Enganem-me,
que eu gosto
JOÃO MIGUEL TAVARES
19/05/2016 - PÚBLICO
O
escândalo é este: tudo isto era previsível, e era exactamente por
ser previsível que uma política de reposições aceleradas é um
crime.
Hergé percebeu tudo
sobre a malandrice portuguesa quando criou Oliveira da Figueira para
alívio cómico nos livros de Tintim: com bonomia e um sorriso nos
lábios, somos excelentes a aldrabar. Tintim encontra pela primeira
vez o vendedor português em Os Charutos do Faraó, e acaba a cena
carregado de tralha que não lhe serve para nada, sem sequer dar por
isso. “Que diacho de homem!...”, suspira Tintim após adquirir um
par de skis para usar no deserto. “Felizmente, não me deixei ir na
conversa dele, se não acabava por lhe comprar uma data de coisas
perfeitamente inúteis.”
António Costa é o
novo Oliveira da Figueira. Enquanto vai subindo alegremente nas
sondagens (no barómetro mensal da Aximagem, o PS já está seis
pontos à frente do PSD), o país continua a comprar-lhe vários
pares de skis para usar no deserto. Ainda na semana passada, quando
confrontado com os péssimos números do crescimento, do desemprego,
do investimento e das exportações, o primeiro-ministro declarou
oliveirafigueiramente: “Se não tivéssemos apostado na devolução
de rendimentos às famílias e no aumento da procura interna, as
dificuldades de crescimento seriam ainda maiores.”
É uma frase
extraordinária. Reparem: António Costa recorre a uma política que
boa parte dos economistas garantem que irá estagnar o país; o país
estagna; e Costa conclui: “Se não tivéssemos apostado no mercado
interno, ainda iria estagnar mais.” Ó senhor Oliveira da Figueira,
eu diria que há aí pelo menos duas notáveis aldrabices.
Para ilustrar a
primeira aldrabice, regressemos ao par de skis: eles até podem ser
óptimos, só que não servem para o deserto. Quando apelidei as
políticas do regoverno de keynesianismo para totós, não é porque
eu acredite que o investimento público, ou o aumento de salários,
seja sempre mau, em qualquer altura – é porque Portugal não tem,
neste momento, condições para se endividar mais. Alguém disse, e
com inteira razão, que pedir a uma pessoa para dizer se é a favor
ou contra o investimento público é como pedir-lhe para dizer se é
a favor ou contra luzes acesas. Depende, não é? Na Alemanha, o
Estado está a gastar de menos. Em Portugal, está a gastar de mais.
Mas a segunda
aldrabice é a mais escandalosa. Os motivos que estão a ser
apontados pelo governo, e por muitos opinantes que concordam com as
suas políticas, para a estagnação económica portuguesa e para o
consequente erro nas previsões do crescimento, são inaceitáveis.
Peguemos na crise em Angola, um mercado fundamental na performance
das exportações. Angola cortou 45% nas encomendas aos exportadores
nacionais, o que, só por si, levou a uma queda de 2% nas exportações
do primeiro trimestre. Mas digam-me: alguém tinha dúvidas de que
isto iria acontecer?
É que o ponto é
este, e não outro. O petróleo bateu nos 40 dólares por barril em
Agosto de 2015. Foi há nove meses. O próprio António Costa referiu
em entrevista à SIC que a desaceleração já vem do segundo mestre
de 2015. Verdade. Mas, então, o que é que justifica as previsões
absurdas de crescimento por parte do governo? António Costa não
pode empurrar os portugueses do parapeito e dizer de seguida:
“reparem que a culpa é da gravidade”. O escândalo é este: tudo
isto era previsível, e era exactamente por ser previsível que uma
política de reposições aceleradas é um crime. Mas lá está:
desde que o estripador seja amável, nós até abrimos a camisa para
ele poder espetar melhor.
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