Casa
Ventura Terra. Um tesouro da Arte Nova em Lisboa que ninguém quer
deixar morrer
14/5/2016,
OBSERVADOR
Assinalam-se
em 2016 os 150 anos do nascimento de Ventura Terra, arquiteto
marcante na paisagem lisboeta que legou uma casa às Belas Artes.
Fomos conhecer as histórias de quem ainda lá vive.
Há uns anos,
Francisco Silva Passos e a mulher Isabel andavam na Assembleia da
República a ver uma exposição sobre o arquiteto Miguel Ventura
Terra quando tiveram uma pequena surpresa. A visita ao Palácio de
São Bento não tinha nada de surpreendente: Francisco é um
apaixonado pela Lisboa desaparecida, por arquitetura em geral e por
Ventura Terra em particular. A casa em que Francisco e Isabel moram
há décadas foi desenhada por este arquiteto, que nasceu há
precisamente 150 anos. Depois de tanto tempo passado entre aquelas
paredes, o casal já não esperava ver algo inédito. Mas,numa das
últimas salas da exposição, Francisco e Isabel são surpreendidos:
“Às duas por três vemos uma fotografia dele na nossa varanda”.
Ele, Ventura Terra, na varanda da casa que construiu no número 57 da
Rua Alexandre Herculano, em Lisboa, no início do século XX. Ele,
Ventura Terra, na varanda da casa que Francisco habita desde os três
anos e onde criou filhos e netos.
No extenso e alto
corredor do apartamento onde mora a família Silva Passos ainda
cheira a Belle Époque e às soirées que há tanto já passaram de
moda. “Havia três vivendas na rua” quando Francisco veio para
aqui viver, em 1947, ainda criança. Quem olha hoje pela janela da
casa para uma Alexandre Herculano onde o tráfego não abranda e os
edifícios altos e envidraçados são a regra, dificilmente consegue
imaginar esse cenário. “Havia muito pouco trânsito. Automóveis
eram para gente rica”, continua a recordar Francisco, que muito
brincou naqueles passeios, quando a rua estava quase na fronteira da
cidade. Nem de propósito. Enquanto relata estas memórias, ouve-se
um estrondo lá em baixo. Dois carros acabaram de bater.
A ideia de
isolamento também se sente dentro do edifício, de quatro andares,
uma casa por piso. Ao entrar em cada apartamento, foge-se do bulício
da cidade e é-se recebido por uma espaçosa sala de estar, onde o
sol ilumina os estuques do teto. Ao lado, na biblioteca, uma
imponente lareira em mármore do tamanho de um homem garante
aconchego nas noites de inverno. Na sala de jantar, tetos de rica
madeira trabalhada. Ao fundo do corredor, escondidos atrás de uma
porta discreta, os inúmeros quartos de dormir. Tudo aqui respira
passado…
“Vi jeitos de isto
tudo desaparecer”
…mas foi com custo
que chegou ao presente. “Tudo quanto aqui vê é dinheiro que eu
invisto”, dispara Maria Fernanda Carvalho, moradora noutro dos
apartamentos do prédio. Por todo o lado se veem manchas de humidade
e madeiras degradadas. No hall de entrada do edifício, a tinta está
toda a estalar devido a infiltrações. No teto das escadas, entre o
terceiro e o quarto andar, um buraco está por ser tapado há vários
anos. Num dos apartamentos, a moradora tem de dormir com um buraco no
telhado mesmo por cima da cama. E cá fora já desapareceram muitos
azulejos do friso criado pela Fábrica de Cerâmica das Devesas, em
Gaia. “A gente tem de passar aqui a vida a fazer obras”, confirma
Francisco Silva Passos, cujo andar está em bom estado devido aos
muitos investimentos que ali fez.
O hall de entrada da
Casa Ventura Terra
FÁBIO
PINTO/OBSERVADOR
10 fotos
A Casa Ventura
Terra, assim conhecida por ter sido desenhada pelo arquiteto para
habitação própria em 1902, foi o segundo edifício em Lisboa a
receber o Prémio Valmor. Trata-se de um galardão, outrora muito
prestigiado, destinado a premiar a melhor construção feita na
capital num determinado ano. Ventura Terra recebeu-o quatro vezes e
ainda teve uma menção honrosa. Há uma placa na fachada da casa a
lembrá-lo. Há também outra placa que não engana:
Esta casa foi legada
às escolas de Belas Artes de Lisboa e Porto pelo distinto arquitecto
Miguel Ventura Terra, que nela faleceu em 30 de Abril de 1919,
destinando o seu rendimento líquido para pensões a estudantes
pobres das escolas que mostrem decidida vocação para as belas
artes.”
Isto não impediu
que, durante muitos anos, os moradores vivessem confusos. Apesar de
sempre terem pago a renda à entidade que é hoje a Faculdade de
Belas Artes, o edifício passou por várias mãos dentro do Estado.
Talvez por isso, foi votado a um relativo esquecimento até há pouco
tempo. Na segunda-feira passada começaram obras que já não
aconteciam desde 1995. Há cerca de dois meses, o reitor da
Universidade de Lisboa visitou o prédio, que agora é da
responsabilidade daquela instituição. António Manuel da Cruz Serra
terá ficado impressionado com o estado do edifício e decidiu
avançar com os trabalhos. Segundo uma fonte da reitoria, estas obras
visam substituir a cobertura e fazer manutenção básica, tanto no
exterior, como no interior das habitações.
“As persianas
estão um desastre, as janelas não podem ser alteradas, as madeiras
estão degradadas…” Francisco Silva Passos deixa a frase por
acabar e encolhe os ombros. Lembra-se bem do dia, algures nos anos 80
ou 90, em que começou a construção da sede da companhia de seguros
Império, mesmo ao lado da Casa Ventura Terra. Literalmente ao lado:
os vitrais que antigamente deixavam entrar a luz do sol para as
escadas estão hoje tapados por betão. Quando começaram as
escavações para os nove pisos subterrâneos do edifício da
Império, as fundações da Ventura Terra ficaram “penduradas”. E
a casa inclinou. “As paredes aqui começaram todas a estalar. Os
azulejos da minha cozinha saltavam poc, poc, poc. Eu vi jeitos de
isto tudo desaparecer”, diz Francisco.
Maria Fernanda
Carvalho tem uma história semelhante. “Fui em serviço quinze dias
para Paris e quando cheguei tive um susto. Tinha um estendal à minha
porta.” Eram os bombeiros e a polícia: a Casa Ventura Terra tinha
rachado. Maria Fernanda ficou com “uma cratera no meio da cozinha”
e durante mais de um ano esteve impedida de entrar em três divisões
da casa.
Um elevador a água
e outros segredos
Para lá do que
escondiam as portas de cada apartamento, a Casa Ventura Terra tinha
outros pormenores que testemunham a época em que foi construída e
que se mantiveram até muito tarde, quando Lisboa já se estava a
virar para as Avenidas Novas e a dar resposta de habitação a uma
classe média pouco interessada em relíquias. Por exemplo, até aos
anos 70, o elevador do edifício era movido por um sistema a água.
Era ao porteiro, então regra em todas as casas de bem — e que
tinha uma divisão própria para dormir logo ao lado do hall de
entrada — que competia mexer com o elevador. Puxava uma corda, a
água entrava para um depósito que servia de contrapeso e a cabine
subia. Para descer, deixava-se a água escorrer por um cano.
Outra coisa que
existia originalmente, e que o tempo tornou obsoleto, eram
compartimentos para arrumação de carvão e lenha, que alimentavam o
sistema de aquecimento de cada casa. Os moradores mais antigos do
prédio ainda falam com um certo brilho nos olhos dos carvoeiros, da
leiteira que passava religiosamente todas as manhãs, do padeiro que
trazia o pão ainda quente para o pequeno-almoço, do merceeiro que
subia as escadas com um cesto de verga às costas, das dezenas de
carroças que paravam do outro lado da rua para deixar as frutas e
hortaliças no Mercado do Rato.
Miguel_Ventura_Terra
Retrato de Miguel
Ventura Terra, de Veloso Salgado, existente na Sala dos Passos
Perdidos, em São Bento. (Fonte: Wikimedia Commons)
“Modernidade que
rompe com o reinante”
O nome de Miguel
Ventura Terra pode não ser conhecido para a generalidade das
pessoas, mas a obra deste arquiteto multifacetado está presente um
pouco por todo o país. Além desta casa, na Rua Alexandre Herculano
há mais um edifício emblemático com a sua assinatura, também
vencedor do Prémio Valmor (1911). Mas uma lista não exaustiva da
sua obra inclui ainda, em Lisboa, os projetos dos liceus Camões,
Pedro Nunes e Maria Amália, a Casa dos Viscondes de Valmor (na
Avenida da República, Prémio Valmor em 1906), o Palacete Mendonça
(na Rua Marquês de Fronteira, Prémio Valmor em 1909 e comprada
recentemente pela Fundação Aga Khan), a sede do atual Santander
Totta (na Rua do Ouro), a Maternidade Alfredo da Costa (Avenida 5 de
Outubro), o já desaparecido Hotel Aviz (onde hoje é o Sheraton) e a
sinagoga. Além disso, foi responsável pela renovação do Palácio
de São Bento, pelo Santuário de Santa Luzia (Viana do Castelo),
pelo edifício do Banco de Portugal no Porto e pelo Museu de
Esposende, entre outras obras no mesmo concelho.
Nascido no Minho em
1866 — há 150 anos –, Ventura Terra começou a formação
académica no Porto e foi um dos vários arquitetos portugueses da
época que estudou em Paris. Na altura, a capital francesa estava na
vanguarda da arquitetura europeia e mostrava ao mundo novas formas de
usar os materiais e os estilos. Os grandes edifícios em vidro e
ferro surgiram nesta altura, mas a utilização de elementos góticos,
renascentistas, bizantinos, árabes e barrocos também eram sinal de
modernidade.
A base da estátua
do Duque de Saldanha tem desenho de Miguel Ventura Terra. Foi
inaugurada em 1909
Arquivo Municipal de
Lisboa / Legado Seixas
12 fotos
À data da
construção, a casa da Alexandre Herculano foi considerada inovadora
no panorama dos edifícios de habitação então existentes em Lisboa
e no país. O júri do Prémio Valmor sublinhou isso mesmo, ao
elogiar a “corretíssima composição de linhas e original efeito
decorativo” e “uma certa modernidade ao estilo arte nova que
rompe com o estilo reinante”.
Porém, estes
elogios, e o facto de a casa ser Imóvel de Interesse Público desde
2006, de pouco têm valido. “Os inquilinos é que se preocuparam em
salvar o prédio. As cartas infindas que eu escrevi para o diretor da
faculdade… A resposta era sempre a mesma: ‘não há dinheiro'”,
lembra Maria Fernanda Carvalho, que não compreende como é que uma
joia arquitetónica como esta só agora é que está finalmente a ter
as obras de que precisava tão urgentemente. “Como é possível
deixarem chegar isto a este estado?”
Historietas do
passado, anseios do futuro
Atualmente, a Casa
Ventura Terra está completamente ocupada. Três apartamentos são
usados para habitação e parte do último andar é a sede da
Associação Portuguesa de Astrónomos Amadores, aqui instalada há
mais de vinte anos. Há ainda um andar, onde não mora ninguém, que
é usado como depósito da Faculdade de Belas Artes. Várias
histórias rodeiam este apartamento. Uma delas é contada pelos
inquilinos. Há muito tempo, quando a faculdade ainda tinha a
valência de arquitetura, este apartamento foi usado como escola de
AutoCAD, o software com que os arquitetos trabalham. Francisco,
Isabel e Fernanda não têm saudades nenhumas desses tempos porque
“havia sempre gente a subir e a descer” e descanso, dizem, era
coisa praticamente inexistente. Noutra altura, embora por ali ninguém
confirme nem queira falar sobre isso, consta que a mesma casa foi
usada ilegalmente por uma pessoa que acabara de se divorciar e não
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