Os
último retroseiros de Lisboa
POR O CORVO • 6
FEVEREIRO, 2017 •
São oito as
retrosarias que ainda existem na Rua da Conceição, na Baixa
Lisboeta. Comerciantes tenazes, que resistiram ao êxodo do centro da
cidade e aos novos hábitos sociais e de consumo. Travam agora uma
batalha decisiva com a especulação imobiliária. Mas há, entre
eles, quem ache que as coisas até não estão assim tão mal. Têm
mesmo aparecido novos clientes.
Texto: Rui
Lagartinho Fotografias: Paula Ferreira
A 5 de Novembro de
1760, cinco anos depois do grande terramoto de Lisboa, um diploma do
rei Dom José define o nome das ruas do quadrilátero que se estende
entre a Praça do Comércio e o Rossio, o coração da zona que
ficará conhecida como Baixa Pombalina. Sobre a Rua da Conceição
determina-se que nela se alojem “os mercadores de logens de
retroz”. Foi, por isso, conhecida, durante algum tempo, como “rua
dos retroseiros”.
Foi o único mester
que perdurou. Se hoje já não existem – pelo menos visíveis ao
nível das lojas de rua – nem sapateiros, nem douradores, nem
correeiros nos arruamentos com o mesmo nome, os retroseiros resistem
na Rua da Conceição, dois séculos e meio depois no seu
acantonamento.
A hegemonia deste
tipo de comércio naquela rua, porém, está já diluída. São menos
de uma dezena as retrosarias abertas, entre lojas de recordações,
restaurantes e prédios em ruína, alguns entretanto entaipados, para
abrirem com a habitual cara lavada a fim de um investidor hoteleiro o
comprar.
É a imagem de marca
de toda a Baixa. Mas à Rua da Conceição, também conhecida como
“rua dos eléctricos” – por nela passar o icónico 28 -, ainda
é possível ir comprar botões, sejam eles “portugueses ou
italianos, em pele, plástico, pedras, pérolas”, como exemplifica,
numa lista não exaustiva, Alfredo Ricardo, 75 anos, há mais de
sessenta a trabalhar na retrosaria Alexandre Bento.
Enquanto conversa
com O Corvo, do outro lado do balcão, é atendida uma cliente
habitual, que aqui veio hoje à procura de alamares – um
compromisso entre o fecho e o botão – para um sobretudo. “Quando
venho à Rua da Conceição, tenho a certeza de que vou encontrar o
que procuro”, diz-nos a cliente, satisfeita.
Trabalham nesta
retrosaria três pessoas, o negócio é familiar e resistir é a
principal preocupação. Na semana em que o Corvo foi à loja, o
gerente tinha recebido uma carta do senhorio com uma proposta de
renegociação da renda. “Veremos até onde posso ir”, conclui,
encolhendo os ombros.
Num passeio pelas
retrosarias da Rua da Conceição, tem-se também a sensação de
viajar a outra época. As placas art déco com o nome do fundador e a
data de abertura poderiam estar num museu de artes gráficas. O
mobiliário de madeira escura, com centenas de gavetas onde se guarda
aquele botão tão especial que merece quase um cofre forte, também
ajuda a construir o charme. “Infelizmente, há gavetas que levamos
muitos anos sem abrir e, quando o fazemos, é uma festa”, diz-nos
Alfredo Ricardo.
Na Arqui Chique,
onde Maria Francisco Creces trabalha desde 1981, respira-se ainda o
ar de um tempo eternamente feminino, nos remates dos ferros forjados
da decoração ou nas cores suaves com que as paredes estão
pintadas. O regresso do interesse pelo tricô fez com que as lãs
ganhassem espaço de destaque na loja, em detrimento dos acessórios
que as modistas cobiçavam.
“A casa que mais
barato vende, mais sortido tem e onde toda a gente vem” é, desde
1912, o lema da firma Adriano Coelho. A equipa de seis empregados de
Guilherme Pais tenta manter o espírito em alta. Os elásticos e os
cordões de seda são os campeões de venda. O facto da loja ter
caído no goto das costureiras dos teatros talvez ajude a explicar um
ambiente menos soturno que nas suas congéneres. “A crise do teatro
de revista levou-nos alguns clientes, mas foi daqui que saíram
muitos dos apliques dos vestidos usados shows de travestis do Bar
Finalmente”, orgulham-se.
A chegada de
clientes mais institucionais e com grandes necessidades de
guarda-roupa, como a Companhia Nacional de Bailado ou o Teatro
Nacional Dona Maria II, vieram equilibrar a balança.
Carlos Cruz, da
retrosaria J. Roda da Silva, está menos optimista. “Não há volta
a dar. Com a partida das empresas da Baixa, e agora com a venda de
quarteirões inteiros a fundos imobiliários, os tempos não são
sorridentes. Somos um lindo museu a céu aberto, os turistas adoram.
Entram, fotografam, mas compram muito pouco”, queixa-se.
Uma das peças mais
fotografadas nesta rua-museu é, de certeza, a máquina registadora
da retrosaria Nardo. Nela, pede-se, delicadamente, ao cliente que
verifique o montante que aparece no visor. Hugo Barreiros divide-se
entre as duas lojas. Contraria a ideia de haver menos fornecedores
nacionais de material, um facto referido por outros lojistas.
“O que existe é
uma mudança na industria tradicional. Podem ter desaparecido grandes
firmas, mas surgiram outras com outra dimensão e a apontar a outro
tipo de procura, mais artesanal, mais sofisticado. São tempos
diferentes. Há um grande interesse por estas lojas, há até novos
clientes. Agora, estamos no coração da Baixa, uma zona muito
cobiçada pela especulação”, constata.
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