Contra
o acordo infame
ANTÓNIO GUERREIRO
13/05/2016 / PÚBLICO
Regressemos a uma
questão que não esmoreceu com o tempo e ganhou nas últimas semanas
um novo vigor: o Acordo Ortográfico. Inúteis foram as tentativas
dos defensores do AO90 para reduzir a discussão a uma espécie de
Querela dos Antigos e dos Modernos, por mais que do lado anti-Acordo
se tenha levantado muito ruído, produzido por alguns sectores mais
dados à exaltação nacionalista, com o seu débil arsenal
ideológico, do que à argumentação racional. Mas esse ruído
tornou-se mais audível porque aos defensores do Acordo bastou-lhes
ficarem calados ou dizer que o Acordo era bom porque sim. Apenas e
sempre porque sim. O máximo risco que correram foi o de ficarem
colados à grande operação política que está no início, no meio
e no fim de todo o processo. O Acordo entrou em vigor por força da
lei, em obediência a uma construção ideológica chamada lusofonia,
mas não por força da aceitação pelos cidadãos e da aprovação
pelas instâncias de carácter científico. Na história da nossa
democracia, não há procedimento tão absurdo e tão próprio de um
poder totalitário como este. Assistimos desde o início a manobras
visando calar toda a contestação, mesmo a de um órgão de
aconselhamento do Governo em matéria de língua, a Comissão
Nacional de Língua Portuguesa, coordenada então pelo Professor
Vítor Manuel Aguiar e Silva que, por ter elaborado um parecer
bastante crítico do anteprojecto de 1988, foi impedido de ter acesso
ao texto do AO assinado em 1990. Recordemos as palavras de Aguiar e
Silva, quando se demitiu: “Há pontos escandalosos do ponto de
vista técnico-linguístico, como o da facultatividade ortográfica,
que coloca grandes problemas de natureza pedagógico-didáctica.”
De um modo geral, os linguistas portugueses que se pronunciaram sobre
o AO90 insistiram na ideia de que a unificação da ortografia do
português não passava de uma grande ilusão que iria ser desmentida
pelas facultatividades e duplas grafias, dando origem a problemas no
sistema ortográfico; e, contra os próprios objectivos do Acordo,
criando diferenças onde elas não existiam antes (a provável não
ratificação do AO90 por Angola e Moçambique só reforça este
argumento). Quem previa a instauração de alguma desordem
ortográfica e consequências indesejáveis sobre outros componentes
do sistema linguístico viu confirmadas as suas conjecturas em
pouquíssimo tempo. Os jornais e as televisões que aderiram ao AO
tornaram-se um mostruário de aberrações ortográficas. Os erros
induzidos pelo Acordo são legião: abundam, por exemplo, os fatos em
vez de factos. Para já não falar das facultatividades que jamais
alguém irá respeitar: quem é que sabe que decepção e deceção
são facultativas? Só quem conhece a “norma culta” no Brasil,
porque é ela que determina essa facultatividade. E quem é que
alguma vez pode entender a regra que faz com que cor-de-rosa se
escreva com hífen e cor de laranja sem hífen? Quem é que pode
confiar num sistema ortográfico que é uma verdadeira máquina de
produzir excepções? Que espécie de Acordo é este que, visando a
unificação da ortografia, cria grafias duplas e até múltiplas? A
demonstração mais eloquente de que se trata de uma aberração está
nos próprios documentos oficiais e nas publicações da imprensa que
adoptaram o AO90. Mas o mais inquietante é que já começámos a
ouvir dizer coisas como receção, com o e fechado como se fosse
recessão. No caso de receção, a supressão da consoante muda até
é facultativa. Mas como podemos sabê-lo? O AO90 responde:
conhecendo a “norma culta” brasileira. Simples, não é?
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