Viva
a União Europeia! (Abaixo a tecnocracia de Bruxelas e Frankfurt)
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 20/06/2016 – PÚBLICO
Não
são os referendos democráticos que estão a destruir o ideal de uma
União Europeia, mas a governação tecnocrática de Bruxelas e
Frankfurt.
1. As Comunidades
Europeias/União Europeia são a mais notável realização da
segunda metade do século XX. Originalmente estavam imbuídas de um
ideal de paz e reconciliação entre os povos europeus, especialmente
entre a França e a Alemanha, de respeito mútuo e de solidariedade.
Tinham por objectivo uma (utópica?) unificação política,
idealmente concebida como federal ou confederal. Mas o caminho
seguindo acabou por ser outro, fundamentalmente o da integração
económica. Tornou-se excessivamente dependente da realização de um
mercado único e de uma união económica e monetária. Acabou por
ficar refém dos interesses de grandes lobbies
económico-empresariais, de uma burocracia tentacular, e, ainda que
involuntariamente, do seu mais importante Estado-Membro: a Alemanha.
O ideal europeísta solidário dos primórdios deu lugar a mecanismos
de poder e dominação sofisticados. Hoje, a coberto de um teórico
europeísmo, as instituições europeias de Bruxelas (especialmente a
Comissão Europeia) e as suas ramificações em Frankfurt (Banco
Central Europeu), actuam como uma espécie de burocracia iluminista
de um império. A vontade democraticamente expressa dos europeus
é-lhes indiferente, ou causa-lhes profunda irritação. Prescindem,
de bom grado, do povo para governar. Os referendos europeus são a
sua Némesis. Vêem-nos como uma ameaça ao seu poder, o qual, a
coberto de ideais europeístas, pretendem em contínua expansão. As
elites nacionais, na sua grande maioria, partilham da sua visão do
mundo e dão-lhes cobertura política. Vêem, para si próprias,
oportunidades de futuros lugares. O perigo maior vem da vontade
democrática da população, directamente expressa, sem os
intermediários que supostamente lhe dão voz. O facto de termos
chegado a este grau de distorção dos ideais europeus e democráticos
deveria obrigar a repensar todo o modelo de integração.
2. As formas de
domínio de outras épocas estão obsoletas na actual Europa. Os
burocratas de Bruxelas e Frankfurt não precisam de se apoiar em
soldados, nem em canhões, para impor a sua vontade no terreno. Não
é um processo de dominação clássico que está em causa. Nem se
pode dizer que os Estados foram coagidos a entrar para a União
Europeia, pois o processo de adesão é voluntário — essa é uma
diferença fundamental face ao passado. Mas a força dos exércitos e
a violência das armas deram lugar a novas formas de subjugação,
surgindo, em seu lugar, legiões de burocratas e tecnocratas. Hoje, o
poder e a dominação assumem configurações mais benignas e
sofisticadas, mas que não deixam de conter imposições coercivas,
ainda que de outras formas. Isso tornou-se particularmente óbvio
quando o contrato social que suportava o modelo de integração
europeia — assente numa apatia permissiva do cidadão em troco de
um permanente aumento do bem-estar económico e material —, entrou
em colapso com a crise financeira iniciada em 2007/2008. Estamos a
assistir à emergência de poder imperial de novo tipo, largamente
tecnocrático e que só superficialmente é sufragado por escolhas
democráticas. O seu domínio faz-se essencialmente por directivas,
regulamentos ou decisões. Elites políticas desnacionalizadas, cada
vez mais desligadas da visão do mundo e aspirações da população,
dão-lhe a aparente legitimidade democrática. Milhares de burocratas
das instituições europeias, milhares de especialistas que gravitam
à sua volta — em comités e grupos de peritos que proliferam à
sua sombra —, dezenas de políticos desnacionalizados em cargos
europeus, formam hoje um corpo similar a uma burocracia imperial.
Esta nova forma de governação, imbuída de arrogância iluminista,
prescinde do povo e da sua vontade. Articula-se, antes, com
organismos da sociedade civil, os quais também não têm qualquer
legitimidade democrática (representam interesses variados):
associações empresariais, profissionais, organizações
não-governamentais, think tanks, etc. Prossegue uma governação
teoricamente feita em nome do interesse geral europeu. Mas este é
definido como tal por si própria, ou pelos Estados-Membros mais
importantes — hoje essencialmente pela Alemanha. Na prática, pela
falta de mecanismos de controlo democrático directo e pela
impossibilidade de escrutínio do cidadão comum, impõem demasiadas
vezes a sua visão do mundo e opções políticas.
3. A Comissão é o
rosto mais visível da actual forma de governação europeia. A sua
formação, poderes e modo de actuação sofrem de várias anomalias,
de maior ou menor gravidade. Estas começam na escolha dos
comissários. Tipicamente são políticos de segundo plano a nível
nacional, ou eventualmente rivais incómodos para os políticos no
governo, os quais é conveniente deslocar para Bruxelas. Antes de
entrarem em funções, passam pelo escrutínio do Parlamento Europeu
e depois são desnacionalizados, ou seja, actuam de forma
independente dos governos nacionais. O problema vem depois. Pelos
poderes que está investida pelos Tratados a Comissão tem iniciativa
de propor a legislação em múltiplos domínios, seja ela
necessária, duvidosa ou inútil e intrusiva. Tem, ainda, um poder de
impor, aos governos nacionais, medidas com enorme impacto na vida dos
cidadãos, por exemplo, no âmbito da política de concorrência, da
política económica, da política monetária. No caso português, os
casos da TAP, do Banif ou da Caixa Geral de Depósitos, entre outros,
não deixam dúvidas. Para além disso, tem o poder de negociar
acordos internacionais, como acontece actualmente com a parceria
transatlântica para o comércio e o investimento com os EUA. Para o
bem ou para o mal, tais acordos vão projectar-se depois na vida dos
cidadãos. Mais: a Comissão pode levar a que Estados-Membros sejam
sancionados por não cumprimento de objectivos sobre o défice
orçamental como, por exemplo, pode acontecer com Portugal e Espanha.
Esses objectivos estão para além das escolhas eleitorais dos
cidadãos. É irónico que políticos de segundo plano e
burocratas/tecnocratas tenham este poder nas mãos. Afecta a vida de
muitos milhões de pessoas. É irónico que, estando o orçamento
europeu sempre equilibrado — não por boa gestão da Comissão, mas
devido aos Estados-Membros transferirem sempre o dinheiro necessário
—, peçam contas aos governos nacionais por desequilíbrios
orçamentais. É irónica a sua arrogância, característica de uma
burocracia afastada do escrutínio da opinião pública e de
exigentes mecanismos de controlo democrático.
4. Os poderes de que
está investido o Banco Central Europeu (BCE), mostram, tanto ou mais
do que a Comissão, a entorse que os ideais europeístas e
democráticos sofreram nas últimas décadas. Ligado a uma ideia de
integração perfeitamente compreensível e aceitável — a criação
de uma moeda única, o Euro —, foi também criado um banco central.
Por princípio, nada a obstar. O problema é ter sido configurado
como uma instituição praticamente desligada das escolhas
democráticas que os cidadãos pudessem fazer em eleições
nacionais, ou até para o Parlamento Europeu. A crise da Zona Euro
mostrou o imenso poder do BCE sobre os Estados mais afectados pela
crise financeira e especulação em torno da sua dívida pública. Na
linguagem asséptica dos Tratados, o que está em causa é garantir a
autonomia e independência do BCE. Na realidade — e muito para além
disso —, o que se verifica é que o BCE se tornou um lugar de
acesso restrito à actual elite bancária e financeira, a qual de
facto não presta contas a ninguém (Na superficialidade, pode ser
escrutinado pelo Parlamento Europeu). Aos aspirantes a um lugar nesta
instituição exige-se que tenham passado pelas melhores faculdades
de Economia onde tenham, preferencialmente, absorvido as mesmas
ideias de gestão monetária, hoje sobretudo neoliberais. É também
relevante uma passagem pelos grandes bancos internacionais e/ou banco
central nacional. Criou-se, assim, uma instituição mais elitista
que os exclusivos clubes britânicos da aristocracia vitoriana. O BCE
poderia, muito bem, ter uma placa à porta com os seguintes dizeres:
“Acesso reservado. O cidadão não entra. Parlamentos nacionais
devem manter-se afastados.” Não são os referendos democráticos
que estão a destruir o ideal de uma União Europeia, mas a
governação tecnocrática de Bruxelas e Frankfurt. Para além da
entorse democrática, a tecnocracia não é panaceia para os
nacionalismos. É esta quem está a tornar novamente apelativo o
sentimento nacionalista aos cidadãos.
Investigador
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