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O esvaziamento da Presidência
Na verdade, com as suas selfies, afectos e telefonemas para
programas de televisão, Marcelo reduziu o papel do Presidente da República ao
de um simples mestre-de-cerimónias
05/02/2019
Luís Menezes Leitão
Marcelo Rebelo de Sousa aproveitou uma deslocação ao Panamá
para anunciar a sua intenção de se recandidatar à Presidência da República. A
razão que apresentou para o efeito foi a de considerar que mais ninguém estaria
em condições de receber o Papa aquando da sua visita a Portugal, em 2022. É
preciso reconhecer que como justificação para uma recandidatura presidencial é
muito pouco, atendendo ao papel central que o Presidente da República
desempenha no nosso sistema político constitucional. Mas a verdade é que, face
ao esvaziamento que Marcelo estabeleceu para a sua Presidência, a justificação
é plenamente adequada. Na verdade, com as suas selfies, afectos e telefonemas
para programas de televisão, Marcelo reduziu o papel do Presidente da República
ao de um simples mestre-de-cerimónias. E, neste enquadramento, o facto de
considerar ser o que está em melhores condições para receber o Papa é razão
mais do que suficiente para se recandidatar à Presidência.
Mas, se falarmos das funções que constitucionalmente
competem ao Presidente da República, parece claro que o seu exercício por
Marcelo tem sido muito deficiente. Nem uma única vez durante o seu mandato
remeteu ao Tribunal Constitucional um diploma para fiscalização da
constitucionalidade, apesar de ser essa uma competência que a Constituição
expressamente lhe atribui (art.o 134.o, als. g) e h)). Inúmeras leis que
suscitam sérias dúvidas de constitucionalidade têm sido assim prontamente
promulgadas, o que deixa os cidadãos desprotegidos, uma vez que através da
fiscalização sucessiva pelos tribunais se leva vários anos a atingir o Tribunal
Constitucional. Só que, em vez de exercer a fiscalização da
constitucionalidade, como lhe competia, Marcelo limita-se a fazer piedosas
declarações ou ameaças veladas aquando da promulgação, as quais não têm
qualquer eficácia jurídica.
Um dos exemplos mais absurdos desta prática presidencial foi
a promulgação da lei das 35 horas na função pública, que Marcelo promulgou em
Junho de 2016, ameaçando mandá-la para o Tribunal Constitucional se houvesse
aumento de despesa. Embora o aumento da despesa possa ter sido travado com as
cativações de Mário Centeno, o resultado dessa lei foi o colapso total dos
serviços públicos, inclusivamente no Serviço Nacional de Saúde, como hoje está
à vista de todos. Mas a tal promessa de Marcelo de envio do diploma para o
Tribunal Constitucional continua por cumprir há dois anos e meio.
Como compensação pela sua abstenção de exercer a
fiscalização da constitucionalidade, Marcelo opta por vezes pelo veto político.
Mas fá-lo sem qualquer critério, uma vez que, perante a sua torrente geral de
afectos, não se consegue perceber qual é de facto o pensamento político do
Presidente. É assim que Marcelo reconhece que as alterações à lei do
arrendamento “podem provocar um [ainda] maior constrangimento no mercado do
arrendamento para habitação”, mas não hesita em promulgá-las. Reconhece também
que se pode traduzir em “injustiças mais ou menos significativas” sancionar
senhorios por assédio em multas que não têm qualquer relação com a renda que
eles recebem, mas também promulga esse diploma sem qualquer problema. Em
compensação, Marcelo veta politicamente um diploma que reconhece o interesse
público de uma Escola Superior de Terapêuticas Não Convencionais, como se uma
escola superior ter ou não interesse público seja uma questão que justifique
qualquer intervenção do Presidente.
Na sua obra de 1978, “Échec au roi”, traduzida em português
como “Xeque-mate”, Maurice Duverger analisou os sistemas semipresidenciais
europeus, chamando a atenção para a especial importância que tem a eleição
presidencial directa para o papel do Presidente da República no sistema
político-constitucional. Como o autor salienta, não se elege um presidente por
sufrágio universal para que ele inaugure exposições, mas antes para agir. Em
Portugal, a presidência de Marcelo parece, porém, querer desmentir esta
conclusão de Maurice Duverger. Afinal de contas, é possível Portugal eleger um
Presidente por sufrágio universal apenas para ele receber o Papa no nosso país
em 2022.
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