"Quando alguém come peixe, está a consumir plástico"
Mergulhador, biólogo marinho, fundador da Blue Sphere
Foundation, fotógrafo, diretor de fotografia de documentários como Racing
Extinction, Shawn Heinrichs fala ao DN sobre o flagelo do plástico no mar e da
urgência de salvar a vida nos oceanos.
Patrícia Viegas
11 Fevereiro 2019 — 22:46
Shawn Heinrichs é mergulhador, biólogo marinho, fotógrafo,
fundador da Blue Sphere Foundation, membro da Sea Legacy e diretor de
fotografia de documentários como Racing Extinction.
Natural de Durban, na África do Sul, vive no Colorado, EUA,
mas viaja por todo o mundo. Tem 47 anos e, neste tema, colabora frequentemente
com a ONU.
Ao DN, em entrevista por e-mail, o vencedor do prémio Sea
Hero of the Year de 2011 fala do flagelo do plástico no mar e da urgência de
salvar a vida nos oceanos.
Quais as maiores transformações que tem observado nos
oceanos desde que começou a mergulhar até hoje?
Dos lugares com transformações mais assinaláveis é sem
dúvida Raja Ampat, na Indonésia, nomeadamente a reserva marinha de Misool.
Nesta reserva, vi uma recuperação da biomassa na ordem dos 250% a 600%, aumento
dos tubarões e recuperação de outras espécies. Aqui, a indústria, as ONG e o
governo trabalham em equipa com a comunidade, criando patrulhas eficazes, que
são apoiadas pelo governo e pela indústria. É, provavelmente, uma das histórias
mais inspiradoras em termos de mudanças.
Na Tailândia, por exemplo, é surpreendente o uso do plástico
pela população, o plástico que se encontra no mar, a boiar, debaixo de água ou,
simplesmente, na areia das praias. Segundo um relatório da Ocean Conservancy,
de 2017, a Tailândia é um dos cinco países asiáticos que mais plástico mandam
para o mar do que o resto do mundo todo. Os outros são China, Indonésia,
Filipinas e Vietname. O que deve mudar nestes países para que esta situação
mude também?
Um ponto fulcral é que existe um alheamento total entre o
que consumimos e aquilo que mandamos para o ambiente. Muitas vezes, as pessoas
compram coisas que não sabem de onde vêm. Consomem-nas e, depois de o terem
feito, acham que tudo [o lixo] desaparece como que por magia. A verdade é que
tudo vem da natureza e tudo volta para a natureza. As coisas que são orgânicas
e geridas de forma sustentável têm um ciclo bem estabelecido, mas as coisas
sintéticas que produzimos e que são de colheitas não sustentáveis não têm esse
ciclo. Nada representa isso melhor do que o plástico. Vivemos na era do
plástico descartável. Os plásticos duram centenas de milhares de anos.
O microplástico é ingerido pelos organismos marinhos depois,
ou é comido pelos peixes, ou por organismos que servem de alimento a esses
peixes, depois entram, eventualmente, na nossa cadeia alimentar. Quando alguém
come peixe, está a consumir plástico. Estima-se que a meio do século haverá
mais plástico do que peixes nos oceanos. As mensagens que recebemos todos os
dias são para consumir, consumir, consumir. E não mensagens a dizer: são estas
as consequências do teu consumo, é desta forma que te vai afetar negativamente
e há muitos mais benefícios em consumir e descartar o que consumimos de uma
forma muito mais consciente. Então, é preciso chegar às pessoas e inspirá-las
para tomarem melhor conta de si e do planeta.
Em ilhas como Koh Samui e Koh Tao os mergulhadores locais
admitem que há espécies de peixes que deixaram de ver. Há muito tempo que
estuda a proteção dos oceanos. Tem feito muitos documentários sobre esse tema.
Diz que, em 50 anos, as espécie de peixes estão 10% mais pobres do que eram
antes da era da pesca industrial. O plástico não é a única causa. Quais são as
outras? O que está a ser feito para reverter esta tendência e o que mais deve
ser feito?
A maior causa da perda das espécies de peixe é a sobrepesca.
Em vez de olharmos para os oceanos como uma conta bancária, olhamos como uma
espécie de recompensa infindável que podemos continuar a pilhar, dia e noite,
porque se regenera por si própria. Em 50 anos de indústria pesqueira aprendemos
que não é assim.
É normal comer mexilhões com plástico azul?
Com o grau de eficiência das nossas pescas, com a tecnologia
a uma escala nunca imaginada, perdemos 90% dos grandes peixes predadores nos
últimos 50 anos. Isso é mais sentido nos países que dependem da pesca como
fontes de proteína. O Sudeste Asiático é talvez das regiões mais dependentes do
mundo.
Nesses países temos mais frotas de pesca do que noutras
partes do mundo. Saem, pescam tudo o que apanham, uma e outra vez. A pesca à
linha ou com redes pequenas deu lugar a arrastões de fundo, levando tudo à sua
passagem. Uma procura desequilibrada por frutos do mar, nalguns países, teve um
impacto tão grande que levou muitas espécies ao limite. Os plásticos são apenas
o golpe final num sistema que já está no limite.
Em 2017, em San Diego, fiz reportagens sobre a indústria da
pesca do atum, que no passado empregou muitos emigrantes portugueses. Por causa
de questões ambientais, como a proteção dos golfinhos que ficam presos nas
redes dos pescadores, essa indústria entrou em declínio nos EUA. Mas mudou-se
para outras paragens: Tailândia, por exemplo. Então, EUA tomam medidas. A União
Europeia toma medidas, como as quotas de pesca. Mas noutros sítios nada se faz?
Como mudar isso?
Importa dizer que os oceanos não estão divididos em blocos,
está tudo ligado. O atum é um bom exemplo, vale quase 50% das pescas globais.
Cinco das oito maiores reservas de atum já entraram em colapso, outras três vão
pelo mesmo caminho. Mesmo as medidas do Ocidente não são suficientes. As
populações de atum continuam a decair no Ocidente, os golfinhos continuam a
sofrer, os tubarões foram obliterados de forma massiva com capturas acessórias
de pesca. Precisamos de reformas até nos países que "têm melhorado
imenso". Quando olhamos para países asiáticos como China, Japão,
Tailândia, pouco foi feito em relação às pescas. Vemos países como a China a
investir na sua frota de barcos de pesca de atum e que a frota chinesa eclipsou
todas as frotas dos outros países no Pacífico. Isso aconteceu em apenas uma
década. Em vez de vermos redução de capacidade, crescente vigilância e
sustentabilidade, vemos o contrário. É preciso pressão, a todos esses níveis,
para compreender as consequências, não apenas para a natureza mas também para
os humanos, se nada for feito.
Tem centrado muito do seu trabalho na proteção de mantas e
tubarões. Porquê?
O verdadeiro centro do meu trabalho é conseguir ligar as
pessoas à natureza e aos oceanos em geral. Inspirar todo o tipo de conservação
marinha, de proteção de habitats importantes, de espécies, reforma das pescas e
da poluição marinha. As raias e os tubarões são uma coisa em que me envolvi a
nível pessoal. Olho para eles como embaixadores incríveis dos oceanos porque
estes animais carismáticos e sencientes são algo com que as pessoas se podem
identificar e relacionar. As raias-mantas são animais incrivelmente curiosos.
A sua organização, Blue Sphere Foundation, promove três
expedições anuais para doadores que permitem aos entusiastas dos oceanos
testemunhar na primeira linha o vosso trabalho de conservação. Como é que
funciona?
Não há melhor maneira de inspirar uma pessoa a querer
proteger e conservar os oceanos do que levá-la para os oceanos. Constato que
muitas pessoas não têm tempo, dinheiro ou meios para entrar nos oceanos e nadar
com estes animais. Isto são oportunidades que damos às pessoas de partilhar o
espírito que existe na nossa organização mas também de interagir com estes
animais, ver como eles são vulneráveis e gentis. Ver como eles são afetados
pelos danos que estão a ser causados.
Estas expedições destinam-se a criar laços profundos com os
oceanos, com estas criaturas, mas também convidar as pessoas para a nossa
comunidade. Estamos a dizer que aqui existe um lar para aqueles que se
preocupam. Aos doadores, em especial, dá-lhes uma visão e permite-lhes contar o
que viram quando voltarem às suas empresas ou aos conselhos de administração.
Dizer que é preciso agir.
Portugal tem uma das maiores zonas económicas exclusivas da
UE e, em 2020, Lisboa vai receber a conferência da ONU sobre os oceanos. Já
tinha sido convidado pela ONU a falar destes temas. Qual deveria ser, na sua
opinião, o foco desta reunião?
Há tantas questões relacionadas com os oceanos. É difícil
dizer por onde se deve começar. A sustentabilidade é o que tem mais atenção,
mas não está a acontecer, na maior parte dos casos. Há pescas sem controlo. Há
tantas zonas de pesca e tão poucas zonas para os peixes se esconderem. Havia a
meta de proteger 20% dos oceanos até 2020, que agora parece que vai passar para
30% em 2030. Se isso acontecer, podemos fazer coisas magníficas dos oceanos.
INDONÉSIA
Um mergulho no meio de lixo e plástico do mar de Bali
Uma das coisas mais importantes que se pode fazer é dar a
esses animais sítios onde não são perturbados. Fazer um compromisso global
sobre uma redução, em escala, em volume, da pressão das pescas, é da maior
urgência. E também mudar os métodos usados para pescar.
Como é que Portugal pode ajudar outros países a ter mais
consciência da importância dos oceanos?
Portugal tem uma frota pesqueira considerável. As frotas
comerciais têm subsídios e praticam sobrepesca e usam técnicas de pesca
destrutiva. Portugal poderia liderar eliminando subsídios e aumentando a
sustentabilidade da sua frota pesqueira. Se é o país anfitrião, esse compromisso
vem com um preço e esse preço é fazer mudanças difíceis.
Adoraria ver uma coisa dessas acontecer, mas sei que é
difícil pedir isso a países que têm a nobre tradição de pescar, exceto o facto
de isso nada ter de nobre. São operações comerciais sem qualquer cuidado,
diligência ou monitorização.
Quão importante é, para si enquanto pessoa, a natureza, os
oceanos?
Enquanto criança, cresci em Durban, na África do Sul. Isso
deixou uma marca indelével na minha alma. Os oceanos são um sítio incrivelmente
terapêutico, uma das últimas fronteiras selvagens da Terra. É lindo, poderoso e
abundante. Como alguém que adora mergulhar na natureza, sentir a terra debaixo
dos meus pés, o ar na cara e o cheiro das árvores, ter oceanos saudáveis é algo
que considera incrivelmente reparador. Ao longo da minha vida, ver esta
fronteira selvagem ser devastada para fins comerciais, que extraíram e
destruíram grande parte do seu habitat, é de partir o coração. Os oceanos não
são um sítio de onde apenas tiramos coisas e para onde atiramos coisas.
Em 2011 recebeu o prémio Sea Hero of the Year. É assim que
quer ser recordado?
Agradeço o prémio. Mas prémios e distinções não são o que
procuro. A única coisa pela qual gostaria de ser recordado é pelas áreas que
ajudei a proteger, as espécies que ajudei a defender e o movimento por oceanos
abundantes que ajudei a promover. Essas são as coisas que mais importam para
mim.
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