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O Berloque de Esquerda
Nos próximos meses, manter António Costa à distância certa
vai ser uma tarefa árdua. Bloco ou Berloque, eis a questão.
João Miguel Tavares
16 de Fevereiro de 2019, 7:16
Há tempos um dos meus filhos estava a tentar comentar uma
notícia do Telejornal e enganou-se a pronunciar o nome do Bloco de Esquerda –
chamou-lhe “Berloque de Esquerda”. A expressão é óptima, e fiquei encantado com
o talento involuntário do miúdo para a política, capaz de transformar o
tropeção numa palavra numa magnífica análise do panorama partidário português
em 2019. Afinal, o que tem sido o período 2015-2019 se não a lenta
transformação do incisivo Bloco de Esquerda no decorativo Berloque de Esquerda,
como a violenta carta de saída de 26 militantes desiludidos (incluindo Sérgio
Vitorino e dois manos de Francisco Louçã) vem agora tão bem demonstrar?
E sabem o que é mais interessante naquela carta? É que é
tudo verdade, enquanto denúncia de uma cisão ontológica entre aquilo que o
Bloco é e aquilo que ele diz ser. Uma e outra coisa nunca coincidem na
perfeição, nem em partidos, nem em pessoas, mas no caso do Berloque de Esquerda
a distância começa a ser demasiado grande, e nem todos os militantes têm a
elasticidade necessária para tão exigente espargata. É o caso dos 26
signatários da carta, que finalmente se deram conta de que o partido
revolucionário e radical em que eles militavam sucumbiu à influência moderadora
do PS e ao desejo (perfeitamente legítimo e saudável, sublinhe-se) de ocupar um
lugar no governo da nação.
Como é óbvio, para concretizar esse desejo de poder é
preciso fazer compromissos, e os verdadeiros radicais não fazem compromissos.
Por isso, os 26 signatários afirmam a necessidade “da clarificação política
entre uma esquerda com um projecto radical para a sociedade e outra paliativa
em que o resultado da sua acção é a integração no sistema que deveria
combater”. Denunciam “o caminho de institucionalização dos últimos anos” que
obrigaram o partido ao “tacticismo de decisões” e ao “jogo da comunicação na
sua forma burguesa”. Um tacticismo que tem naturalmente levado o Bloco a
“abdicar de posições claras”, com destaque para “a questão da renegociação da
dívida externa, que era central e incontornável com o governo anterior”, e que
agora foi “transformada em mero pormenor retórico que não perturba o apoio a um
governo que perpetua a austeridade”. Tudo isto é verdade e já foi dito muitas
vezes pela direita – tem muito mais graça quando é confirmado pela esquerda.
É particularmente divertido ver ex-militantes do Bloco
acusarem o partido de varrer “o projecto revolucionário para debaixo do tapete,
numa tentativa de ganhar respeitabilidade”, e não lhe perdoarem a adopção de um
“conformismo fatalista que transforma o capitalismo no único sistema possível e
a sua alternativa socialista em utopia alucinada”. A carta – que, de resto, é
consequência natural de uma moção apresentada no último congresso, intitulada
“Um Bloco que não se encosta” – mostra basicamente que o Bloco se encostou. Ou
seja, que o Bloco de Esquerda se transformou, para grande infelicidade destes
militantes, no Berloque de Esquerda. Um berloque que eles não querem usar.
A médio prazo, esta atitude pode ter uma consequência
curiosa: o aparecimento de novas formações de esquerda radical, em mais uma
fragmentação do espectro partidário português, só que agora na ponta oposta.
Ainda que por enquanto seja apenas uma hipótese teórica, ela pode ser
suficientemente forte para marcar a estratégia dos partidos à esquerda do PS.
Nos próximos meses, manter António Costa à distância certa vai ser uma tarefa
árdua. Bloco ou Berloque, eis a questão.
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