Bastonária dos enfermeiros: "Isto tem de parar. Se o
primeiro-ministro precisar de mim, conta comigo"
A bastonária da Ordem dos Enfermeiros acusa a ministra da
Saúde de lhe ter pedido conselhos para a greve que tem paralisado as cirurgias.
Essa é uma das formas que tem de negar as acusações de liderar uma luta
política e de interferir na greve. E garante que os enfermeiros estão prontos a
negociar. Ana Rita Cavaco na entrevista DN/TSF.
Arsénio Reis/TSF e Catarina Carvalho
10 Fevereiro 2019 — 06:14
Qual é exatamente o papel da Ordem nesta greve?
Éde apoio aos seus membros. Há aqui, evidentemente, questões
da negociação da carreira que se cruzam com a regulação profissional, e vou dar
dois exemplos: a reposição da categoria do enfermeiro especialista na carreira.
Quem reconhece o título profissional de especialista é a Ordem.
A única questão que está resolvida.
Exatamente, mas sem nenhum acréscimo remuneratório, diga-se.
É a reposição da categoria que os enfermeiros sempre tiveram até 2009, quando a
ministra Ana Jorge decidiu terminar com a carreira dos enfermeiros. Acho que se
calhar a opinião pública não percebe tão bem o que se passa com os enfermeiros
porque também não sabe isto: os enfermeiros, até 2009, reformavam-se aos 57
anos, tinham um benefício por causa da penosidade de trabalharem por turnos,
havia serviços em que os enfermeiros tinham mais benefícios por trabalharem
naqueles serviços, pelos horários noturnos, podiam efetivamente a partir de uma
determinada idade pedir dispensa do trabalho noturno - e ainda podem, mas como
não há enfermeiros acaba por não ser concedido -, e tinham a categoria de
enfermeiro especialista, como tinham a de enfermeiro chefe, de enfermeiro
diretor, de enfermeiro supervisor. Existia uma carreira muito bem estruturada.
Mas só a antiga ministra Ana Jorge pode responder porque é que, na altura,
terminou com essa carreira. Depois dou outro exemplo: a questão da idade da
reforma interfere também diretamente na regulação - não posso ter um enfermeiro
aos 66 anos a fazer turnos com a carga física, emocional, psicológica que isso
implica, porque isso interfere naquilo que ele faz no dia-a-dia. São apenas
alguns exemplos de como a carreira se cruza com a regulação.
A Ordem nega que tenha tido alguma participação,
nomeadamente no apoio ao início destas greves, seja por ordem direta seja por
ordem indireta?
Nega, claro que sim. O que fazemos é acompanhar aquilo que
os enfermeiros e os sindicatos vão decidindo a cada passo.
Mas na marcação desta greve houve contactos com os
sindicatos para definir os moldes em que ela poderia acontecer.
Não. Aquilo que a Ordem faz e fará sempre é convocar os
sindicatos para reuniões para saber o que é que os sindicatos estão a pensar
fazer relativamente à marcação de greves. Porque elas interferem na nossa
regulação profissional, desde logo se houver violação dos serviços mínimos, a
Ordem tem de agir e, portanto, nós precisamos de estar informados sobre o que
os enfermeiros, neste caso os sindicatos que os representam, vão fazer. Também
temos de estar atentos a uma coisa que começou a surgir desde há dois anos e
meio para cá, que são os movimentos espontâneos de enfermeiros. Isso aconteceu
com o movimento dos especialistas de saúde materna, que eu penso que foi onde
toda esta contestação começou - quando eles decidiram deixar de prestar os
cuidados especializados, porque não eram reconhecidos como tal, e fizeram-no
com base num parecer do Conselho Jurisdicional da Ordem. Como é a Ordem que
emite o título, o que lhes diz é que se eles não fossem considerados como tal
não estavam obrigados a prestar esses cuidados especializados. Portanto, tudo
começou por aí. A seguir surgiu um movimento nacional de enfermeiros e desse
movimento nacional surgiu o movimento da greve cirúrgica, que teve esta ideia
da paralisação da greve cirúrgica, e que pediu aos sindicatos para ser apoiado.
A Ordem é um mero espectador, se quiser, um mediador desta questão.
Depois do anúncio da requisição civil a Ordem anunciou mais
uma dessas reuniões. Já se realizou?
Não. É na próxima terça-feira, com os enfermeiros diretores
das instituições em greve, com os sindicatos que convocam a greve e o movimento
da greve cirúrgica. Na primeira greve cirúrgica fizemos exatamente a mesma
coisa, perante as insinuações e declarações públicas de que havia violações dos
serviços mínimos, nós, embora não tivéssemos essa informação, tínhamos de ter a
certeza. Porque se houver - e isto é importante eu continuar a referir - a
Ordem tem de instaurar inquéritos disciplinares. Na primeira greve cirúrgica
não detetámos isso, a garantia foi dada pelos enfermeiros diretores, e nesta
segunda, pese embora tenhamos a mesma informação de que não houve, temos de ter
a certeza.
Terá havido infrações aos serviços mínimos?
Daquilo que nós sabemos até aqui, sem falar com os
enfermeiros diretores, a informação que temos é de que não houve. Recordo que
na primeira greve cirúrgica o presidente da secção regional da Ordem dos
Médicos disse isso publicamente. Fomos os dois chamados à Comissão de Saúde e a
verdade é que ele não tinha casos concretos para apresentar. Eu, até agora,
desde que comecei a ouvir essa questão da violação dos serviços mínimos ainda
não vi um único caso que comprove essa situação.
A sua recolha de informação é feita junto das estruturas
sindicais. Também fala com as administrações hospitalares ou com as estruturas
intermédias da direção dos hospitais para tentar fazer aqui um contraditório em
relação à informação que lhe chega?
A Ordem tem obrigação de falar com quem está no terreno
também e é isso que procuramos fazer. Quando vemos, ou através da comunicação
social ou de algum responsável de outra instituição ou de outra entidade
homóloga, que existiu esta violação, e quando dizem onde foi, a nossa
preocupação é falar com quem está lá todos os dias dentro dos blocos e perceber
aquilo que se passou.
Ouviu ontem certamente o Presidente da República criticar a
greve e apoiar a ideia da requisição civil, dizer que é intolerável perante uma
decisão legal - a requisição civil - dizer: não acatamos essa decisão. Como é
que lê as palavras do Presidente da República?
Eu tenho sempre uma interpretação simpática e benevolente
das palavras das pessoas, não só dele, mas das outras também. Eu vejo de outra
forma, vejo um Presidente da República preocupado com o abandono dos serviços,
tal como a Ordem, que teve o cuidado de dizer que a haver violação dos serviços
mínimos - ele não dá a garantia de que isso tenha acontecido - haverá razão
para esta requisição civil. Mas acho que ele, ao mesmo tempo, é cauteloso nas
afirmações que faz e diz uma coisa que, de resto, já referi aqui, que exerce o
seu mandato com afeto mas com autoridade. E nós também.
"Estou muito tranquila porque a Ordem tem despachos da
sua bastonária, sempre que é uma questão sindical, não podemos intervir. Tenho
essas provas todas."
Pretende agir judicialmente face às acusações do
primeiro-ministro?
Para já não, até porque o senhor primeiro-ministro o que
disse foi que nós tínhamos - ou eu teria - violado as competências da Ordem dos
Enfermeiros, mas depois não disse em quê. Porque ele diz isto - há factos, há
violações, há ilegalidades - e depois ninguém lhe pede para concretizar qual
foi o facto, qual foi a ilegalidade. Desse ponto de vista estou muito tranquila
porque a Ordem tem despachos da sua bastonária, sempre que é uma questão
sindical não podemos intervir. Tenho essas provas todas, estou de consciência
tranquila, acho que o que o senhor primeiro-ministro não gosta é das minhas
opiniões e declarações.
Depois da requisição civil, os enfermeiros ameaçaram com
novas formas de luta, entre elas não fazer horas extraordinárias ou faltar ao
serviço. Até onde estão dispostos a ir?
Essa é a nossa preocupação desde há muito, não é só de
agora. Desde que começaram estas negociações que se ouve, com muita
insistência, de alguns enfermeiros esta questão do abandono de serviços. A
questão das horas extraordinárias é diferente, porque é a própria Ordem que
tem, publicamente, apelado para que os enfermeiros recusem aquilo que nós
chamamos falsas horas extraordinárias. Isso tem que ver com a regulação profissional.
Porquê? Portugal tem dos rácios mais baixos dos países da OCDE de enfermeiros
por mil habitantes. O SNS português tem 4,2 enfermeiros por mil habitantes e a
média dos países da OCDE é 9,3 enfermeiros por mil habitantes. Isto faz que os
enfermeiros não cheguem para fazer as escalas de serviço. Já não chegavam com
as 40 horas e como não houve um reforço de contratação - apesar de o governo,
no verão, ter contratado 1100 enfermeiros, mas faltavam 600 que o anterior
ministro tinha dado a sua palavra de que iriam ser contratados em outubro, mas
depois a equipa ministerial mudou e a manta ficou ainda mais curta. Estas horas
não são verdadeiras horas extraordinárias, porque a hora extraordinária é para
fazer face a um imprevisto de serviço e, aqui, já é uma necessidade permanente.
Há uma escala de horas extraordinárias?
Há uma escala de horas extraordinárias já programadas. Além
de isto ser ilegal, levanta-nos aqui um problema sério de regulação. Há um
aumento claro do erro clínico porque os enfermeiros estão forçados a fazer
muitas vezes 12 e 16 horas e isto é muito violento. Portanto, a Ordem, como
forma de reduzir o erro clínico, e porque temos um estudo, com uma grande
amostra de milhares de enfermeiros, que nos diz que um em cada cinco
enfermeiros está já a trabalhar em burnout e dois terços a trabalhar em
condições de stress muito elevado, apelamos para que eles não cumpram essas
horas porque a elas não estão obrigados. A questão do abandono dos serviços é
diferente e preocupa-nos muito.
"Eu acho que quem foi o causador disto, em bom rigor,
foi o senhor primeiro-ministro. Porque, por muito que lhe custe e isso é o
viver em democracia, não é ele que escolhe a bastonária da Ordem dos
Enfermeiros"
De repente houve aqui um escalar, até verbal, do que tem
sido dito de um lado e do outro. Não teme o descontrolo e ter sido também causa
disso?
Para já, não queremos que se instale o descontrolo. Eu acho
que quem foi o causador disto, em bom rigor, foi o senhor primeiro-ministro.
Porque, por muito que lhe custe e isso é o viver em democracia, não é o senhor
primeiro-ministro que escolhe a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, a
bastonária é eleita pelos seus enfermeiros, e eu ganhei as eleições. Percebo
que as minhas opiniões, as minhas declarações - que nunca são agressivas -, o
incomodem, mas, de facto, ele foi muito agressivo com a Ordem dos Enfermeiros e
isso provocou naturalmente uma revolta. Como diz o senhor Presidente da
República que exerce o seu mandato com afeto mas com autoridade, também a Ordem
exerce o seu mandato com muito afeto pelos enfermeiros, mas também com
autoridade.
O que é que acha que motiva o primeiro-ministro nessa
relação tão crispada?
Eu não sei, só ele é que poderá responder a essa pergunta,
mas acho...
Mas acha que lhe deu pretextos para que a relação seja essa?
Não, até porque a minha posição não é de todo diferente de
outros representantes de outras ordens profissionais que também estiveram ao
lado dos seus membros. Recordo-me de em maio passado o senhor bastonário da
Ordem dos Médicos ter dito que ele próprio ia fazer greve, e de ter feito
conferências de imprensa com os sindicatos - e bem - na sede da Ordem dos
Médicos. Também a senhora bastonária da Ordem dos Farmacêuticos - houve uma
greve convocada na altura da negociação da carreira - esteve a apoiar os seus
farmacêuticos, e muito bem. Eu penso é que o senhor primeiro-ministro não gosta
das declarações que nós fazemos, mas isto é perigoso para a democracia, porque
hoje é com a Ordem dos Enfermeiros, amanhã será com outra instituição qualquer.
Essa relação era também crispada quer com o anterior
ministro quer com a atual ministra da Saúde?
"A senhora ministra pediu-nos no início da reunião que
lhe disséssemos o que é que os sindicatos aceitariam para parar este braço de
ferro. É evidente que nós estamos sempre disponíveis para o fazer, e fi--lo a
pedido da senhora ministra, e falei de questões que são de natureza da
carreira, mas a pedido da própria ministra."
Ainda bem que me fala nisso porque houve, de facto, alguns
episódios de grande tensão entre mim e o anterior ministro Adalberto Campos
Fernandes, mas isso nunca fez que ele deixasse de cumprir as suas funções como
ministro ou eu as minhas como bastonária. Nunca deixámos de falar, pese embora
publicamente houvesse às vezes algumas coisas menos boas entre os dois, mas ele
nunca deixou de cumprir o seu papel junto da Ordem e a Ordem nunca deixou de
cumprir o seu. Foi, portanto, com muita surpresa que nós vimos esta posição do
Ministério da Saúde. Porque já tínhamos até tido uma reunião com a senhora
ministra e eu também não posso aceitar que haja aqui dois pesos e duas medidas.
Nessa reunião que tivemos com a senhora ministra da Saúde levávamos uma agenda
de regulação e, quando íamos entrar nela, a senhora ministra pediu-nos
expressamente no início da reunião - é evidente que isto não foi público - que
lhe disséssemos o que é que os sindicatos aceitariam para parar este
braço-de-ferro. É evidente que nós estamos sempre disponíveis para o fazer, e
fi-lo a pedido da senhora ministra, e falei de questões que são de natureza da
carreira, mas a pedido da própria ministra. Portanto, eu não posso à segunda,
quarta e sexta pedir ajuda para fazer parar o protesto e depois, de repente,
acusarem a Ordem ou quererem cortar aqui relações institucionais. Até porque há
coisas que decorrem da lei, que são da nossa competência.
Sendo os sindicatos que estão a convocar esta greve
recentes, aliás são posteriores à sua entrada na Ordem, e pouco conhecidos do
ponto de vista de quem o público conhece, sabia que era quem ia aparecer.
Porque é que, sendo bastonária, se dispôs a fazê-lo?
Porque essa sempre foi a minha postura na vida, ser
bastonária é uma coisa passageira e, portanto, eu sempre fui assim. Chego a
bastonária da Ordem dos Enfermeiros sofrendo três processos disciplinares antes
disso, precisamente por ser tão vocal. Tenho a perfeita noção de que isso é
perigoso para uma sociedade que, na verdade, em termos de democracia ainda lhe
falta um longo caminho a percorrer, porque as pessoas não gostam de pessoas
incómodas, sobretudo o poder político.
"Se eu tivesse uma agenda escondida teria continuado no
Conselho Nacional do PSD e estaria a dizer bem do Rui Rio para ir nalguma lista."
Revê-se na acusação de que tem uma agenda escondida e que é
uma agenda partidária?
Bom, se eu tivesse uma agenda escondida teria continuado no
Conselho Nacional do PSD e, neste momento, estaria a fazer fila e a dizer bem
do Rui Rio para poder, eventualmente, ir nalguma lista. Não, eu nunca tive uma
agenda escondida, fui sempre muito crítica do meu partido e exerci sempre o meu
mandato no Conselho Nacional de uma forma muito crítica. Aliás, não sei se é
possível, mas se fosse, acho que o PSD devia disponibilizar as minhas
intervenções no Conselho Nacional, onde o anterior ministro da Saúde já nem
gostava de participar a maioria das vezes para não ter de me ouvir.
Nos últimos tempos, a saúde parece ter-se tornado um campo
de batalha político porque é uma das questões fundamentais do debate e da
discussão política da atualidade. Esta questão não lhe é alheia, até porque tem
a sua vida partidária e tem uma ideologia. Revê-se nesta ideia de estar a
participar numa luta partidária?
Não, de todo. Eu acho que a saúde é uma área que exige um
pacto de regime entre todos, e nós temos dito sempre isso porque é de facto
fundamental. Não compreendo - e vou ouvindo, como qualquer português, e as
pessoas lá em casa pensam nisso e isto não é populismo nem demagogia - porque é
que há 800 milhões para o Novo Banco e não há dinheiro para a saúde; porque é
que há toda esta consternação à volta do dinheiro que ainda não foi reposto na
Caixa Geral de Depósitos e o senhor primeiro-ministro não se indigna tanto como
se indignou com a bastonária e com a Ordem dos Enfermeiros. Estas questões
assaltam-me como assaltam qualquer português que é contribuinte e que acha que
está a ser lesado. Eu penso que, e não sou eu que o digo, a Dra. Teodora
Cardoso tem insistido muito nisto, a saúde é subfinanciada há muitos anos, e é
de facto, e estamos a assistir agora, em 2019, a um Orçamento do Estado para a
área da saúde mais magro do que o anterior. Portugal já é dos países que gastam
menos do seu PIB em saúde, e se olharmos para as previsões do FMI para 2030 na
área da saúde, vemos que são assustadoras. Nós não estamos a acautelar o
envelhecimento, a forma como temos de organizar os nossos cuidados de saúde,
cuja porta de entrada continua a ser a urgência do hospital e não os centros de
saúde. Todos nós sabemos o que é preciso fazer, mas depois efetivamente não se
faz, ano após ano.
Quais são os efeitos mais imediatos desse subfinanciamento
crónico, aqueles que sentem no vosso dia-a-dia?
Desde já são uns que são hoje imputados à greve cirúrgica e
que não são verdadeiros. Portugal tem um problema grave de listas de espera
cirúrgicas e já tem há muitos anos. É preciso perceber como é que chegámos até
aqui. Eu recordo o Relatório do Tribunal de Contas de 2017 que diz duas coisas
muito graves para nós: primeiro, que morreram mais de duas mil pessoas em lista
de espera; segundo, que houve uma manipulação de dados dessas listas de espera
por parte do governo. Não vi uma única reação do senhor primeiro-ministro, mas
a Ordem, cumprindo o seu papel de regulação, escreveu à Procuradoria-Geral da
República perguntando se não ia haver uma investigação a isto. Depois, no
dia-a-dia, sente-se naquelas pequenas coisas que são: a falta de enfermeiros
faz que não se possa abrir tantas salas operatórias como é desejável, ou então
que para abrir algumas salas operatórias eles tenham de trabalhar 12 horas sem
comer, e isto é desumano e, como já disse, potencia o erro clínico; depois não
há material. Estamos num processo de declínio do nosso SNS desde há 20 anos,
mas sobretudo nos últimos dez.
Em relação à Lei de Bases que está a ser apresentada e
discutida e na qual até o Presidente da República já interveio, a sua opinião é
a mesma da ministra, de que o SNS tem de ser reforçado face aos privados?
O SNS tem de ser reforçado face aos privados, mas nós
fizemos a nossa pronúncia, até porque nos foi pedido antes de sair a proposta
da Dra. Maria de Belém, pela própria, e depois quando chegou à Assembleia
fizemos uma pronúncia oficial. Portugal é dos países mais fortemente regulamentados
no setor da saúde em termos legais, e depois ninguém cumpre essa legislação.
Não é por fazer sair uma nova Lei de Bases que ela vai ser cumprida, porque a
anterior já não o era. Eu preferia discutir o que se passa no dia-a-dia, o que
é que os serviços precisam. Eu deixo aqui a pergunta: se a senhora ministra diz
que precisa de reforçar o SNS, e nós concordamos, porque é que prefere, em vez
de negociar com os enfermeiros e dar algum dinheiro aos enfermeiros, estar a
pagar cirurgias no privado?
Já fez essas perguntas?
Não. A Ordem também não se pode substituir ao governo nesse
papel, mas é um facto que de cada vez que há um problema no SNS o governo
recorre ao privado. O que é que aconteceu agora neste período de frio ou
período de contingência de gripe? Os hospitais não ativaram os seus planos de
contingência para contratação de recursos humanos porque o governo diz que não
tem dinheiro, mas depois tiveram de suspender toda a sua atividade cirúrgica
porque tinham as urgências e os serviços completamente entupidos. Atenção que
isto não tem nada que ver com a greve cirúrgica dos enfermeiros, foi uma opção
que os hospitais tiveram de tomar. Para onde é que acham que foram encaminhados
estes doentes? Foi emitido um vale de cirurgia para o privado. Tudo porque o
governo não quis gastar dinheiro a ativar os planos de contingência.
"Se for legal, eu penso que se deve divulgar que as
contribuições não vieram, como eu sei que não vieram, de grupos de
interesses."
Esta é uma greve inédita, não só pela duração como também
pela forma como ela é financiada através de uma plataforma online de
crowdfunding. Quem é que está afinal a pagar esta greve? A senhora bastonária
tem informação sobre isso?
Bom, eu diria que, maioritariamente, os enfermeiros se
quotizaram. Eu sei que vocês não veem isso, mas eu vou vendo, sobretudo no
Facebook. Eles fazem não só contribuições individuais como coletas nos
serviços. Os enfermeiros portugueses no estrangeiro, que neste momento são 18
mil, fazem coletas para enviar dinheiro para o crowdfunding dos enfermeiros
portugueses. Portanto, diria que a grande maioria desse valor vem destas
quotizações de serviços inteiros, dos enfermeiros individualmente através dos
seus familiares, de amigos, de mim própria, que também dei dinheiro para esse
crowdfunding, porque ele é meu e faço dele aquilo que entender. Acho que é um
pouco perverso estarmos a atacar um meio de crowdfunding quando o próprio
primeiro-ministro usou a mesma plataforma para fazer um crowdfunding e
financiar a sua campanha em 2013 à Câmara de Lisboa. Eu não posso achar que o
crowdfunding é bom quando me dá jeito e é mau quando me está a provocar um
dano.
É verdade que com valores completamente diferentes. O
primeiro-ministro julgo que atingiu 3500 euros e os enfermeiros já vão em 400
mil euros neste segundo e 300 mil euros no primeiro crowdfunding.
Isso tem dado azo a algumas piadas entre os enfermeiros que
não podemos divulgar, mas de facto são valores diferentes, mas o princípio é
exatamente o mesmo.
Não acha que era mais transparente revelar quem está de
facto a financiar esta greve?
Eu vou chamar aqui a atenção para uma questão legal - houve
uma pergunta até por parte dos colegas e que eu acho que tem de ser respondida
pela Comissão Nacional de Proteção de Dados -, hoje há um novo regime, uma nova
lei de proteção de dados, e por muito que eles queiram revelar quem são os
contribuidores ou a PPL o queira fazer, porque esses têm toda a informação, eu
acho que tem que haver aqui uma pronúncia da Comissão Nacional de Proteção de
Dados para ninguém cair numa ilegalidade. Os enfermeiros já são acusados de
determinadas coisas e iriam ser acusados de ter divulgado ilegalmente dados
pessoais.
De quem foi esta ideia de crowdfunding?
Foi de um grupo de enfermeiros que andava há muito a pensar
quais seriam as formas mais eficazes de chamar a atenção do governo para
poderem fazer uma iniciativa, desta ou de outra natureza, e que foram pedir
ajuda aos sindicatos para se associarem a eles e fazerem uma greve cirúrgica.
Mas atenção, há muitos anos que os enfermeiros falam de uma coisa desta
natureza, de que devia haver uma greve que fosse setorial, e ao contrário do
que as pessoas pensam, "ah, isto tem que ver com o facto de não se
realizarem as cirurgias, por isso há um maior motim, digamos assim,
social". Não. Tem que ver com a questão do financiamento dos hospitais.
Porque se não houver produtividade cirúrgica isso afeta muitíssimo aquilo que é
o financiamento dos hospitais. O motivo é este, não é cancelar cirurgias. No
fundo foi o que eles pensaram, porque ainda não tinham sido constituídos estes
novos sindicatos, e eu lembro-me perfeitamente de ainda não estar bastonária e
de ouvir, vezes sem conta, os enfermeiros pedirem ao Sindicato dos Enfermeiros
Portugueses, que era o que existia, e ao Sindicato de Enfermeiros, à Fense, que
depois tem dois sindicatos, variadíssimas vezes que fizessem este tipo de
greve. Portanto, isto não é uma ideia nova.
Percebo quando diz que é preciso esclarecer a questão legal
em torno da divulgação dos eventuais contribuintes para este crowdfunding, mas
pergunto-lhe: na sua opinião, por uma questão de princípio esquecendo a
perspetiva legal, acha que devem ser divulgados os nomes de quem contribuiu
para esta causa?
Se for legal, eu penso que se deve divulgar que as
contribuições não vieram, como eu sei que não vieram, de grupos de interesses.
Eu tenho a certeza de que as cinco pessoas que gerem este fundo e que têm
acesso aos dados - eu não tenho nem quero ter - estão a dizer a verdade. A
questão da legalidade é importante. Não se pode querer a legalidade para umas
coisas e depois não a respeitar para outras. Devem ser revelados para combater
a desinformação que algumas pessoas e comentadores, esses sim com motivações
partidárias, estão a difundir em relação ao crowdfunding dos enfermeiros.
Sente que esta causa está a perder o apoio da opinião
pública?
Não. Não sinto porque hoje os enfermeiros são responsáveis
por cuidar e suprir as necessidades mais básicas de milhares de doentes
crónicos no país. Essas pessoas e todas as outras que episodicamente precisam
de nós nos centros de saúde, nos hospitais, sabem o que são os enfermeiros e
acho que compreendem o que se está a passar.
Mas essa boa imagem, precisamente, não está a ser denegrida
com esta luta, não sente que ela está a afetar a imagem dos enfermeiros?
Pela luta não. Penso que há uma tentativa por parte de
determinadas pessoas que comentam, que têm rosto e voz e chegam à opinião
pública, de diabolizar os enfermeiros. O enfermeiro que está em greve - e as
pessoas sabem - é aquele que ajudou a nascer o seu filho, aquele que esteve lá
quando morreu o seu pai, aquele que o socorreu quando não estava lá mais
ninguém e as pessoas sabem disso.
Quantos enfermeiros estão em greve?
O número certo não sabemos. Os sindicatos devem ter esses
dados. Esta é uma greve decretada que é apenas feita pelos colegas do bloco
operatório e que não abrange todos os hospitais.
A Ordem tem algum poder de mediação e passará por aí também
a sua função. Qual é o caminho para ultrapassar este conflito com o governo?
Isto tem de parar. Por isso, se o senhor primeiro-ministro
precisar de mim amanhã, pode contar comigo. Os sindicatos já se
disponibilizaram para fazer algumas concessões e o governo também o deve fazer.
Do que ouviu do lado sindical, o que é que é indispensável
que se cumpra para que este conflito seja ultrapassado?
Do que ouvi do lado sindical, é a questão da reforma, é a
questão das remunerações. Agora, há sempre um meio caminho para essas
remunerações e para essa idade da reforma. Têm de ser os sindicatos a definir
esse ponto médio de acordo com o que estão dispostos a aceitar como,
paralelamente, também o governo tem de dizer o que é que está disposto a ceder.
Nós estaremos sempre disponíveis, como temos estado, para ajudar, pese embora o
anúncio do senhor primeiro-ministro de processos, de ilegalidades ou de
violações por parte da Ordem, o senhor primeiro-ministro conta comigo.
Pensa que o senhor Presidente da República teria condições
para mediar este conflito, uma vez que o diálogo entre o primeiro-ministro, a
bastonária e as estruturas sindicais não está a decorrer nas melhores
condições?
Considero que sim. O senhor Presidente da República tem
condições para fazer essa mediação, como porventura o terá feito noutras
questões, e que o papel dele é bastante importante. É uma pessoa bastante
acarinhada pelo povo e tem também essa função.
Acha que o seu partido e fundo Rui Rio tem tido uma atuação
altamente questionável, como ele disse em relação à greve?
Tem tido Rui Rio como tem tido a Dra. Catarina Martins, com
as declarações que tem proferido. Eu, aliás, confesso que me custa um bocadinho
olhar para aquilo que tem sido a postura dos partidos de esquerda relativamente
à justa luta dos enfermeiros e não queria acreditar quando na Comissão de Saúde
uma deputada do PCP me perguntou se eu não iria instaurar um inquérito
disciplinar a uma dirigente sindical por declarações que proferiu na televisão.
Penso que isto está completamente invertido do ponto de vista do que defendem,
do que têm defendido sempre os partidos de esquerda ao longo destes anos e da
forma como se estão a comportar hoje com os enfermeiros. A Dra. Catarina
Martins chegou a dizer que os enfermeiros seriam melhores do que a sua
bastonária. Acho que é desnecessário, só os aborrece ainda mais, penso que eles
ainda não compreenderam que quando atacam a bastonária atacam, de facto, todos
os enfermeiros, e Rui Rio não tem sido diferente. Nesse aspeto, estão todos
iguais.
São muitas guerras ao mesmo tempo. Uma recente, dizia que um
médico no primeiro ano de internato não é um médico. O bastonário obviamente
não gostou de ouvir as suas declarações que classificou como "falsas,
atentatórias da dignidade dos médicos e totalmente inaceitáveis". Um
enfermeiro no seu primeiro ano de profissão também não é um enfermeiro?
Um enfermeiro no seu primeiro ano de profissão não é
interno. Mas nós bem gostaríamos de ter um internato de especialidade. Aliás,
foi isso que apresentámos ao governo porque faz todo o sentido o internato dos
médicos da forma como ele está delineado porque é totalmente financiado pelo
Estado. Os enfermeiros para fazerem a sua especialidade pagam integralmente do
seu bolso. Portanto, consideramos que eles estão bem e nós é que estamos mal, e
apresentámos uma proposta ao governo neste sentido. Agora houve este corte
temporário - não sei muito bem quanto tempo dura o castigo - de relações que
impede esta negociação que começou com o ministro Adalberto e que até está
pré-aprovada num regulamento que foi homologado pela tutela no gabinete
anterior, que é o regulamento de inscrição atribuição de títulos da Ordem dos
Enfermeiros. Este já refere a questão do internato, mas apenas para a
especialidade dos enfermeiros, para estas doze que eu referi ainda há pouco, e
portanto o que nós queremos é exatamente a mesma coisa. É ter um internato
tutelado e financiado pelo Estado, porque hoje são os enfermeiros que pagam do
seu bolso.
Tudo isto é mais um prego no caixão do SNS. Com esta
crispação tão forte, com cinco mil cirurgias adiadas, etc... é essa. Não sente
que do outro lado os privados se ficam a rir?
Não. O que eu sinto é que a imagem do SNS já é muito má. As
pessoas que o frequentam infelizmente sabem disso. Há muito pouco tempo, ainda
antes das greves cirúrgicas, tinha havido um inquérito à população
relativamente às condições do SNS e os resultados não foram nada animadores.
Relativamente a essa suspeita, ela é levantada por algumas pessoas porque lhes
interessa lançar esta suspeita, mas eu tenho a certeza de que isso não é
verdade. Volto a afirmar que eu não tenho os dados, não preciso de os ver, mas
tenho a certeza de que não há privados a financiar este crowdfunding e que é
com o esforço individual dos enfermeiros. Eu penso que as pessoas não sabem,
mas alguém com trinta anos de serviço, com vinte anos ou quinze dias, o seu
ordenado líquido é 980 euros por mês. Tenham eles ou não especialidade,
mestrados, doutoramento, não interessa. É este o valor do vencimento de um
enfermeiro. Acho que os privados não se estão a rir desta situação porque
infelizmente sem greve cirúrgica, como o SNS é subfinanciado, eles já têm muito
dinheiro do Estado e, neste aspeto - não é que eu não concorde que existam
privados, há espaço para todos -, não deviam ter. Mas tem de haver aqui um SNS
que sirva toda a população e ao que nós estamos a assistir é, provavelmente, a
construção de um SNS só para pobres. Isso não é desejável. O SNS é um dos
pilares da democracia e um fator de coesão social. É fundamental que ele
continue a crescer e continue a ser financiado. Os privados continuam a ter a
sua área de atuação como sempre tiveram, mas não podem é engolir o SNS. Isso é
que não podemos deixar que aconteça.
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