Seis
meses de geringonça, modo de usar
José Manuel
Fernandes
16/5/2016,
OBSERVADOR
Que
país em ruínas sobrará depois de uma experiência governativa cujo
único cimento é a sobrevivência no poder, cujo programa é um
regresso ao passado, cujo efeito começa a ser devastador na
economia?
O governo completou
seis meses e os foguetes estalaram como se tivesse concluído uma
legislatura. O que se compreende: sem foguetório não é possível
iludir o faz-de-conta em que vivemos. Sem foguetório não é
possível iludir que estamos hoje pior do que há seis meses. Sem
foguetório não é sobretudo possível mascarar que neste processo
nos estamos a despedir do que foi em tempos um partido moderado e
reformista, o Partido Socialista.
A economia, sempre a
economia
O que está a correr
pior é, sem surpresa, a economia. Porque sucedeu exactamente o
contrário do prometido. O ritmo de crescimento económico abrandou.
Não foram criados empregos, antes foram destruídos postos de
trabalho. O investimento estancou. E o consumo, o prometido “motor”
da retoma, não dá suficientes sinais de vida.
Os títulos e alguns
dos destaques dos mais recentes relatórios do Instituto Nacional de
Estatística são reveladores: Índice de Vendas no Comércio a
Retalho desacelerou em termos homólogos (Março de 2016). Índice de
Produção Industrial registou variação homóloga negativa (Março
de 2016). Indicador de Confiança dos Consumidores diminuiu,
“interrompendo a tendência ascendente observada desde o início de
2013” (Abril de 2016). Indicador de Actividade Económica
estabilizou em fevereiro (após ter desacelerado nos dois meses
anteriores). As exportações diminuíram 3,9% (Março de 2016).
Quanto ao
desemprego, os números do primeiro trimestre de 2016 indicam uma
subida para 12,4%, depois de ter atingido um mínimo de 11,9% no
último trimestre antes das eleições. Mais preocupante ainda é a
evolução da população empregada: menos 62 mil postos de trabalho
desde Setembro, sendo que só no primeiro trimestre deste ano
desaparecem 48 mil empregos.
Mas há mais. Em
2015 a economia portuguesa cresceu 1,5%. Era esse o ponto de partida
de quem nos prometia “reverter o empobrecimento”. Em 2016 há
cada vez menos gente a acreditar que se possa sequer repetir esse
número. O que não surpreende, se nos lembrarmos de como evoluíram
as previsões: as contas dos economistas do PS apontavam para um
crescimento de 2,4% em 2016, o Programa do Governo desceu essa
previsão para 2,2%, o “esboço” de Orçamento encolheu-a ainda
mais para 2,1%, e depois ainda caiu para uns ainda assim irrealistas
1,8%. Fora da bolha em que parece viver o ministro das Finanças, os
números são outros, oscilando entre os 1,3% previstos pela
Universidade Católica, os 1,4% do FMI e os 1,5% do Banco de Portugal
e da Comissão Europeia.
Pior, bem pior: os
dados do crescimento económico do primeiro trimestre são péssimos,
apenas 0,8% em termos homólogos. Nenhuma previsão era tão
pessimista. Para chegar ao crescimento previsto pelo Governo, seria
preciso crescer nos próximos três trimestres a um ritmo que
Portugal já não conhece desde o ano 2000.
Mas não é isso que
deverá acontecer, pois tudo indica pois que este ano nem sequer se
alcançará o crescimento do ano passado, até porque Portugal – ou
melhor, o Governo de Portugal – tudo está a fazer para que isso
não suceda. Basta ver como têm evoluído os juros e o risco da
nossa dívida por comparação com os dos países que, como nós,
beneficiam da agressiva política financeira do Banco Central
Europeu. O retorno para os investidores da dívida portuguesa teve,
no primeiro trimestre de 2016, o pior desempenho de toda a zona euro,
sendo que a percepção de risco, calculada pelo Deutsche Bank a
partir do prémio associado aos seus Credit Default Swaps, é mesmo a
maior da Europa.
Expectativas
mínimas, clientelas máximas
A percepção deste
desastre anunciado já obrigou a geringonça a adaptar o seu discurso
e a baixar as expectativas. Agora tudo se resume a “recuperar
rendimentos dos portugueses”, uma lenga-lenga que Catarina Martins
está sempre a repetir e que agora é retomado na moção de António
Costa ao Congresso do PS, iludindo que esse caminho se iniciou em
2015 e de forma mais equilibrada (e sustentada) do que a prevista
para 2016. Basta pensar que o esforço orçamental este ano, graças
à geringonça, vai “devolver” muito mais dinheiro aos
funcionários públicos com os salários mais elevados do que aquele
que vai gastar com o descongelamento das pensões mais baixas. De
resto, temos agora uma nova austeridade, mas “de esquerda”, uma
austeridade que consegue a proeza de ter actualizado as pensões
mínimas num valor inferior ao praticado nos anos da “austeridade
de direita”. São escolhas, mas escolhas significativas.
Numa altura em que
estamos todos à espera de um “plano B” que nos trará mais carga
fiscal – para além da que já chegou através de várias impostos
indirectos –, ouve-se cada vez menos repetir a ideia do “virar de
página da austeridade” e, em contrapartida, percebe-se cada vez
melhor que isso significou, antes do mais, ir ao encontro da
principal clientela da geringonça: a administração pública e os
seus sindicatos. Mais os sindicatos das empresas públicas, aqueles
cuja proteção levou à precipitada reversão das concessões das
empresas de transportes públicos. São eles os que estão a ganhar –
os únicos que estão realmente a ganhar. É a eles que António
Costa nunca sabe dizer “não”.
Um exemplo recente
desta escolha é a forma como o Governo, pressionado pelos partidos à
sua esquerda, se virou contra os colégios privados com contratos de
associação, alterando uma política que foi a de sucessivos
governos do PS. Pense-se só no seguinte: o argumento principal dessa
medida é o da necessidade de gerir bem os recursos públicos, mas em
nenhum momento se disse quanto vai custa realmente uma turma numa
escola pública – isto é, qual o seu custo real, com todas as
despesas incluídas, não apenas o custo de acrescentar aqui ou acolá
dois professores.
Na verdade, o que
realmente conta nesta viragem na política educativa é a submissão
à agenda da Fenprof, que tem imenso poder nas escolas públicas e
não entra nas escolas privadas. Não ganham os alunos nem as
famílias, que preferiam poder escolher, não ganha o contribuinte,
pois a solução acabará por sair mais cara (sai sempre), mas ganham
as clientelas dos sindicatos. E com elas ganha a CGTP, que percebeu
muito bem o que podia lucrar com o acordo da geringonça e o defendeu
no interior do PCP.
A degenerescência
do PS
Ao optar, desde o
primeiro minuto, por se virar para a sua esquerda, o PS não se
distanciou apenas de quatro anos de governação cuja principal
marca, a austeridade, fora uma consequência da sua
irresponsabilidade e um corolário de um acordo que o próprio PS
assinara com a troika. Ao fazê-lo, o PS também não se limitou a
“derrubar um muro” e a trazer para o espaço da governação
partidos que, nos primeiros 40 anos da nossa democracia, sempre
estiveram contra tudo e contra todos. Com este movimento o PS vendeu
a sua alma de partido moderado e reformista, ao mesmo tempo que
desistiu de ser um grande partido com capacidade de governar sozinho
com a sua agenda, não com a agenda de outros.
Diz-me com quem
andas, dir-te-ei quem és, e assim sucedeu. As companhias escolhidas
pelo PS, o acordo que com elas assinou, implicaram em primeiro lugar
um programa de Governo que só por anedota podemos dizer que segue as
linhas e a estratégia definidas no programa que o PS apresentou aos
eleitores. Este possuía uma coerência interna que, podendo gerar
acordo ou desacordo, tinha lógica. Hoje tudo foi substituído por
sucessivos remendos contraditórios.
Mas há mais e há
pior, e isso é transparente na moção que o líder apresentou ao
congresso que o vai reeleger: os socialistas abdicaram das reformas,
preferindo um autismo suicida bem evidente na reacção de António
Costa às palavras de Mario Draghi na reunião do Conselho de Estado.
Um autismo que chega a ser malcriadamente gritante na forma com que
alguns deputados de primeira linha se têm referido a críticas
vindas de instituições respeitáveis, como o Conselho de Finanças
Públicas. Um autismo que contrasta com o caminho reformista de
outros governos socialistas, como o de Manuel Valls em França ou
Mateo Renzi em Itália.
O PS de hoje não
acredita na sociedade – apenas vê soluções no Estado e nos seus
“simplexes”. O PS de hoje não acredita na economia – apenas
têm esperança que a longa mão do Governo saiba distribuir os
fundos que julga poder captar dos planos europeus. O PS de hoje não
se preocupa com as empresas, com os bloqueios do mercado de trabalho
ou com a sustentabilidade da Segurança Social – adopta antes o
discurso da extrema-esquerda contra os mercados e a “precariedade”.
Este PS pouco se distingue do Bloco de Esquerda, pois é um PS que
não imagina vida fora do Estado, nem está pronto a confiar no livre
julgamento dos cidadãos.
No rescaldo das
eleições de que resultaria a geringonça, uma das raras vozes
socialistas que se opôs à solução, a de Francisco Assis, citou
Norberto Bobbio para sublinhar que “tão ou mais importante que a
dicotomia direita-esquerda [é] a contraposição entre moderados e
extremistas em cada um destes campos políticos”, sendo que no
“caso europeu não há a mais pequena dúvida de que a grande linha
de demarcação é precisamente esta última”.
Seis meses depois
ainda tem mais razão do que nesses dias quentes de Outubro.
Primeiro, porque vimos o PS derivar para um discurso quase, quase
anti-europeu, um discurso tão próximo do do Syriza que permitiu uma
declaração conjunta, um discurso tão próximo dos populismos
extremistas que utiliza o confronto com Bruxelas para justificar as
malfeitorias de uma austeridade que, pelo que estamos a ver de
desempenho económico, só vai acabar num plano B, e num C, e num D,
tal como em 2010/2011 fomos andando de PEC em PEC até ao famoso PEC
IV.
Depois, e mais
importante, porque o radicalismo cresceu dentro das fileiras do
próprio PS, deixou de ser marginal e está hoje sentado na primeira
fila da sua bancada parlamentar ou à frente das principais
estruturas do partido. Quem domina o discurso mediático (e
ideológico) do PS são figuras que podiam estar no Bloco, algo que
está a deixar justificadamente preocupados os moderados que ainda
existem dentro do partido.
Não é impunemente
que se faz e repete à exaustão um discurso radical – quando chega
a altura de enfrentar a realidade, como já está a suceder, o
discurso alternativo é o dos bodes expiatórios. Bruxelas, o
anterior Governo, a troika, o Banco de Portugal ou o Banco Central
Europeu passam então a ser os maus da fita, mesmo que não sejam
eles que tomaram as opções políticas que estão a fazer o país
andar para trás.
A fome de poder e o
cimento do poder
O protagonista e o
fautor desta viragem foi um político que se revelou alguém em quem
não se pode confiar. António Costa vendeu a alma do PS para salvar
a sua: na noite das eleições, quando se tornou claro que a sua
derrota era total – perdera em votos para a coligação, perdera em
número de deputados para o PSD, tivera até um resultado
“poucochinho” que desta vez nem dera para chegar em primeiro
lugar – percebeu que ou fazia o pino, ou acabava ali a sua carreira
política. Preferiu fazer o pino e esquecer os princípios.
De então para cá
muitos têm elogiado a sua capacidade de negociação. Mal: o “grande
político” que ia levar o PS a um resultado histórico não
precisou nunca de ser um grande negociador para conseguir o que
conseguiu.
Primeiro, não é
difícil montar uma geringonça quando as diferentes partes estão
unidas no essencial: impedir que governe quem ganhou as eleições. É
esse o cimento essencial da coligação, o resto são detalhes.
Depois, não é
difícil negociar quando se está disposto a abdicar do núcleo
essencial do programa eleitoral e, do outro lado, existe a mesma fome
de chegar ao poder (ou de conservar o poder, o que foi fundamental no
caso do PCP/CGTP).
Finalmente, também
não é difícil negociar em Bruxelas quando se está disponível
para ter entradas de leão e saídas de sendeiro, que foi exactamente
o que aconteceu com o Orçamento de 2016.
Nada disto é muito
novo – ter ou não ter o poder sempre foi o que motivou muitos
políticos – e nada disto nos devia surpreender depois de ter
assistido ao que assistimos na Grécia, onde o radicalíssimo Syriza
acabou a aplicar mais austeridade que os governos anteriores com a
agravante de, no entretanto, ter dado cabo dos poucos sinais de
recuperação que a economia começava a dar. Apesar das suas origens
distintas, Costa é muito mais parecido com Tsipras do que parece,
pelo que é bom não ter ilusões: tal como o líder radical grego
aplicará as medidas que Bruxelas, mais tarde ou mais cedo, o obrigar
a aplicar, subirá os impostos que tiver de subir, e ao mesmo tempo
invectivará Bruxelas as vezes que isso for politicamente
conveniente.
Espere-se por isso
tudo e o seu contrário, e durante bastante tempo, pois esta é uma
coligação de fracos, porque de derrotados, mas unida pelo cimento
do poder e do seu exercício. Não vai descolar ao primeiro abanão.
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