“O nacionalismo
não é causa do mal-estar da Europa, é consequência deste.”
( …) “Esquecem
uma lição histórica importante. No mundo de há duzentos anos
atrás, o nacionalismo atraiu a população porque foi visto como
libertador face a uma forma de governo aristocrática, cosmopolita e
tirânica. Esquecem que este foi — e está a voltar a ser —, uma
forma de protesto contra a injustiça, as más condições materiais,
ou a falta de representação política. Hoje podemos estar a
assistir a um processo histórico parecido de consequências
imprevisíveis.”
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES
O
nacionalismo é o ópio do povo, o cosmopolitismo o ópio das elites
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 27/06/2016 – PÚBLICO
As
elites de hoje, tal como as elites de há duzentos anos atrás,
sentem-se atraídas pelo despotismo iluminado.
1. Vivemos um
período histórico conturbado. Para muitos, o voto favorável à
saída dos britânicos da União Europeia parece o fim de uma era
cosmopolita. Talvez o rumo dos acontecimentos possa mostrar que isso
é verdadeiro. Mas, se for assim, o fenómeno não é radicalmente
novo. Apesar da singularidade dos tempos que vivemos, é possível
traçar semelhanças e paralelismos históricos. Um período
interessante é a transição do século XVIII para o século XIX
europeu. Na segunda metade do século XVIII, na fase final do ancien
régime, tinha emergido uma elite cosmopolita europeia. Frequentava
os salões da aristocracia, de Paris a São Petersburgo. Partilhava
de similares ideias iluministas e gostos estéticos. A sua língua
franca era o francês, que sucedia ao latim. As línguas populares,
mais tarde designadas por nacionais, eram menosprezadas como rudes e
vulgares. Não eram línguas de pessoas cultas, de eruditos. A elite
aristocrática e os seus protegidos sentiam-se mais próximas dos
seus pares, um pouco por toda a Europa, do que do povo do seu país
de origem. À sua maneira, tinham já o embrião de um sentimento
europeísta de natureza elitista. A Revolução Francesa de 1789 e as
revoluções liberais das décadas seguintes foram revoltas
populares, instrumentalizadas pela burguesia, contra as classes
tradicionalmente privilegiadas. O seu alvo foi o cosmopolitismo das
Luzes e a forma de governo aristocrática e opressiva do antigo
regime. As tendências políticas, intelectuais e estéticas da
primeira metade do século XIX acentuaram o processo. O romantismo,
um movimento literário e estético com origem em finais do século
XVIII, teve implicações políticas que acentuaram o colapso do
cosmopolitismo das Luzes. As línguas nacionais na sua formulação
moderna, a história nacional, a identidade nacional, surgiram no
meio de uma revolta contra o cosmopolitismo aristocrático — de
monarquias absolutas e de impérios multinacionais —, e de formas
de governo desligadas das aspirações da maioria da população.
2. As elites
cosmopolitas de hoje estão numa posição similar à das elites
aristocráticas de há duzentos anos atrás. À primeira vista
poderíamos dizer que estamos perante elites completamente
diferentes, em sociedades contemporâneas moldadas por valores
democráticos, sem pontos de contacto. As actuais elites não são
oriundas da aristocracia clássica. Vêm, essencialmente, da classe
política que usualmente ocupa o poder, mas também dos meios
empresariais, universitários, intelectuais ou artísticos (o
establishment). Sob a capa das diferenças, por vezes mais
superficiais do que se poderia pensar, existem semelhanças
estruturais. A primeira, é a partilha de ideias políticas não
nacionais e da visão do mundo que lhe está inerente. As elites
aristocráticas do passado tinham um cosmopolitismo pré-nacional; as
elites do presente têm um cosmopolitismo pós-nacional. Ambas são
elites desnacionalizadas. A ambas desagrada a ideia de nação. A
segunda é ao nível da língua. No passado aristocrático, o francês
era a língua da Europa culta, da diplomacia, dos contactos
internacionais, de todos os que se viam, a si próprios, como
cosmopolitas. Traça uma linha divisória com o povo. Hoje, o inglês
substituiu o francês nesse papel. As elites lêem em inglês,
escrevem em inglês, falam em inglês, as universidades dão cursos
em inglês, as conferências fazem-se em inglês, etc. As línguas
nacionais são menosprezadas, novamente. Não são línguas de
cultura, de ciência, nem de negócios, nem boas para ascender
socialmente. O cidadão comum — pelo menos aquele que, por razões
geracionais, de treino linguístico ou outras, não se revê na
hegemonia linguística estrangeirada das elites —, sente-se
excluído. A língua é um poderoso marcador cultural e de
identidade, de sentimento de pertença, ou de exclusão.
3. Há um terceiro
paralelismo estrutural, com a transição do século das Luzes para o
século das revoluções liberais e nacionais, que é particularmente
elucidativo. As elites de hoje, tal como as elites de há duzentos
anos atrás, sentem-se atraídas pelo despotismo iluminado. Esta é
uma afirmação polémica e provocatória, mas que pode ser
evidenciada pelos paralelismos estruturais mais subtis. Não se
trata, agora, do despotismo iluminado clássico do século XVIII, mas
de formas mais sofisticadas e benignas. O seu quadro político
preferencial de funcionamento não são os Estados nacionais, os
quais vêem como ultrapassados, mas organizações e redes
internacionais. No caso europeu, a União Europeia é a sua
preferência mais óbvia. Mas não por um europeísmo participativo
dos cidadãos. A instituição de uma governação tecnocrática,
para bem do povo, mas onde este não participa directamente, é a sua
forma de governo preferida — daí o seu ódio particular aos
referendos. A ressonância com as ideias do século XVIII vem à
mente. Maximiza o seu próprio poder. Minimiza a dependência do voto
e das escolhas do cidadão. As elites cooptam, para a governação,
grupos da sociedade civil (organismos empresariais, profissionais,
ambientalistas, ONG, etc.), que supostamente dão uma lógica
democrática à governação. Sejamos claros: não dão. Nenhum deles
resulta da escolha democrática e individual dos eleitores. São
representações de interesses e de grupos. Esta forma de governação
faz lembrar as formas as lógicas corporativas pré-Revolução
Francesa.
4. O cosmopolitismo
de hoje desdobra-se em globalismo e multiculturalismo, as únicas
ideologias aceitáveis para a elite cosmopolita. Pode levar a um
maior entusiasmo pela globalização (à direita), ou a um maior
entusiasmo pelo multiculturalismo (à esquerda). O cosmopolitismo, em
qualquer dessas duas versões, pode ter muitos argumentos a seu favor
— num mundo ideal todos seríamos cosmopolitas —, mas não contém
qualquer garantia de governo democrático. Pelo contrário, na
prática, tende a levar a um estreitamento da democracia. Até agora,
não há nenhuma experiência histórico-política convincente que
tenha mostrado que a democracia pode funcionar bem fora do quadro
político do Estado. Um governo global, mesmo descentralizado, nunca
será uma verdadeira democracia — provavelmente seria a governação
de uma oligarquia. Não há democracia sem uma população que se
(auto)identifique como um povo. Na Europa, tal como no mundo, há
povos, no plural. A preferência pelo cosmopolitismo levanta a
questão dos limites da democracia. Voluntária ou involuntariamente,
abre a porta a uma governação tecnocrática numa versão
sofisticada do despotismo iluminado. Essa possibilidade fascina as
elites desnacionalizadas. Agrada, também, aos grupos organizados da
sociedade civil que beneficiam desta. Ambos procuram-na apresentar
como democrática. Que ambos desejem uma governação deste tipo
percebe-se bem. Independentemente dos elevados valores que proclamam
— e de usarem uma suposta superioridade moral contra as massas, as
quais qualificam, indiscriminadamente, como xenófobas, retrógradas
e avessas à globalização —, prosseguem os seus interesses e
visão do mundo. Na sua faceta pior, o cosmopolitismo, tal como o
europeísmo, são um disfarce da ambição de poder das elites e da
sua claque de grupos beneficiários.
5. A União Europeia
é um claro exemplo do problema. A integração europeia tem aí o
seu ponto mais crítico, não resolvido. Quando a integração se
intensificou, nos anos 1990, com a conclusão do mercado único e os
avanços para a união económica e monetária, o défice democrático
aumentou em similar proporção. Não foi por mero acaso. Aumentar a
integração sem ter sido possível criar um povo europeu — que,
infelizmente, não existe também hoje —, leva, inevitavelmente
(?), a estreitar a democracia. Conforme não pode haver uma
democracia sem povo, também não pode haver democracia sem partidos
políticos europeus. O que acontece nas eleições para o Parlamento
Europeu é que se vota em partidos nacionais, com agendas
essencialmente nacionais, que depois se associam. Não há um
programa de governo europeu sufragado. Também não pode haver uma
democracia quando o poder está mais do lado da tecnocracia de
Bruxelas e de Frankfurt, do que nas mãos dos cidadãos. Para além
das vantagens de uma governação a nível europeu, hoje são também
claras as consequências negativas da transferência de poderes
nacionais para as instituições europeias. Face a estas, o cidadão
apenas exerce um vago e indirecto controlo democrático, como ocorre
com a Comissão, ou nenhum, porque estão blindadas face às suas
escolhas políticas, como acontece com o Banco Central Europeu. Não
é por acaso que o indivíduo comum se sente cada vez mais distante
da União Europeia.
6. Nos
acontecimentos tumultuosos que estão a abanar a União Europeia, as
elites cosmopolitas confundem, convenientemente, causas com
consequências. Olham, com alarme, o nacionalismo em crescendo um
pouco por toda a União Europeia. Têm razões fundadas para isso. A
tragédia europeia da primeira metade do século XX foi, em grande
parte, provocada por nacionalismos agressivos. Convém não os
subestimar nem idealizar. É verdade que Nigel Farage e Boris
Johnson, no Reino Unido, são líderes populistas e com uma retórica
demagógica. São uma espécie de contra-elite. Instrumentalizaram o
descontentamento da população contra a União Europeia, a
globalização e os migrantes / refugiados. O mesmo se pode dizer,
embora com contornos que não são os mesmos (são mais agressivos),
de Marine Le Pen em França, ou de Geert Wilders na Holanda. A isto
poderíamos, ainda, juntar os populismos de esquerda de Pablo
Iglesias, em Espanha, ao de Giuseppe Grillo, em Itália, com as suas
próprias lógicas. Só que não foram estes, nem à direita, nem à
esquerda, que criaram o terreno sociológico-político que nos levou
à actual situação. Não foram os populistas de nenhum destes
quadrantes que criaram a tecnocracia europeia, nem a governação com
organismos da sociedade civil que contornam o cidadão, nem abriram
as portas aos efeitos mais negativos da globalização, nem à
permanente sensação de insegurança económica e identitária.
Aproveitam-se deles. O nacionalismo não é causa do mal-estar da
Europa, é consequência deste.
7. A vaga de
movimentos nacionalistas que atravessa a Europa são a outra face das
escolhas políticas das elites governantes e dos seus falhanços.
Falharam duplamente: estreitaram a democracia, com a sua preferência
pela governação tecnocrática, afastada dos cidadãos, supostamente
uma boa governação; tornaram-se incapazes de criar bem-estar
generalizado desde a crise de 2007/2008, pela sua preferência pela
globalização de tipo (neo)liberal. A sua arrogância iluminista, de
quem sabe o que é melhor, aliada a uma convicção superioridade
moral dos seus valores pós-nacionais, torna-as avessas à crítica.
Sentem-se com o monopólio da sociedade decente. O problema é
intensificado por terem perdido contacto com o indivíduo comum.
Essencialmente interagem entre si, funcionam em circuito quase
fechado. Sob a sua indiferença, a classe média-baixa trabalhadora
transitou da esquerda para a direita populista e / ou
extrema-direita. Os sucessos eleitorais do UKIP no Reino Unido e a FN
em França, não deixam dúvidas quanto a essa transferência de
votos. Agora estão alarmadas, mas não fazem autocrítica. Esquecem
uma lição histórica importante. No mundo de há duzentos anos
atrás, o nacionalismo atraiu a população porque foi visto como
libertador face a uma forma de governo aristocrática, cosmopolita e
tirânica. Esquecem que este foi — e está a voltar a ser —, uma
forma de protesto contra a injustiça, as más condições materiais,
ou a falta de representação política. Hoje podemos estar a
assistir a um processo histórico parecido de consequências
imprevisíveis.
Investigador
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