quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Quando as lojas instaladas no rés-do-chão incomodam os vizinhos de cima



Quando as lojas instaladas no rés-do-chão incomodam os vizinhos de cima
Sofia Cristino
Texto
7 Fevereiro, 2019

Em Lisboa, é difícil não encontrar alguém que não se sinta incomodado com o cheiro, o fumo, o barulho e outros transtornos oriundos dos estabelecimentos comerciais instalados no rés-do-chão dos prédios. Quem está em casa, durante o dia, lamenta não conseguir trabalhar ou descansar. E, à noite, as queixas começam a subir de tom. “Onde está acautelado o descanso dos moradores e como é aplicada a lei do ruído?”, questionou uma moradora da Alta de Lisboa, recentemente, em reunião camarária. As denúncias chegam de todas as partes da cidade. Em Arroios, há quem não suporte o cheiro do detergente proveniente de uma lavandaria. “Os tóxicos provocam-me náuseas”, critica uma moradora. Em Carnide, pede-se que as oficinas de reparação automóvel sejam autónomas dos edifícios habitacionais. E, em quase sempre, critica-se a falta de capacidade da polícia para resolver o problema. O Ministério do Ambiente diz que haverá “dezenas” de denúncias, em todo o país, mas admite ter dificuldade em obter estes dados concretos.

Um pouco por toda a cidade de Lisboa, ouvem-se queixas de pessoas incomodadas com o ruído das lavandarias, cafés, oficinas e outros espaços comerciais instalados no rés-do-chão dos prédios. No número 3 da Rua Jacinta Marto, na freguesia de Arroios, os moradores dizem não ter descanso desde que abriu uma nova lavandaria, há cerca de um ano. “A janela do meu quarto é mesmo em cima da saída de ar. Os tóxicos dos detergentes provocam-me náuseas, diarreia e acho que estou a desenvolver uma doença ocular. De noite, não consigo dormir”, relata Leonor Portela, 61 anos, ali a viver há três décadas.

 A saída de ar a céu aberto da lavandaria também está virada para o logradouro do edifício, onde existe um quintal com árvores de fruto. Antes da abertura da lavandaria, queixa-se Ester Alves, 61, o espaço comunitário era um sítio “agradável”, onde passava muitas tardes. “Costumava ir para lá ler, e agora não se aguenta. Fazíamos muito uso do logradouro, principalmente a minha mãe, já com 88 anos, que deixou de ir para lá”, conta a moradora, ali também há três décadas. Naquele rés-do-chão já funcionou um café, um cabeleireiro e uma loja de roupa, estabelecimentos que, segundo Ester, não causaram “nenhum incómodo”. “Nunca imaginámos que a lavandaria traria tantos problemas. Não sinto o ruído da mesma forma que alguns dos meus vizinhos, mas, quando chove ou faz vento, o cheiro entra logo pelas janelas. Estamos a respirar ar poluído”, diz a moradora, à janela do primeiro andar.

Apesar das queixas, e da Polícia Municipal de Lisboa (PML) e a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) já terem visitado a lavandaria, nada mudou. “O problema está nas traseiras e, quando eles vêm cá, só entram na lavandaria. Sugerimos ao dono da lavandaria que coloque uma tubagem para a rua, mas a vontade em ajudar-nos não tem sido muita”, critica Leonor Portela.

Ouvido por O Corvo, António Rosa, dono do espaço comercial, adjectiva as críticas de “exageradas”. “Se ao mínimo incómodo, todos nos queixarmos, não se faz nada. O prédio não é nenhum lar de idosos para estarem sempre no logradouro, os hábitos também podem mudar um bocadinho. Se fosse uma padaria, cheirava a pão, como é uma lavandaria cheira a detergente” desvaloriza. O proprietário do espaço comercial admite, porém, que o ruído possa ser “desagradável”. “Percebo que possa incomodar um bocadinho, mas não ao ponto de ter de mudar a saída de ar. Tenho outra lavandaria, maior do que esta, na Conde Redondo, e a saída é para a rua, porque o espaço o permite. Neste caso, não é impossível, mas seria mais complicado e teria de gastar bastante dinheiro”, diz António Rosa.

Longe do centro de Lisboa, na Alta de Lisboa, os moradores da Rua José Cardoso Pires, estão incomodados com o barulho nocturno de um café, aberto o ano passado, num dos prédios. “O nosso prédio sofre de um grande problema, o ruído provocado por um café, aberto das 6h às 2h. O café encerra sistematicamente após a meia-noite. Onde está acautelado o descanso dos moradores e como é aplicada a lei do ruído?”, questionou Elisabete Amaral, na passada reunião camarária pública (30 de Janeiro). Apesar das várias queixas feitas à Polícia Municipal de Lisboa (PML) e à esquadra da Polícia de Segurança Pública (PSP) da Musgueira, o problema persiste. “A fiscalização foi realizada durante o dia, o que nos surpreende, porque falamos de ruído à noite e não durante o dia”, salientou a moradora.

 O presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, Pedro Delgado Alves (PS), já terá solicitado um “pedido de restrição de horário”, mas, até ao momento, a resposta não terá chegado. Em resposta à intervenção de Elisabete Amaral, o vereador da Estrutura Verde e Energia, José Sá Fernandes, prometeu analisar a possibilidade de redução de horário do estabelecimento. “Vamos apreciar isso, rapidamente, para tentarmos aplicar o mais depressa possível as medidas que sejam adequadas para este caso”, garantiu.

 A presidente da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), Helena Roseta, admitiu, numa sessão da AML (15 de Janeiro), que este tipo de problema, “infelizmente, é comum”. “Temos de ser mais exigentes, e iremos fazer pressão no sentido de tentar resolver isto para ver se consegue ter descanso”, afirmou Helena Roseta, em resposta à intervenção de um morador. José Cavaleiro queixou-se de não conseguir descansar, há um ano e meio, por causa do ruído proveniente de uma chaminé de um restaurante, no seu prédio. “Sou professor universitário e tenho trabalho para fazer em casa e, à noite, gosto de dormir. Há uma chaminé – colocada a 40 centímetros das nossas janelas numa parede comum, que a câmara autorizou – que produz um ruído ensurdecedor, durante todo o dia e prolonga-se até às 23h. O barulho está três vezes acima do nível normal e isto perturba-me imenso. Não tenho paz”, lamentou.

Em Carnide, José Colaço queixa-se do barulho e do fumo proveniente de uma oficina de reparação automóvel. Um problema que, reconhece, é transversal a toda a cidade. “Lisboa está cheia de oficinas instaladas em prédios de habitação. Com todas as normas ambientais, o horror à poluição, ao barulho e aos fumos, penso que já existe uma disposição muito grande da parte das autoridades para acabar com este flagelo”, diz em depoimento a O Corvo. O habitante sugere ainda que as oficinas deixem de funcionar em edifícios habitacionais. “Assim como, há alguns anos, retiraram os postos de combustíveis junto aos prédios de habitação, talvez, agora, fosse o momento de fecharem as oficinas. Se os proprietários convertessem os espaços em estacionamento, talvez recuperassem o investimento. Estas empresas deviam ser autónomas dos prédios habitacionais”, sugere.

 O Ministério do Ambiente, em informação escrita, adianta a O Corvo que, em todo o país, apenas existirão “dezenas de denúncias” sobre o ruído ou emissão de poluentes para a atmosfera provenientes de estabelecimentos comerciais (lavandarias, cafés, oficinas, entre outros). E reconhece ter dificuldades em obter tais dados. “A Inspecção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) tem a possibilidade de extrair dados estatísticos do seu sistema de Gestão de Informação de reclamações e denúncias sobre temáticas ambientais, como por exemplo ‘ruído’, ‘emissões para a atmosfera’, ‘resíduos’ ou ‘águas residuais’, mas não sobre um determinado sector em particular”, explica. Face a estas denúncias, esclarece ainda, “a IGAMAOT solicita a intervenção das câmaras municipais, atentas às competências desses serviços de controlo e fiscalização da actividade em causa”.

 O Corvo tentou saber ainda junto da Câmara Municipal de Lisboa (CML), a Provedoria de Justiça, a Deco, e a associação ambientalista Zero, quantas queixas existem, afinal, relacionadas com espaços comerciais instalados no rés-do-chão dos prédios habitacionais. Só obteve, porém, uma resposta da Zero, que diz conhecer apenas “casos pontuais”.

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