Chamar à democracia "sistema" e depois ser contra
o "sistema"
Ser “anti-sistema” significa ser contra as diferenças
institucionalizadas nos partidos políticos, e contra os mecanismos de
representação e mediação.
16 de Fevereiro de 2019, 6:22
Um dos mecanismos do
discurso do crescente populismo português é apresentar-se como “anti-sistema”.
É um discurso que começa na direita mais radical, passa pela extrema-direita e
pela extrema-esquerda, e mergulha profundamente nas cloacas das redes sociais e
dos comentários. Funciona como atestado de honestidade própria versus a
ladroagem alheia, e mete no mesmo saco da cupidez toda a gente que está na mesa
do café virtual ao lado, até aos confins do mundo. Apenas fica como pilar de
honestidade a mesa própria em que o autor de comentários zangados com o
“sistema” está sentado e, mesmo assim, quando sai alguém, fica logo fora do
halo de santidade, a dois metros do epicentro da virtude.
É um discurso cada vez mais comum na comunicação social, que
molda a sua actuação pelo populismo, pelas audiências e as vendas, pelo
sensacionalismo e pelo justicialismo, com “procuradores”, justiceiros e
denunciadores todos no prime-time televisivo, que funciona como uma espécie de
tribunal popular sem regras, sem rigor, misturando casos sérios com casos
venais, sempre numa linguagem insultuosa. E é um discurso que tem os seus
jornalistas, políticos e intelectuais e não estou a falar dos próceres do
Chega!, todos na indústria da culpa. Um dia que virem o retorno, alguns, os
mais sérios, vão-se assustar, mas já é tarde.
Quando se vai ver o que é isso do “sistema”, verifica-se que
é da democracia que estão a falar. Alguns nostálgicos do salazarismo dizem-no
claramente, mas a maioria acha que existe algures “fora do sistema” uma forma
de democracia qualquer ideal, e não percebe que aquilo que estão a propor pela
negativa está longe de ser democrático. Os temas comuns do “anti-sistema” são a
corrupção dos políticos, sempre apresentada de forma genérica, como se ser
“político” fosse ser ladrão. O discurso diferenciador – há políticos honestos e
há corruptos, e não os misturar – não é aceitável pelo populismo, e isso é um
dos aspectos que o tornam antidemocrático. Em democracia, há políticos eleitos,
nas autarquias e na Assembleia, pagos pelo erário público, que representam, uns
melhor e outros pior, diferentes interesses, terras, partidos e ideologias. As
democracias que se conhecem e funcionam são democracias representativas, outro
dos alvos dos “anti-sistema”, que defendem formas de democracia directa, sejam
as “assembleias populares” militantes à esquerda, seja a chamada “democracia
electrónica”, ou o poder da rua, como hoje a direita dos “coletes amarelos” e
aqueles que confundem poder emitir livremente a sua opinião ao Governo pela
“multidão” nas “redes sociais” ou nas audiências televisivas. Em todos os
casos, menos pessoas participam no processo de decisão política e nenhum
controlo eficaz é possível nestas formas “directas” de democracia
“anti-sistémicas”. Ser “anti-sistema” significa ser contra as diferenças
institucionalizadas nos partidos políticos, e contra os mecanismos de
representação e mediação, sejam os parlamentos, os partidos ou os sindicatos.
Podia aqui escrever milhares de páginas sobre como tudo na
democracia funciona mal, partidos dominados por oligarquias, corrupção
generalizada, protecções indevidas aos partidos e políticos, pouco escrutínio,
dificuldades à participação cívica, abusos e violências. Com tudo isto deve-se
ser intolerante. Mas no fim escreveria sempre que este “sistema” é o que me
assegura pelo voto as minhas escolhas, que me dá maior liberdade, que me
protege pela justiça e pela lei, que respeita as minhas diferenças e me permite
expressá-las, mesmo quando quase tudo funciona mal. Tudo isto é melhor do que
qualquer “anti-sistematismo” antidemocrático, e se eu for um cidadão
interventivo, votando, escolhendo, não permitindo nenhum abuso do Estado,
defendendo o meu “território” legítimo com tudo o que tenho à mão, a democracia
é melhor. Esse apelo à participação cívica é o oposto ao populismo, que vive do
abandono das responsabilidades cívicas a favor da zanga, do ressentimento e da
impotência.
Vamos voltar várias vezes a este tema, mas comecemos pela
nostalgia de um Portugal onde todos se entendiam, onde havia “consenso”, onde
todos trabalhavam pelo “bem comum”, sem corrupção que não fosse o roubo do pão
pelos necessitados, onde havia “respeito” e boa educação. Ou seja, pela nostalgia
do Portugal da ditadura.
Eu conheço bem a Censura que durou 48 anos, até por
experiência própria. O país que não podia vir a público, ou seja, o país “real”
como agora se diz, era muito diferente do que conseguia emergir nos jornais e
nos livros, mesmo na imprensa clandestina. Um dos grandes sucessos da Censura
foi criar uma imagem de Portugal pacificado, inerte, pouco conflitual, sem
grandes violências, mais de bons costumes do que de maus, que foi eficaz mesmo
com aqueles que lutavam contra a ditadura. E continua eficaz quando se lê o que
se escreve hoje em dia sobre os malefícios da democracia, em particular a
corrupção, com a sugerida e às vezes explícita ideia de que nada disto com esta
dimensão existia antes do 25 de Abril. Uma das coisas que os atacantes do
“sistema” fazem é acentuar a dimensão da corrupção em democracia, sugerindo
inevitavelmente que ela vem com a forma do regime e, por isso, lutar contra a
corrupção é também lutar contra o “sistema” de partidos e políticos corruptos.
Nunca ninguém se interroga por que razão nunca houve nada de
parecido com a Operação Marquês ao longo dos extensos 48 anos de ditadura? Não
havia corruptos nos altos lugares da nação? Não havia corruptos na União
Nacional? Nenhum general, embaixador, deputado à Assembleia Nacional, ministro
ou secretário de Estado, comandante da Legião ou graduado da Mocidade
Portuguesa, nenhum governador colonial, bispo, “meteu a mão na massa”? Ou houve
casos de corrupção que a Censura não nos deixou conhecer? Sem dúvida, como se
vê nos cortes da Censura, do mesmo modo que escondia a pedofilia, as violações,
os roubos, as violências, os suicídios.
Mas a resposta é pior ainda: não havia corrupção porque não
havia justiça para os poderosos do regime, e a pouca que havia era para os
escalões intermédios para baixo. E, por isso, a corrupção entre os grandes da
Situação, fossem políticos, com a mais que comum transumância da política para
os negócios, decidida quase sempre pelo próprio Salazar, fossem os banqueiros e
empresários do regime, estavam naturalmente protegidos porque ninguém sequer se
atrevia a iniciar um inquérito. A excepção com os “ballets roses” foi um caso
de costumes, e mesmo assim fortemente protegido pela Censura.
Sim, meus caros “anti-sistémicos”, o Portugal ideal com que
têm uma não-nomeada simpatia, era um regime profundamente corrupto e onde se
escapava à punição muito mais eficazmente do que na democracia. A verdade é
que, por muita malfeitoria que exista, os regimes democráticos são muito menos
corruptos do que as ditaduras, ou os “paraísos anti-sistémicos”.
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