das lojas de Shah e Afzal, António Barroso
arrenda ainda um espaço que é agora ocupado por um restaurante de
comida bangladeshi e um armazém. Mas, além disso, num dos edifícios
– que recuperou da ruína, obedecendo a apertadas exigências de
preservação patrimonial impostas pela autarquia – tem ainda a sua
residência pessoal e três apartamentos que aluga a turistas –
tendo, em Março passado, pago 311 euros de taxa turística ao
município. Calculado o valor patrimonial dos prédios e os
rendimentos mensais de 6.050 euros tidos com os mesmos, António
Barroso e a mulher Maria Luísa pediram à Câmara de Lisboa um valor
indemnizatório global a rondar os dois milhões de euros.
Mas a autarquia
entende que tal valor “excede consideravelmente” a quantia
apurada como a certa pelos seus serviços: 531.850 euros. Ou seja,
quase um quarto daquilo que o proprietário entende ser o justo
valor. Tal disparidade, disse-lhe a CML, numa carta enviada a 12 de
abril, “inviabiliza a consecução da expropriação amigável”,
abrindo caminho à expropriação. Além disso, argumentava o
despacho da Direcção Municipal de Gestão Patrimonial da edilidade,
a contraproposta do senhorio “não pode sequer ser analisada pelo
Núcleo de Avaliadores desta direcção municipal, dado que não foi
acompanhada de relatório que sustente aquele valor”.
Uma argumentação
que é recusada por Tânia Mendes, a advogada de António Barroso,
que fala em graves falhas formais em todo o processo. “Essa
fundamentação não é correcta, porque o Código das Expropriações
não refere que seja obrigatória a apresentação de tal relatório
de avaliação. O que o código diz é que esse documento pode ser
apresentado, mas não o exige”, explica a jurista, considerando
“inócua” e “feita a despachar” a resposta dada pelos
serviços camarários. Esta é uma entre as diversas razões pela
qual foi apresentada junto da CML uma reclamação formal.
“Entendemos que não estão reunidos os requisitos legais para
avançar com a posse administrativa”, diz, salientando que houve
“várias questões formais que não foram respeitadas”.
A advogada explica
que, dada a situação actual do processo, será necessário pensar
numa actuação em diversas frentes, para além da já mencionada
reclamação junto aos serviços camarários. “Neste momento, vamos
concentrarmo-nos em duas vias. Num primeiro plano, e por ser uma
situação mais próxima, apresentaremos uma providência cautelar,
embora não saibamos se vai surtir efeito. Sobretudo numa situação
em que se alega a utilidade pública da expropriação. Por outro
lado, estamos a preparar uma acção, junto do Tribunal
Administrativo e Fiscal de Lisboa, para requerer a nulidade do
processo administrativo de utilidade pública”, informa a advogada,
sublinhando o facto de “alguns requisitos legais não terem sido
respeitados”.
Tânia Mendes, que
acusa a Câmara de Lisboa de tratar este assunto “como se fosse
apenas uma questão de números” e de lidar com todo o processo
como se o mesmo se tratasse de “um facto consumado”, afirma que
este é um bom exemplo de como a máquina do Estado se vira contra os
cidadãos, em vez de os ajudar. “Da parte da câmara, fez-se tudo
às três pancadas. O senhor Barroso nunca foi chamado para
dialogarem com ele. Só lá fomos, em 2 de Fevereiro passado, por
insistência da nossa parte”, explica a advogada, considerando que
a CML acaba por deter um poder “quase diabólico”, ao fundamentar
a sua decisão num “suposto interesse público” por ela
decretado.
Para além do
dirimir de argumentos relativos à legalidade do processo
administrativo, o evidente desacordo entre as partes, no que a CML
qualifica como “tentativa de expropriação amigável”, obrigará
à constituição de um tribunal arbitral para a definição de um
valor. O que poderá levar, depois, ao travar de uma batalha judicial
nos tribunais civis em torno dos montantes considerados justos para a
tomada de posse administrativa. Tanto este processo como o que vier a
correr nos tribunais administrativos poderão demorar anos.
Mas António
Barroso afirma-se resoluto na defesa do seu património, salientando
que apenas defende o que é seu e da sua família. Apesar de não se
cansar de sublinhar que nada tem contra a construção da nova
mesquita, questiona a necessidade da mesma. “Já falei com diversos
membros da comunidade do Bangladesh, que me dizem que não têm
dinheiro para pagar a parte que lhes caberá do novo templo. Ainda
por cima, até porque ainda nem sequer conseguiram pagar as obras na
mesquita que existe no Beco de São Marçal” – uma das duas
pequenas mesquita existentes na Mouraria, e que deverão dar lugar ao
novo templo.
Sem comentários:
Enviar um comentário