OPINIÃO
E
se parássemos para pensar?
TERESA DE SOUSA
29/05/2016 – PÚBLICO
Os
impostos que pagamos são para manter um ensino público que garanta
da melhor forma possível um princípio base das democracias
europeias: a igualdade de oportunidades
1.Há quinze dias,
Manuela Ferreira Leite disse no seu comentário na TVI que não
percebia qual era o problema da “guerra” entre os colégios
privados subsidiados pelo Estado para suprir falhas do ensino público
e a decisão do Governo de dispensar alguns. Como o que disse ia
contra a corrente, não sei se o seu pensamento ficou absolutamente
claro. Mas é a mais pura das verdades que, mesmo assim, não impediu
uma polémica em que já ninguém sabe exactamente o que está em
causa. Se uma questão ideológica sobre a melhor forma de garantir a
educação para todos (Estado ou a compra de serviços a privados) ou
uma mera questão de interpretação da lei.
O ruído foi
deixando o essencial de fora. Basta estar atento aos cartazes que
aparecem nas manifestações para perceber que há nisto tudo uma
enorme confusão. “Pago impostos, tenho direito a escolher a escola
dos meus filhos”, resume perfeitamente a confusão instalada no
debate. Não. Não tem esse direito. Os impostos que pagamos são
para manter um ensino público que garanta da melhor forma possível
um princípio base das democracias europeias: a igualdade de
oportunidades. Sabemos que a realidade não permite cumprir
totalmente este princípio, porque nele interferem problemas de
discriminação social difíceis de resolver. Mas também sabemos que
até se provar o contrário esta é a melhor forma de manter esse
princípio.
Qualquer família é
livre de escolher a escola dos filhos: pública e, portanto,
gratuita; privada e, portanto, pagando as propinas devidas.
Lembrei-me, ao ver este cartaz, de outro caso idêntico que se passou
há algum tempo e que revela o mesmo espírito, quando o Governo, em
seu pleno direito, decidiu fechar a Maternidade Alfredo da Costa e
transferir para a Estefânia e Santa Maria os seus serviços, aliás
de altíssima qualidade. Num pequeno ajuntamento à porta da
maternidade (muitos só eram mesmo os jornalistas), um outro cartaz
ficou-me na memória: “Tenho direito ao lugar onde nasci”. Mais
um engano total. Não tem. Tem apenas direito a receber a melhor
assistência possível numa maternidade pública. Aliás, se
levássemos em consideração que metade da população de Lisboa é
natural de São Sebastião da Pedreira porque nasceu na MAC,
imagine-se o que seria esta manifestação se a reivindicação
pegasse. O que foi ainda mais perturbador foi o facto de um tribunal
de Lisboa ter aceite uma providência cautelar para suspender a
decisão do Governo, como se não se tratasse de um mero acto de
gestão, de resto bem fundamentado nas normas mais avançadas: a
conveniência de os partos decorrerem junto de um hospital com todos
os recursos disponíveis, caso haja complicações, não com a
criança, mas com a mãe.
Outro caso
paradigmático foi o da concentração das maternidades em centros
hospitalares mais completos, de forma a que as crianças nasçam em
serviços com mais de mil partos por ano, ou seja, com a experiência
e a capacidade necessárias para garantir a máxima segurança. É,
aliás, uma norma recomendada pela OMS. Durante meses, o ministro da
Saúde, Correia de Campos, enfrentou manifestações ruidosas em
todos os sítios afectados por esta alteração. Não me lembro
exactamente dos cartazes mas os jornais davam voz às mães que
queriam dar à luz em território nacional, e não em Badajoz, como
estava previsto para o interior alentejano. Por azar, houve uma
criança que nasceu na ambulância a caminho da maternidade
espanhola. Foi um escândalo. De repente, o problema desapareceu.
Depreende-se que tudo deve estar a correr bem, e a única referência
que vi a este episódio algum tempo depois foi uma mãe, entrevistada
em Badajoz, a dizer que tinha gostado imenso do serviço, que o
hospital era excelente, etc.. Com tudo o que já nos aconteceu, ainda
conseguimos manter um SNS de grande qualidade, que garante aquilo que
do meu ponto de vista é o que melhor garante uma sociedade coesa e
que quer ser justa, sobretudo quando se trata do valor fundamental da
vida humana.
Vai restar alguma
coisa desta gritaria sobre as escolas privadas que o Estado vai
deixar de financiar? Duvido. A não ser a busca de uma primeira
divergência entre Marcelo e Costa, o novo passatempo nacional. Mesmo
assim, o Presidente teve de colocar os pontos nos ii em relação ao
comunicado difundido pelo Movimento de Defesa da Escola Ponto, que
recebeu em Belém e que utilizou indevidamente frases suas.
2. A direita, com
toda a legitimidade, inoculou no debate as suas ideias sobre o
Estado, segundo as quais é preciso garantir o serviço, mas não o
seu fornecimento, que pode ser integralmente privado. É uma velha
ideia que até pode parecer apelativa mas que, por alguma razão,
ainda não foi levada até ao fim por nenhuma democracia europeia ou,
sequer, nos EUA. Qual seria a escola privada que estaria em condições
de prestar o serviço de uma escola pública, por exemplo, num dos
bairros mais pobres dos arredores de Lisboa, onde muitos dos alunos
são de origem africana? Já fui a uma dessas escolas para falar da
Europa e saí de lá com uma admiração enorme por quem a dirige e
por quem lá ensina. Poderiam ir todos inscrever-se no São João de
Brito com as propinas pagas pelo Estado? Sabemos a resposta. Essa
liberdade de escolha de que tanto se fala esbarra com a vontade dos
colégios privados e com profundas desigualdades sociais. O Estado
teria de superar essa falha privada, abrindo as portas a serviços
públicos feitos apenas para os pobres. Resultado? Teríamos de ir
até outros continentes menos desenvolvidos para os encontrar.
Finalmente, os rankings mostram-nos que escola privada não significa
melhor qualidade. Há de tudo. Todas as democracias, sem excepção,
se debatem com os mesmos problemas e os vão resolvendo à sua
maneira.
3.Vale a pena olhar
para o que se está a passar na Suécia, um país que já tinha
escolaridade obrigatória no final do seculo XIX e que, com os outros
nórdicos, era dado como um exemplo de sucesso na educação. O que
hoje se sabe é que a Suécia caiu drasticamente nos rankings do
PISA, obrigando a sociedade a fazer um grande debate sobre o que
aconteceu. Pode haver muitas razões, mas uma delas está a merecer a
máxima atenção. Nos anos 90, o sistema foi reformado de alto a
baixo, transferindo para as escolas privadas a totalidade do ensino,
devidamente financiado pelo Estado. São as chamadas free schools
(escolas privadas financiadas directamente aos alunos, que podem
escolher a que quiserem), que o anterior Governo britânico (liderado
por Cameron) andou a estudar in loco para seguir o mesmo caminho, mas
que agora os resultados suecos estão a pôr em causa. No Reino
Unido, as free schools que já foram criadas não podem gerar lucro
(e não consta que a cultura britânica tenha horror a tal coisa). Na
Suécia podem. Dizia o ministro da Educação sueco, há já algum
tempo, ao Guardian, que não haveria uma única causa para o
fracasso, mas uma combinação que “ajudou a fragmentar o sistema
escolar” e abriu as portas a uma maior desigualdade. “O sistema
escolar não é um mercado em que cada um tem as mesmas
possibilidades e a mesma informação”, disse ele. “Verificou-se
que alguns pais, os mais educados e com maios recursos, são quem tem
a possibilidade de exercer a escolha”. Estamos a falar de um país
muito rico e muito educado.
Sem comentários:
Enviar um comentário