“O consenso em
torno da globalização e do multiculturalismo, que marcou as últimas
décadas, está a ficar em estilhaços. Os candidatos e partidos
anti-sistema estão em ascensão. Ao nível da União Europeia, o
próximo referendo britânico pode ter o efeito de aumentar a
intensidade da revolta em curso. Seja qual for o resultado, vai
deixar um país dividido a meio. A União Europeia poderá ser a
grande vítima, em parte por ser percebida como a face visível da
globalização e do multiculturalismo, cada vez mais com anticorpos.
Em parte, também,
o modelo de construção europeia sufragado pelas elites, é o
responsável. A vontade dos cidadãos foi demasiadas vezes
contornada. Agora o desejo de vingança, que sucede a décadas de
apatia, surge com fúria. As consequências podem ser enormes: desde
um efeito em cadeia de referendos para a saída da União, até à
ambição independentista da Escócia se concretizar, passando pelo
regresso a lógicas políticas nacionalistas.”
JOSÉ PEDRO
TEIXEIRA FERNANDES
A
revolta contra a globalização
e o multiculturalismo
JOSÉ
PEDRO TEIXEIRA FERNANDES 16/06/2016 – PÚBLICO
O
consenso em torno da globalização e do multiculturalismo, que
marcou as últimas décadas, está a ficar em estilhaços.
1.
As últimas décadas do século XX foram profundamente marcadas pela
globalização e multiculturalismo. A democracia capitalista liberal
fin de siècle, imbuída desses valores, parecia o fim da história
no sentido hegeliano da ideia. A rotatividade dos partidos de poder
estabeleceu-se sem nunca por em causa ambos, vistos como princípios
estruturantes. Impregnou a forma de fazer política. Globalismo e
multiculturalismo tornaram-se praticamente as únicas ideologias
aceitáveis. A boa sociedade seria aberta à globalização e
multicultural. À direita, com maior entusiasmo pela globalização,
à esquerda, com maior entusiasmo pelo multiculturalismo, ambas as
concepções e os seus valores foram cooptados. Quer o
centro-direita, quer o centro-esquerda, incorporaram-nas nos seus
programas políticos. A isto acrescia o consenso pró-europeísta dos
partidos que alternavam no poder. Nas margens do espectro político,
o voto contestatário era relativamente diminuto. O início do século
XXI, especialmente, a última década, trouxe uma revolta profunda
contra esta forma de fazer política. Era impensável não há muito
tempo atrás. Tentar perceber as razões da sua rejeição é crucial
para compreender o rumo dos acontecimentos a que estamos a assistir.
2.
Como todos os processos políticos complexos, a revolta contra a
globalização e o multiculturalismo pode ser analisada sob vários
ângulos e objecto de diferentes interpretações. A crescente
oposição das massas às elites que as governam é uma das facetas
críticas e merecedoras de mais reflexão. Numa formulação
clássica, a democracia deve ser o governo do povo e para o povo. Mas
isso pressupõe, entre outras coisas, que as elites governantes
reflictam os valores e ambições da população. Existe um
sentimento crescente de não estar a ocorrer isso. É observável, um
pouco por todas as sociedades europeias, um antagonismo, cada vez
mais profundo, entre as elites tradicionais e a população em geral.
Se uma clivagem deste tipo sempre existiu em democracias
representativas, hoje tem uma intensidade e profundidade novas.
Ocorre, simultaneamente, por discrepâncias de valores culturais e
grandes disparidades de bem-estar material. Em geral, para as elites
— sejam elas políticas, económicas ou culturais —, a nação, a
soberania, a identidade cultural-nacional ou uma sociedade homogénea,
são ideias do passado, ultrapassadas e indesejáveis no século XXI.
Mas não são esses os valores de uma parte importante da população,
eventualmente maioritária, sobretudo de classe média ou
média-baixa. Esta revê-se bem mais nos valores tradicionais de um
passado não muito distante. Sente-se alvo de uma censura linguística
e do pensamento permanente — aquilo a que os críticos chamam o
politicamente correcto —, que inibe e ridiculariza socialmente a
sua forma tradicional de se exprimir, vista como preconceituosa e
ofensiva. Sente-se desconfortável e insegura com os valores
pós-modernos e desnacionalizados das elites. Estes favorecem
sociedades diversas, bastante abertas a fluxos migratórios de
populações frequentemente distantes culturalmente, e a criação de
novas realidades de tipo pós-nacional.
3.
A globalização e o aumento das desigualdades intra-sociedades a ela
inerente, acentuou o sentimento de injustiça social e de revolta.
Para as elites, mesmo para as que contestam a globalização, há
vantagens evidentes, pelo menos ao nível da criação de uma rede de
conexões internacionais e de mobilidade profissional qualificada. No
caso das elites empresariais, as vantagens são ainda mais óbvias e
vincadas. Podem retirar grandes ganhos económicos e financeiros de
sistemas fiscais diferentes, de custos de mão-de-obra díspares,
etc. Para o grosso da classe média e média-baixa, o sentimento
dominante é que não tiveram quaisquer ganhos significativos com a
globalização. Pior: que as grandes vantagens foram obtidas, ou
concedidas a outros, pelas elites, à sua própria custa. Sentem uma
redução das suas condições de trabalho, salários, pensões, etc,
e que são empurrados para uma competição extrema e predatória.
Essa percepção, que já existia de forma difusa antes da crise
financeira de 2007 / 2008, tornou-se o sentimento em expansão nos
últimos tempos. Pela sua incapacidade de evitar que partes
significativas da população descessem socialmente a limiares
próximos da pobreza — ou até resvalando mesmo para esta —, a
União Europeia é um alvo particular de revolta. É vista como uma
mini-globalização à escala europeia. Poder-se-á dizer que a
revolta se enganou no alvo, que a União Europeia visa proteger os
europeus da globalização. O problema é que a legitimidade europeia
foi construída pelas elites com a promessa de contínuo aumento do
bem-estar à população. Hoje, para além da ambicionada
prosperidade material estar sob ameaça permanente de recuo, as
próprias instituições europeias são vistas como uma presença
indesejada e intrusiva em opções políticas democráticas
nacionais.
4.
A revolta contra a globalização e o multiculturalismo não pode ser
compreendida sem o sentimento de fragilidade e vulnerabilidade que
atravessa as sociedades europeias. Há várias razões para isso,
nomeadamente ligadas ao ambiente político internacional,
especialmente às guerras no Sul do Mediterrâneo e Médio Oriente,
aos actos de violência e terror do islamismo-jihadista, ao fluxo
imparável de refugiados / migrantes, às tensões a Leste com a
Rússia, etc. Aqui, aponto apenas duas razões internas. Uma primeira
é a constante e acentuada mudança de valores desde os anos 1960. A
segunda é o aumento da esperança média de vida, ocorrido, em
paralelo, com um declínio sem precedentes históricos da natalidade,
particularmente visível na contínua diminuição da população
jovem. Ambas transformaram, profundamente, as sociedades europeias.
Para além das virtudes das transformações, tornaram-nas mais
frágeis e inseguras. Populações mais envelhecidas tendem a ser
mais conservadoras, mais agarradas a valores tradicionais. Com os
valores em constante transformação, nada parece certo, nem seguro,
ao indivíduo comum, o qual, em média, tem cada vez mais idade. Nem
os valores mais profundos nos quais foi socializado e agora vê
rejeitados pelas elites; nem os mecanismos de bem-estar material,
como a segurança social ou a reforma, que dava como adquiridos. O
resultado destas transformações foi a amplificação das clivagens
sociais e geracionais. Até certo ponto estas são vulgares, mas o
dado novo e relevante é estarmos perante gerações mais jovens, em
constante diminuição, e gerações mais velhas, em constante
expansão. Além disso, nas sociedades mais diversas, os mais velhos
são largamente do grupo maioritário, ou seja, população
autóctone, e os mais novos, cada vez mais, população oriunda de
fluxos migratórios, frequentemente mal integrados. Se a isto
juntarmos elites favoráveis à globalização e ao
multiculturalismo, nas suas diferentes versões — em dissonância
com os valores, aspirações e visão do mundo de grande parte da
população —, percebemos a dimensão do problema.
5.
A política europeia e ocidental está a caminhar para terra
incognita. Vamos precisar de distanciamento histórico para perceber
completamente onde nos está a levar a engrenagem em marcha. Uma
coisa parece certa. O consenso em torno da globalização e do
multiculturalismo, que marcou as últimas décadas, está a ficar em
estilhaços. Os candidatos e partidos anti-sistema estão em
ascensão. Ao nível da União Europeia, o próximo referendo
britânico pode ter o efeito de aumentar a intensidade da revolta em
curso. Seja qual for o resultado, vai deixar um país dividido a
meio. A União Europeia poderá ser a grande vítima, em parte por
ser percebida como a face visível da globalização e do
multiculturalismo, cada vez mais com anticorpos. Em parte, também, o
modelo de construção europeia sufragado pelas elites, é o
responsável. A vontade dos cidadãos foi demasiadas vezes
contornada. Agora o desejo de vingança, que sucede a décadas de
apatia, surge com fúria. As consequências podem ser enormes: desde
um efeito em cadeia de referendos para a saída da União, até à
ambição independentista da Escócia se concretizar, passando pelo
regresso a lógicas políticas nacionalistas. Mas tudo isto é também
crítico do ponto de vista da democracia e dos limites da escolha
democrática face a valores fundamentais como os direitos humanos, os
direitos das minorias, etc. E se a vontade da maioria da população,
expressa em eleições livres e amplamente participadas, for contra a
globalização e o multiculturalismo? E se os britânicos quiserem
inequivocamente sair da União Europeia? E, já agora, se os
norte-americanos elegerem Donald Trump? Provavelmente, a música dos
R.EM., It's the end of the world as we know it (and I [don't] feel
fine), ecoará na cabeça de muitos.
Investigador
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