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Chiado, prédio dos anos 70 vira hotel de charme pombalino
Projectistas
de novo hotel dizem que o edifício, decorado com azulejos de António
Vasconcelos Lapa, não é compatível com a envolvente e propõem
"reinterpretação contemporânea" da arquitectura
pombalina. Técnicos da câmara discordam, mas o projecto deverá ter
luz verde.
JOÃO PEDRO PINCHA 6
de Fevereiro de 2017, 8:45
O Largo Rafael
Bordalo Pinheiro, a meio caminho entre o Chiado, o Carmo e a
Trindade, pode estar prestes a mudar de aspecto. Naquela praça
lisboeta existe um prédio, construído na década de 1970, que se
destaca pelas linhas modernistas da fachada e por 33 painéis de
azulejos de autor. Agora, uma empresa de investimentos imobiliários
quer transformá-lo num hotel de cinco estrelas com estética
pombalina. O projecto está quase a ser aprovado pela Câmara
Municipal de Lisboa, apesar de haver um parecer claramente negativo
dos técnicos encarregados por zelar pelo património da cidade.
O edifício, que faz
esquina entre o Largo Bordalo Pinheiro e a Rua da Trindade, foi
construído entre 1974 e 1977 para a companhia de seguros Império. O
projecto é da autoria dos arquitectos Diogo José de Mello e João
Andrade e Sousa. Os painéis de azulejos, todos diferentes entre si,
com motivos geométricos azuis, amarelos e brancos, foram desenhados
pelo ceramista António Vasconcelos Lapa.
A dona deste prédio
e do contíguo, que torneja para a Rua Nova da Trindade, é a
Coporgest, uma empresa de investimentos imobiliários que já
reabilitou diversos edifícios nas imediações do Chiado. Agora quer
transformar ambos os edifícios no Lisbon Chiado Hotel, uma unidade
hoteleira de cinco estrelas com 13 suites, 32 quartos duplos, piscina
e bar no terraço e um spa na cave.
Para tal, o projecto
apresentado à câmara em Setembro propõe “requalificar as
fachadas do edifício do Largo Bordalo Pinheiro, transferindo para
este uma imagem arquitectónica mais integrada com a envolvente
edificada”. A fotomontagem incluída no processo mostra um prédio
pintado de verde com grandes janelas, varandas e uma mansarda. As
linhas modernistas desaparecem, assim como os azulejos. Esta
configuração “não pretende ser um mimetismo ou réplica da
arquitectura pombalina, mas sim uma reinterpretação contemporânea
da mesma”, defendem os arquitectos na memória descritiva.
Para sustentar a
opção tomada, os autores do projecto para o hotel citam um parecer
emitido em 1981 por um arquitecto do então Instituto Português do
Património Cultural (actual Direcção-Geral do Património
Cultural, DGPC). Nessa altura, queixava-se o técnico, a obra estava
já “completamente acabada” e, portanto, a sua opinião valeria
pouco. O edifício do Largo Bordalo Pinheiro “em nada se conjuga ou
se insere, em termos culturais contemporâneos, com a arquitectura
deste local característico de Lisboa”, escrevia.
“Esta dessintonia
não apenas se mantém como se tornou mais notória quando comparada
com os imóveis adjacentes que entretanto vêm sendo recuperados”,
sublinham os arquitectos do projecto agora em apreciação, que
definem como objectivo “eliminar as dissonâncias visuais
produzidas por soluções arquitectónicas não compatíveis com a
envolvente”.
Edifício tem
“grande equilíbrio arquitectónico”
Foi só quando o
PÚBLICO o contactou que Miguel Andrade e Sousa, filho do arquitecto
João Andrade e Sousa, soube que o edifício que o pai projectou vai
ser alterado. “Fico entristecido”, comenta. O também arquitecto
(vencedor, inclusivamente, do Prémio Valmor de 1997) discorda da
visão de que o prédio não se enquadra no largo. “As intervenções
contemporâneas no tecido antigo são poucas e geralmente de fraca
qualidade”, algo que não aconteceu neste caso, que “sendo um
projecto moderno, teve como preocupação a integração na
arquitectura pombalina adjacente.”
Miguel Andrade e
Sousa lembra que “houve elogios feitos pela câmara àquele
edifício na altura da sua construção” e que o pai, que morreu em
2012, chegou mesmo a receber uma menção honrosa do Prémio Valmor
de Arquitectura em 1984 pela construção dos edifícios Gemini,
junto a Entrecampos. “A câmara deveria ser cuidadosa nesta
apreciação”, diz, considerando que “é um disparate perder a
riqueza da complexidade, das camadas de arquitectura”. Caso
processo venha mesmo a ser aprovado, isso “mostra que não há
sensibilidade” da autarquia, acusa.
A Estrutura
Consultiva Residente tem entendimento semelhante. Este grupo de
trabalho composto por técnicos municipais, cuja missão é vigiar o
cumprimento do Plano Director Municipal, foi chamado a pronunciar-se
sobre o projecto no fim de 2016 porque o Regulamento Municipal de
Urbanização e Edificação de Lisboa estabelece que “é interdita
a demolição de fachadas revestidas a azulejos”, como é o caso.
Num parecer de 4 de
Janeiro, a estrutura destaca o “grande equilíbrio arquitectónico”
do edifício do Largo Bordalo Pinheiro e mostra-se desfavorável às
mudanças propostas. “Trata-se na globalidade de uma peça de
arquitectura com qualidade, cuja manutenção devia ser ponderada”,
lê-se.
Azulejos “vão à
vida”
O ceramista António
Vasconcelos Lapa também não sabia da existência do projecto.
“Ninguém me disse nada. Isso quer dizer que os meus azulejos vão
à vida?”, comenta ao PÚBLICO. Francisco Janeiro, colaborador de
Lapa desde 1983, mostra indignação, referindo que os painéis do
prédio foram elogiados por especialistas como o artista plástico
Eduardo Nery ou Rafael Salinas Calado, primeiro director do Museu
Nacional do Azulejo.
Além disso, como
também lembra o parecer da Estrutura Consultiva Residente, ainda em
Setembro foi editado, com o apoio da câmara municipal, o livro
Percursos do Azulejo em Lisboa, que inclui estes painéis num dos
itinerários.
“As
características destes azulejos de carácter excepcional pela sua
singularidade e autenticidade (…) produzidos especificamente para o
edifício em análise e, por isso, indissociáveis da sua identidade,
conferem-lhe valor patrimonial elevado”, lê-se no parecer, que
conclui: “A sua salvaguarda in situ torna-se imprescindível para a
continuidade da afirmação cultural da cidade.”
Apesar de
peremptório, o documento não convenceu o director municipal do
Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa. “Não concordo com o
presente parecer”, escreveu à margem. Reconhecendo “algum valor
aos azulejos”, o responsável propõe “que os mesmos sejam
retirados para posterior aplicação no edifício, provavelmente no
seu interior”, algo que, argumenta, é apoiado pela DGPC e pelo
relatório de uma historiadora de arte que a Coporgest entregou
entretanto à autarquia. Nesse documento, a historiadora escreve que
estes painéis de azulejos revelam “influência do pós-modernismo”,
que devem ser fotografados e “recolhidos cuidadosamente aquando das
obras de demolição face ao ainda incipiente conhecimento da
azulejaria em Portugal para estas cronologias”.
Tanto António
Vasconcelos Lapa como Miguel Andrade e Sousa estranham não terem
sido contactados por ninguém. “Não se podem remover azulejos da
fachada sem autorização do artista”, afirma Francisco Janeiro.
Também não podem ser feitas alterações ao projecto arquitectónico
sem autorização expressa dos seus autores ou dos herdeiros, como
define o Código do Direito de Autor.
Na câmara, o
processo aguarda agora novo parecer da comissão de apreciação da
DGPC, que até aqui se tem mostrado sempre favorável ao projecto.
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