A
escola pública não se defende por decreto
Manuel Carvalho /
15-5-2016 / PÚBLICO
Infelizmente, porém,
o Governo apanhou a boleia do provável fim dos contratos para
regressar à oposição anacrónica entre a bondade do Estado e o
pecado original dos privados, os partidos da esquerda aproveitaram a
ocasião para fazer um velho ajuste de contas ideológico com uma
ofensiva sobre os “interesses”, o PSD regressou aos seus
devaneios da liberdade de escolha que deram o resultado que deram em
países como a Suécia e as escolas privadas lançaram-se numa
campanha de vitimização sem sentido nem proveito. No meio da
barafunda, prevalece um astro feliz: o presidente da Fenprof. Há
muito que o sultão dos professores do Estado não se sentia tão
abençoado.
Quando se olha para
as escolas públicas como múmias isoladas das dinâmicas do mundo
pode-se estar a agir com bons propósitos, mas falha-se no essencial
— verificar se elas cumprem de facto o que o país espera delas. O
pior dano que se lhes pode causar é reduzi-las a um princípio
ideológico consagrado na Constituição. Se as escolas públicas
forem más, se os professores deixarem de ser zelosos com as suas
funções e declinarem as suas enormes responsabilidades sociais, se
o ensino e a integração dos alunos estiverem abaixo das
expectativas, as escolas públicas estarão condenadas a definhar.
Nenhuma família com o mínimo de recursos para pagar propinas no
sistema privado hesitará um segundo em tirar de lá os seus filhos.
Se a escola pública for má, ficará destinada a transformar-se num
albergue de filhos de famílias com menores recursos, no qual a
exigência e a integração social tenderão a baixar de nível.
Se a ideia de um
país partido à imagem e semelhança da América Latina é um
pesadelo, a defesa da escola pública tem de ser uma bandeira
colectiva. Para que as escolas públicas continuem a ser o motor de
integração social onde diferentes estratos da população (em
termos culturais ou de rendimentos) se encontram, se relacionam e
aprendem a conviver, é necessário que sejam capazes de competir com
as privadas. Para que essa competição seja justa, o Estado tem de
providenciar recursos necessários ao seu bom funcionamento. Tem de
as proteger e dedicar-lhes atenção e investimento. Tem de saber as
suas diferenças e cuidar das mais fracas — merece por isso elogio
a decisão do Governo em acabar com os créditos horários que Nuno
Crato tinha concedido às melhores. Tem se combater essa prática
escandalosa de algumas privadas que inflacionam notas internas para
permitir vantagens aos seus alunos no acesso à universidade. Mas tem
também de aprovar critérios de exigência que garantam a qualidade
do seu desempenho.
Quando o Ministério
da Educação afirma que, perante um cenário de carência
financeira, não faz sentido financiar numa mesma freguesia uma
escola pública e uma escola privada, é difícil não lhe dar razão.
Mas quando acrescenta que vai ser necessário fechar escolas privadas
para proteger as públicas sem se preocupar com a qualidade do
desempenho de umas e outras, está a burocratizar o conceito de
escola pública e a criar um dogma que a prazo a pode comprometer. O
maior erro do ministro não foi por isso dizer que não está
disposto a pagar redundâncias na oferta escolar. O que é menos
consensual na sua decisão é a ideia de que a escola pública tem de
existir apenas porque é gerida pelo Estado.
Em Portugal, as
privadas existem em número reduzido porque a rede pública tem sido
capaz de competir com elas. Ao contrário do que muitos insinuam, a
generalidade das nossas escolas públicas funciona bem. Em oposição
ao que muitos sentenciam, a maioria esmagadora dos professores da
rede pública é competente, é exigente e é empenhada. Os docentes
que as dirigem fazem um bom trabalho. Por regra, a escola pública
garante que todas as crianças e jovens, pobres ou ricas, de famílias
normais ou desestruturadas, católicos ou muçulmanos dispõem de um
lugar para se educarem e integrarem numa sociedade plural e livre.
Esse bem precioso para um país decente deve ser estimado e
defendido. Mas não é pela balela ideológica ou pela imposição
constitucional que se chegará lá. É pela comparação que puder
ser feita entre os seus resultados e os resultados das privadas. É
uma estratégia que se faz pela positiva, não pela aversão aos
legítimos interesses de empresas ou da Igreja.
Ainda que no
essencial o Governo tenha razão em recusar o pagamento com dinheiro
público de serviços que o público não carece, falhou no critério
que vai determinar os contratos que vão perdurar e os que vão ser
abolidos. Se numa determinada freguesia forem suspensos os acordos
com boas escolas privadas para garantir a viabilidade de más escolas
públicas, o Governo prestará um mau serviço ao interesse
colectivo. Nenhuma família aceitará de bom-tom que os seus filhos
sejam retirados de boas escolas para serem inscritos em escolas
duvidosas. E terão toda a razão. Ao protestarem, estarão a lutar
pelo seu interesse que é também o interesse público.
Se por acaso o
Governo cair no fundamentalismo do dogma, a escola pública cairá
numa perigosa sensação de irresponsabilidade e de inimputabilidade.
É nessa atmosfera que sobrevive o sindicalismo de Mário Nogueira.
Para ele, como para uma boa parte dos sindicalistas que o acompanham,
a escola é um lugar onde há muito cuidado para carreiras, vínculos
e diuturnidades e pouco espaço para a qualidade do ensino ou para os
alunos. Nogueira e a Fenprof rejeitaram e rejeitarão qualquer
comparação entre escolas públicas e privadas como recusa toda e
qualquer medida que implique avaliação, hierarquia na gestão
escolar, descentralização pela proximidade às autarquias, rankings
ou o que quer que seja. Para ele, o mundo das escolas deve estar
cristalizado numa ordem celestial cimentada com palavras de ordem e o
beneplácito do poder político.
Como na saúde ou a
assistência aos idosos, a educação pública está sob a ameaça
dos cortes e dos interesses das corporações — alguns legítimos,
outros nem tanto.
O Estado não deve
desviar os seus recursos financeiros para o sector privado, mas se e
só se em causa houver garantia que a escola pública é capaz de
prestar o serviço que a comunidade dela espera. Se falhar, bem pode
o PS ou o Bloco vir com um bloco de princípios em sua defesa que a
comunidade deixará de a apoiar. Para que isso não aconteça, os
critérios a aplicar na próxima geração de contratos de associação
deveriam incluir a ponderação da qualidade do serviço público
prestado. Indo por aí, muitas escolas públicas sairão bem na
fotografia. Outras nem tanto. Constatada a verdade, seria intolerável
que o Estado protegesse a incompetência sob a égide dos bons
princípios.
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