No Areeiro, abrem e fecham lojas em poucos meses, mas nas
avenidas principais o comércio consolida-se
Sofia Cristino
Texto
14 Fevereiro, 2019
Alguns comerciantes da freguesia dizem que nunca assistiram
a uma volatilidade “tão grande” das lojas. Em poucos meses, abrem e fecham
espaços comerciais, por não conseguirem suportar as rendas – que, no último
ano, subiram nas zonas históricas e no centro de Lisboa. Os valores pedidos
naquele bairro terão aumentado “consideravelmente”, queixam-se vários lojistas.
Diversos edifícios foram recentemente vendidos e muitos comerciantes já saíram
ou terão de o fazer em breve. Apesar disso, a associação Vizinhos do Areeiro
contabilizou menos seis dezenas de lojas vazias em relação a 2018. Uma dinâmica
insuficiente, porém, para afastar receios sobre o futuro do comércio na zona,
porque os espaços vazios “não geram riqueza económica”. Mas a associação de
comerciantes do Areeiro, representativa das avenidas principais, assegura que o
panorama até estará a melhorar. A freguesia está a receber mais estrangeiros,
que ajudam ao aumento do volume de negócios de alguns estabelecimentos.
Maria Custódia Silva, 74 anos, proprietária de uma loja de
roupa para crianças, já perdeu a conta de quantas lojas abriram e fecharam, no
último ano, na Avenida João XXI, na freguesia do Areeiro. O bairro está em
transformação e, segundo quem lá trabalha, assiste-se a uma enorme volatilidade
dos espaços comerciais. “No período de três anos, esta já é a quarta loja a
instalar-se aqui”, diz Maria, apontando para uma agência de viagens, ao lado do
seu estabelecimento. Antes, funcionaram ali uma loja de decoração de interiores
e outras duas de vestuário. A lojista não consegue precisar o período de
funcionamento de cada espaço comercial, mas garante que foi “muito curto”. E
arrisca uma explicação. “Ninguém aguenta as rendas altíssimas desta avenida,
que subiram muito, nos últimos três anos. Eu só me mantenho porque tenho outras
fontes de rendimento, se não também já teria fechado”, diz.
Segundo um estudo recente da consultora JLL, as rendas das
lojas de rua, em Lisboa, subiram entre 3,8% e 20%, em 2018. Nas zonas
históricas e no centro da cidade, a falta de oferta de imóveis pode pressionar
ainda mais os preços e a tendência é as rendas subirem. Paula Santiago,
consultora imobiliária da Remax Time, instalada na João XXI, ouvida por O
Corvo, corrobora estes números e diz que os valores aumentaram
“consideravelmente”. Além destes indicadores referentes ao arrendamento
comercial, os dados mais recentes do INE (Instituto Nacional de Estatística)
sobre o preço dos imóveis de habitação, no terceiro trimestre de 2018,
divulgados há duas semanas, confirmam a manutenção da expressiva dinâmica de
valorização imobiliária registada na capital, nos últimos anos. O Areeiro não
foi excepção, com a média do metro quadrado vendido a fixar-se nos 2.729 euros,
quando no terceiro trimestre de 2017 se havia transaccionado 2.333 euros por
metros quadrado. Ainda assim, a freguesia foi uma das cinco em que os preços
medianos e as taxas de variação face ao período homólogo foram inferiores aos
da cidade de Lisboa (2.877 €/m2). Estes valores, se bem que relativos à
habitação, deixam algumas pistas sobre os custos associados a uma loja naquela
zona.
Recentemente, um concessionário de automóveis e uma
papelaria, instalados na João XXI há dezenas de anos, também fecharam por não
conseguirem pagar o valor da renda. “A renda do stand subiu de 800 para 1600
euros. A papelaria foi uma situação mais dramática. A dona da loja fez obras de
remodelação e, uma semana depois, recebeu uma carta de não renovação do
contrato, não foram correctos”, conta. Uma loja de roupa em segunda mão, relata
ainda, chegou a estar instalada, no espaço de pouco tempo, em três sítios
diferentes – Praça de Londres, João XXI e noutro arruamento no centro do bairro
-, mas também já fechou pelos mesmos motivos. “Quem não tem outro suporte
financeiro, não aguenta aqui. Muitos comerciantes vêm na ilusão de que esta
avenida é uma boa aposta, e depois desiludem-se. Sabemos que vai abrir um
espaço novo e que a renda é de 1400 euros. Para suportar este valor, tem de se
vender muito por dia. Esperemos que tenham sorte, mas acho que vão fechar”,
antecipa Maria Custódia Silva.
Nos arruamentos
adjacentes às avenidas principais, também se teme pelo futuro. Na Rua
Cervantes, que liga as avenidas João XXI e de Madrid, Fernando Gameiro, 57
anos, vende vários tipos de peixe e marisco, no rés-do-chão de um prédio, há
quase duas décadas. Mas poderá ter de sair em breve. “O edifício foi todo
vendido, em 2014, e fizeram-me um contrato novo de cinco anos, que vai terminar
no próximo mês de Maio. Se me propuserem uma renda muito elevada, tenho de
fechar. Trabalho com mais desmotivação”, lamenta. Atento à dinâmica do bairro,
Fernando Gameiro diz que as transformações são “enormes”. “O comércio do
Areeiro está de rastos, desde 2012 tem assistido a uma queda vertiginosa. Quem
abre aqui não se aguenta três meses”, lamenta. No período de quatro anos, abriu
e fechou uma loja de produtos dietéticos e negócios mais antigos encerraram
para darem origem a churrasqueiras, “que ainda vão tendo muita clientela” e
restaurantes de tapas e petiscos, explica Fernando.
Na Avenida de Paris,
o encerramento de vários espaços comerciais, no último ano, como a pastelaria
S. João e outros cafés, poderá explicar a pouca movimentação ali sentida. “Um
café ou um restaurante atraem sempre mais pessoas, e ajudam aos outros
negócios. Chegámos a estar cheios, durante o dia, e, agora, há dias que nem
entra ninguém aqui”, diz Vera Ricardo, 38 anos, funcionária de uma loja de
produtos de medicina alternativa. O espaço mantém-se, explica, porque ainda
recebe muitos clientes de outros bairros, e até de fora de Lisboa. “Há um
médico que vem aqui dar consultas, e ainda há muitas pessoas a procurarem-no”,
acrescenta.
No número quatro desta avenida, André Santos, 37 anos, é o
único a dar continuidade a um negócio familiar, provavelmente o mais antigo
daquela artéria. “Sempre existiu uma
grande flutuação dos negócios nesta zona, mas nos últimos anos sentiu-se mais.
Apesar de a mim não me afectar, porque não vivo do comércio de rua, prejudica
muitos dos meus colegas. Muitas pessoas deixam de ir a uma rua quando sabem que
fechou lá a loja onde costumavam ir. É péssimo estarem sempre a abrir e a
fechar”, diz o dono da La Ferrovie de Paris, uma loja especializada em
modelismo ferroviário, a funcionar ali há mais de trinta anos. Já Vildana,
costureira, chegou apenas há dois anos, e está feliz com a escolha daquela
parte da cidade para trabalhar. “Vou tendo clientes, tenho é mais dificuldade
em encontrar quem queira trabalhar comigo”, diz, apressada, enquanto prega
botões a uma camisa. “Ninguém quer costurar, hoje em dia, e é pena”, afirma.
O bairro residencial,
constituído maioritariamente por uma classe média-alta, tem assistido a uma
transformação da malha social, nos últimos anos. Apesar da mudança não ser tão
gritante como noutras zonas da capital, há mais estrangeiros a escolherem
aquela parte da cidade para viverem. Mafalda Maria, 46 anos, confirma esta
realidade, todas as semanas, na sua loja de vinhos, na Avenida de Madrid. “Tenho
uma cliente americana, de Washington, que compra dezenas de garrafas. Agora
está fora, mas tem casa aqui no Areeiro. Tenho imensos clientes italianos,
brasileiros e chineses, e são moradores no bairro. Não me posso queixar, o
volume de negócios até tem melhorado”, conta. Mafalda Maria reconhece, porém,
que não é fácil manter uma loja ali. “O vinho bebe-se sempre, em período de
crise ou em festa. Há aqui muitas lojas, cabeleireiros e restaurantes
principalmente, que não resistem muito tempo. Além do tipo de negócio, que tem
muita concorrência, queixam-se do valor das rendas”, explica.
Na Avenida de Madrid,
vários comerciantes corroboram este cenário. Rosário Marques, 48 anos, trabalha
há uma dúzia de anos nesta artéria e deita as mãos à cabeça quando se fala no
aumento do valor das rendas. “Por este espaço aqui ao lado, minúsculo, estão a
pedir 500 euros. A partir daí, é sempre a galopar. Isto é normal?”, questiona,
acelerada. A dona da lavandaria e engomadoria, que também presta outros
serviços de limpeza, queixa-se ainda da falta de segurança na zona. “Somos uma
rua secundária, muitos só vêm aqui de passagem. Há uns dias, assaltaram-me e
levaram dinheiro da caixa. A polícia nunca anda aqui e, se houvesse mais
movimentação e comércio, talvez não nos tentassem assaltar”, critica.
A poucos metros, uma
padaria quase centenária, testemunha uma Lisboa mais antiga, quase em extinção.
“Já há poucas deste género”, diz Laurinda Fialho, 59 anos, empoleirada na
bancada de mármore. “Os salários são baixos, não é fácil subsistirmos, mas
ainda temos muitos clientes antigos com os quais mantemos uma boa ligação. Esse
é o segredo”, explica. A comerciante ainda paga uma renda acessível, mas já
assistiu ao encerramento de várias lojas à sua volta. “Há dois anos, as rendas
subiram a pique, os valores são exorbitantes. Perdemos, também, muitos moradores,
que voltaram para a terra-natal”, conta. O prolongamento das obras das estações
de metro do Areeiro e de Arroios e o encerramento de algumas empresas também
poderão ajudar a explicar o esmorecimento do comércio da zona. “Na Morais
Soares, esbarrávamos uns nos outros. De um momento para o outro, a rua ficou
moribunda”, diz, sobre a actual situação nas obras de Arroios. “O fecho das
saídas do metro do Areeiro é vergonhoso, nunca mais abrem”, critica.
A associação de
moradores Vizinhos do Areeiro tornou público, no passado dia 10 de Fevereiro,
um levantamento das lojas vazias da freguesia. Segundo o grupo cívico, “a
percentagem de lojas vazias é relativamente pequena”. “Onde estas existem em
maior número é nos bairros mais residenciais, como os bairros dos Aviadores,
Actores e Olaias. Isto tem a ver com a fraca capacidade de atracção de clientes
de fora dos bairros, existente nessas zonas, e com os preços irrealistas do
arrendamento cobrado”, lê-se. A análise só peca, explicam, por algo que não está
ao alcance do grupo de cidadãos: “a dimensão dos espaços vazios”. “Este dado
poderia revelar quais os espaços com maior procura”, escrevem. Um levantamento
desta dimensão, assim como o registo do tipo de actividade comercial e os
preços médios do arrendamento por freguesia, sugerem, deveria ser feito pela
Câmara Municipal de Lisboa (CML) e pela Junta de Freguesia.
A associação de
moradores diz ainda que haverá “uma extrema volatilidade nos negócios
comerciais no Areeiro” e lamenta não conseguir detectar “as numerosas lojas que
abrem e fecham num espaço de dois ou três meses. “O que revelaria uma
volatilidade que, estimamos, ainda seria maior”, avaliam. Em 2018, segundo a
análise da associação Vizinhos do Areeiro, haveria 236 lojas vazias no bairro
e, em 2019, existirão 170, o que “reflecte aquilo que se observa nas ruas, mas
especialmente nas mais comerciais (avenidas João XXI, Roma, Guerra Junqueiro e
Praça de Londres)”.
Segundo Rui Martins, da associação dos Vizinhos do Areeiro,
este fenómeno “é muito preocupante”. “Encerraram três repartições dos correios,
vários balcões de bancos e continua a existir uma grande rotatividade de
espaços comerciais, principalmente nas ruas secundárias. As lojas vazias não
geram riqueza económica, e perdem-se muitos postos de trabalho”, lamenta. Outro
fenómeno que estará a preocupar o colectivo de moradores é o aumento de espaços
comerciais do mesmo ramo de negócio. “Florescem imobiliárias como ‘cogumelos’,
nunca se viram tantas lojas de cigarros eléctrónicos e há imensas lavandarias
self-service”, observa ainda.
Em 2016, o movimento
cívico propôs à Junta de Freguesia do Areeiro que, à semelhança do que já se
passa em Campolide, as compras no bairro fossem feitas através de uma moeda
local. Esta poderia ser adquirida na junta, nos bancos, ou obtida de forma
gratuita, sob a forma de um prémio por reciclarem o lixo, por exemplo. Algo
que, acreditam, poderia ajudar à instalação de mais comércio no Areeiro. Desde
2013, todos os anos, os comerciantes das principais avenidas da freguesia
aderem ao Areeiro Open Night, iniciativa da Junta de Freguesia do Areeiro para
dinamizar o comércio local. De acordo com os comerciantes ouvidos por O Corvo,
este evento é, todavia, insuficiente para as necessidades do bairro. “É apenas
pontual, e muitas lojas ficam de fora. Precisamos de uma revolução no comércio
e na forma como os senhorios e os arrendatários se relacionam”, sugere a
lojista Maria Custódia Silva.
O dirigente da
associação de comerciantes do Areeiro, Carlos Carvalho, tem, porém, uma
perspectiva mais optimista. “Na zona que represento – Praça de Londres e
avenidas Guerra Junqueiro, João XXI e Roma – há seis anos, tínhamos vinte lojas
vazias. Hoje, temos seis. A procura subiu brutalmente e as lojas fecham porque
abrem-se negócios desfasados da realidade. Não concordo que a subida das rendas
seja a explicação para a rotatividade”, considera. O interesse dos lojistas por
uma zona que esteve, durante algum tempo, “decrépita”, explica ainda, aumentou
muito nos últimos anos e há vários “casos de sucesso”. “O panorama comercial
está a melhorar. Na Avenida de Roma, há quatro lojas com história, com um
grande dinamismo. Muitas vezes, as pessoas abrem lojas e não percebem que
manter um negócio exige comunicação com o cliente, e que nenhuma loja nasce
consolidada”, explica.
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