terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Câmara de Lisboa trava despejo de prédio de Marvila, intima senhorio a fazer obras e ameaça tomar posse



Câmara de Lisboa trava despejo de prédio de Marvila, intima senhorio a fazer obras e ameaça tomar posse
Sofia Cristino
Texto
26 Fevereiro, 2019

Os inquilinos do prédio, posto à venda como devoluto em 2017, permanecerão mais uns meses nas habitações de onde deveriam sair no final deste mês. A Câmara de Lisboa, depois de realizar uma vistoria ao imóvel, intimou o proprietário a realizar obras, sem que estas impliquem a sua desocupação. Insatisfeito, o senhorio, que pretende vender o edifício, tentou impugnar o relatório do auto de vistoria, mas sem sucesso. O proprietário assinou ainda um contrato-promessa de venda do prédio a outra empresa imobiliária. Esta apresentou, em Dezembro, um projecto de remodelação do edifício à Câmara de Lisboa, que foi indeferido por, entre outros motivos, não arranjar soluções habitacionais para os moradores. Os inquilinos dizem-se cansados de uma luta que dura há mais de um ano, e prometem pressionar o município a assumir a administração do edifício.

Nas janelas do prédio Santos Lima, que dão para a Rua do Açúcar, em Marvila, há roupa estendida e vêem-se vultos por detrás das cortinas. Alguns dos 17 habitantes, a viverem nos números 24 ao 50, deveriam sair no final do mês, porque a actual proprietária, a imobiliária Buy2Sale, opôs-se à renovação dos contractos de arrendamento e colocou o imóvel à venda. Mas a Câmara Municipal de Lisboa (CML) intimou o senhorio a fazer obras, sem ser necessária a desocupação do prédio. E ameaça ainda tomar posse administrativa do mesmo para dar cumprimento às obras, caso a imobiliária não cumpra a exigência do município. Os inquilinos têm esperança de poder viver mais tempo na casa onde alguns nasceram. Mas estão cansados com a “falta de vontade” do proprietário em dialogar. “Tentei responder à carta de não renovação do contrato, explicando que tenho 65 anos e 60% de invalidez, logo não posso ser despejado. A missiva, porém, voltou para trás. Não percebo como se permitem tantas ilegalidades”, diz João Carvalho, inquilino no prédio desde 1974.

A história é rocambolesca. Remonta a 20 de Outubro de 2017, quando o prédio foi vendido por 2,7 milhões de euros pela empresa North Atlantic Trading Company aos actuais proprietários, as empresas Buy2Sale e Preciousgravity Lda. Dez dias antes, os inquilinos receberam uma carta da North Atlantic, a informá-los da intenção de venda e da possibilidade de exercerem o direito de preferência no acto da compra. Deveriam fazê-lo, porém, no prazo de oito dias. Um mês depois, as imobiliárias puseram o edifício à venda pelo triplo do valor de compra (7 milhões e 200 mil euros). A 13 de Novembro de 2017, outra empresa imobiliária, a Predial Liz, colocou online um anúncio de venda do prédio, entretanto apagado. Na descrição, podia ler-se que se trata de um “fantástico edifício de traça antiga vendido devoluto com vista para o rio, em Braço de Prata”, “para remodelação” e “com grande potencial”. Uns meses depois, surgiam novos anúncios, nos quais o imóvel era novamente apresentado como “um prédio de traça antiga e devoluto com vista para o rio”. Alguns foram, entretanto, apagados, e outros modificados.

A 16 de Outubro de 2017, os inquilinos começaram a receber cartas de não renovação de contrato, mas recusaram-se a sair. Ao longo de um ano e quatro meses, alguns inquilinos aceitaram indemnizações “muito baixas” para desocupar as casas. Sobraram dezassete, maioritariamente idosos e com poucos recursos económicos. Enquanto partilhava anúncios de venda do imóvel, há cerca de um ano, a Buy2sale começou a fazer obras de remodelação, sem licença camarária, para um andar modelo que não chegou a ser acabado. Desde aí, a porta de entrada do prédio manteve-se aberta, como se ninguém lá vivesse. Havia materiais de construção, vigas de madeira e portas espalhadas pelo corredor.

 As obras ilegais pararam, mas, durante vários meses, os inquilinos queixam-se de terem sofrido bullying e pressão para abandonarem as suas casas. “Felizmente, sempre tivemos conscientes dos nossos direitos. Além de não nos terem dado o direito de preferência do imóvel, muitos têm mais de 65 anos e não podem ser despejados, segundo a nova moratória dos despejos”, diz Eduardo Rodrigues, 64 anos, inquilino que tem representado os moradores do prédio. A 2 de Julho de 2018, recebiam uma nova carta, da advogada dos proprietários, a pedir-lhes para saírem, porque as casas iam ser demolidas. “Disseram-nos que a Câmara de Lisboa iria fazer uma vistoria a garantir o perigo de derrocado do prédio, mas isto foi mais uma estratégia para nos tirarem daqui”, conta o representante dos moradores do prédio, ali há 34 anos. A responsabilidade de assegurar o realojamento dos moradores, explica, passaria, assim, para a responsabilidade do município.

O relatório da vistoria, realizado pela CML a 10 de Agosto do ano passado, garante, porém, que “as obras de manutenção e reabilitação do prédio não implicam desocupação ou despejo” e dá conta ainda da “existência de obras de alteração não licenciadas e violação de normas legais e regulamentares”. O imóvel, composto por 42 fogos habitacionais – 25 desocupados e 17 habitados –, tem cerca de quarenta famílias. Num relatório da CML, de 12 de Fevereiro, a que O Corvo teve acesso, pode ler-se que as casas estão em más condições de habitabilidade. E as últimas obras feitas no edifício remontam a 1975, há mais de setenta anos.  Se os actuais proprietários não avançarem com a empreitada, e “em casos excepcionais e devidamente justificados”, a Câmara de Lisboa, informa, pode mesmo tomar posse administrativa do imóvel para dar cumprimento às obras. “Mas, sublinhe-se, esta é uma excepção: tratando-se de um imóvel particular, deve ser o proprietário a garantir por tudo o que se mostre necessário”, reforça.

A ideia da Buy2Sale foi, desde o início, vender o imóvel vazio. E, outro dado que o comprova, é que, no mesmo dia em que foi realizado o auto de vistoria, a actual proprietária assinou um contrato-promessa de venda do prédio a outra empresa, a Prológica S.A. Quatro meses depois, a 10 de Dezembro de 2018, a possível compradora apresentou um projecto de remodelação do edifício à Câmara de Lisboa, mas este foi indeferido. E o município dá uma explicação. “Deu entrada um processo de licenciamento onde se pretende alterar completamente a tipologia dos fogos. Donde se conclui que o pretendido é a desocupação do locado, o que seria ‘mais fácil’ com o despejo camarário. Ora, tal não pode acontecer”, lê-se no relatório da CML. Estando perante um prédio particular, lê-se ainda, “qualquer responsabilidade decorrente do mesmo, onde se incluem obras de conservação de realojamento, é do proprietário do mesmo”.

 Ainda sem comprador, os actuais proprietários tentaram impugnar o relatório da vistoria, alegando que não tinham qualquer intenção de proceder a obras de reabilitação a que a CML obriga. A autarquia, porém, não aceitou a impugnação deste relatório. O vereador Manuel Salgado assina um relatório onde é determinada “a intimação dos proprietários do imóvel, para executar as obras de conservação e reabilitação necessárias à correcção das deficiências descritas no auto de vistoria, com o prazo de 90 dias úteis para início e 16 meses para conclusão”. “Não foi indicado qualquer imóvel para realojamento da totalidade dos ocupantes, nem o modo de como seria feita a referida desocupação, nem tão pouco qualquer acordo nesse sentido celebrado com os arrendatários”, alerta ainda. E, por isso, não se poderá ceder à pretensão das imobiliárias em desocupar o prédio. Uma vez que há 25 fracções desocupados no imóvel, a Câmara de Lisboa sugere que o proprietário comece por recuperar estes fogos, “realojando provisoriamente os inquilinos” nos andares requalificados, “regressando no final da obra ao fogo de origem”. Porém, lê-se, essa não será a vontade do proprietário.

Nos últimos meses, os inquilinos queixam-se de terem “ainda mais” dificuldade em comunicar com o senhorio. Eduardo Rodrigues chegou mesmo a deslocar-se à sede da Buy2Sale, no rés-do-chão do número 11 da Rua Alves Redol, um arruamento nas traseiras do Instituto Superior Técnico, mas ninguém abriu a porta. Encontrou várias cartas da Autoridade Tributária e Aduaneira, que andará a investigar a legalidade das empresas, a saírem da caixa de correio. “A morada é falsa e as cartas nem são levantadas. Já tentamos enviar cartas com aviso de recepção, que voltam para trás. Alguma coisa não está bem aqui”, critica. No número 42 da Rua do Açúcar, onde a Imosol – empresa que geria os activos dos proprietários e recebia as rendas – esteve sediada, também há várias cartas da AT na entrada da caixa do correio. “Andamos nesta guerra há mais de um ano, e estamos a lutar com armas desiguais. Temos medo, agora, que a Buy2sale arranje um novo comprador e peça uma terceira vistoria”, receia.

Numa reunião camarária, no passado dia 28 de Novembro de 2018, o inquilino Eduardo Rodrigues perguntou à Câmara de Lisboa o que podia fazer para “parar a acção ilegal dos proprietários deste prédio”. O vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, lembrou que intimou o proprietário a fazer obras de reabilitação, sem despejo dos inquilinos, e prometeu acompanhar o processo para garantir que estas orientações seriam seguidas. Até ao momento, porém, não há sinais das obras avançarem. Em 2013, o prédio já tinha sido alvo de uma vistoria pela Câmara de Lisboa, tendo-se chegado à conclusão de que precisa de “obras profundas”.

Em Dezembro do ano passado, o Parlamento aprovou uma proposta de lei que impede o despejo de arrendatários que tenham idade igual ou superior a 65 anos, ou grau comprovado de deficiência igual ou superior a 60%. Mais recentemente, a 13 de Fevereiro, entrou em vigor a lei que proíbe e pune o assédio no arrendamento ou subarrendamento. Qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, com “o objectivo de provocar a desocupação do locado, perturbe, constranja ou afecte a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, de perigo, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado” deve ser punido. As novidades na legislação animaram alguns inquilinos, mas não deixam de viver com medo. “Ando a tremer por dentro, todos os dias. Temos de estar vigilantes em relação ao prédio e vamos pressionar a Câmara a tomar a administração do imóvel”, diz Eduardo Rodrigues.

O Corvo enviou questões à Buy2Sale, para perceber quais os próximos passos a adoptar pela empresa, e confrontou-a com as queixas dos inquilinos. Por escrito, advogada da empresa apenas respondeu que a situação está a ser analisada e garantiu que, em breve, serão tomadas “decisões” sobre esta matéria.

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