No
coração de Lisboa há uma vila que insiste em sobreviver
A
primeira fase de reabilitação da Vila Berta, na Graça, já está
concluída. Com fachadas e iluminação renovadas, o próximo desafio
é a restauração dos azulejos
Teresa Serafim /16
jun 2016 / PÚBLICO
Bem no centro de
Lisboa, no Bairro da Graça, os moradores da Vila Berta viram, na
manhã de ontem, a projecção de um local que já não existe.
Fachadas esburacadas ou com cores gastas e portas sem cor foram uma
realidade até há pouco tempo mas agora já só persistem em
fotografias datadas de 2014, antes do início de uma reabilitação
que contou com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e de mecenas,
como a Barbot ou a EDP.
“Quando a Joana, a
arquitecta, veio com o projecto de reabilitação, pôs os moradores
em alvoroço”, recorda Rosa Tojal. Neta do impulsionador da
construção do local, Joaquim Francisco Tojal, que já não chegou a
conhecer, foi testemunhando a degradação dos edifícios. “Os
proprietários e moradores tentavam sempre minorar a degradação,
mas era difícil, porque há inquilinos antigos e com rendas baixas.
Não se podia fazer uma conservação como deve ser”, acrescenta.
O projecto nasceu a
partir da “cabeça” da arquitecta Joana Grilo, da Vai Associação.
Num workshop onde conheceu Estêvão Tojal, da família do fundador
do sítio, foi feita a proposta da Vila Berta se candidatar ao Bip
Zip, o programa da câmara municipal para os bairros e zonas de
intervenção prioritária. Joana nunca viveu em Vila Berta mas,
afirma, o sítio “faz parte da história da arquitectura” e é de
interesse público, desde 1996, justificando assim o seu carinho pelo
local. “A ideia era reabilitar o sítio como espaço público, por
isso fazia sentido um financiamento público”, afirma.
O primeiro passo foi
organizar os moradores e os 30 proprietários actuais. Para isso,
fundou-se a Associação de Defesa do Património da Vila Berta
(ADPVB), em Abril de 2014. Mas apenas uma candidatura a apoios
públicos não era suficiente. Era necessário envolver a população
de forma mais intensa. “Porque não chamar as escolas e a
faculdade, para isto ter alguma dimensão?”, questionou-se na
altura. Por outro lado, era urgente que as novas gerações
percebessem a dimensão histórica de Vila Berta e a respeitassem.
“Uma das queixas era que muitas crianças vinham para cá falar
muito alto e fazer graffitis”, revela.
Durante um ano,
semanalmente, Joana dirigiu-se à Escola Básica Natália Correia, no
Agrupamento Nuno Gonçalves, e à Escola Básica Marqueses de Távora,
no Agrupamento Gil Vicente. “A proposta era que conhecessem a Vila
Berta a partir do padrão do azulejo. Até chegámos a fazer uma
maquete gigante em que as crianças usaram o corpo para medir a Vila
Berta”, recorda. O culminar da iniciativa aconteceu na inauguração
de uma exposição na Galeria Arte Graça, em que pais e avós
encheram o espaço.
No início de 2015,
começa a primeira fase da reabilitação. Ao apoio de marcas como a
Barbot, a EDP, a PT ou a Weber, juntou-se a verba do programa Bip
Zip, o que deu o impulso definitivo para a recuperação da Vila
Berta. “A partir daí temos sido imparáveis”, afirma Estêvão
Tojal, com entusiasmo. O arquitecto destaca que o objectivo está a
ser atingido: “Vamos passar a Vila Berta às próximas gerações.”
Falar com os
candeeiros
As paredes foram
rebocadas, os cabos escondidos e o resultado está à vista. “Uma
das coisas que se conseguiram com esta reabilitação foi ter a
uniformidade de todas as fachadas conforme eram as originais”, diz
Estêvão Tojal, apontado para as paredes pintadas de amarelo pálido.
“Até então, reabilitava-se um prédio e escolhia-se mais ou menos
aquela cor, mas a cor do prédio do lado estava queimada e nunca
ficavam iguais. Uma vez que foi tudo pintado ao mesmo tempo ficou
tudo igual”, adianta.
Também a iluminação
foi alvo de uma mudança significativa e funcionou por tentativas.
Inicialmente colocaram-se lâmpadas LED com
uma cor muito fria e
que os moradores não gostaram. Tiveram de ser removidas. Agora,
conseguiuse uma iluminação quente e muito intimista. “À noite
não se sente perigo, nem insegurança”, salienta. “Agora já
podemos falar com os candeeiros como fazia o Vasco Santana”,
brinca, lembrando que foi na Vila Berta que se fizeram as gravações
do remake do Pátio das Cantigas e de um episódio de Jardins
Proibidos.
A próxima “guerra
saudável” já está pensada, mas ainda não se sabe para quando.
Estêvão Tojal informa que os azulejos das fachadas, muitos deles
originais, estão degradados, assim como os degraus das casas estão
gastos. “A nossa próxima aventura é procurar parceiros para a
reabilitação”, informa.
Um arraial com 100
anos
Ontem, pela ruas de
Vila Berta ainda se podiam ver as bandeiras coloridas da decoração
do arraial de Santo António. André Tojal é um dos responsáveis
pelo reavivar de uma festa feita pela primeira vez em 1910, na
inauguração do local. André e o irmão Miguel são também
descendentes do fundador e moradores de Vila Berta. Há já alguns
anos que montavam o arraial em casa, antes de saírem para as festas
de outros bairros. “Em 2010, pelos 100 anos do primeiro arraial,
decidimos fazer as festas aqui, convidámos os moradores e vimos o
que era possível fazer durante uma noite”, conta.
Se nesse primeiro
ano tiveram uma “aderência espectacular”, neste último arraial
houve uma “multidão”. Também o dinheiro que foram ganhando,
desde 2010, serviu para a reabilitação do espaço. “Nunca
pensámos em reabilitar a rua toda, mas em reabilitar pequenas
coisas, como repor os vasos ou arranjar os jardins ou pintar uma
outra janela”, afirma André Tojal.
Todos ajudam à
festa. “Os mais novos sobem aos escadotes para pendurar coisas, os
mais velhos enrolam rifas e os de média idade vendem”, revela.
André Tojal destaca também a nova organização do arraial como
“muito menos cansativa e muito mais prática”. “Este ano
tivemos um corredor de segurança, walkie talkies e segurança
particular. Evitamos também que se torne numa feira, como em outros
sítios, com roulotes ou com farturas”, esclarece.
Outro dos objectivos
da organização é não promover a concorrência. “Por exemplo, os
bares pertencem a um só, as bifanas a outro e todos eles são
moradores. A única banca exterior é a da Santini, porque tem uma
logística prática e tem a ver com o tipo de pessoas que temos
aqui”, esclarece André Tojal. Quanto às bancas, foram
disponibilizadas e montadas pela Sagres.
Rosa Tojal sente-se
orgulhosa dos novos moradores de Vila Berta. “A última geração é
a mais entusiasmada de todas”, destaca. Actualmente a viver na Rua
da Graça, mas todos os dias visitante do local, olha para um folheto
com uma fotografia de 1910 e outra de 2016 e abana a cabeça dizendo:
“Isto realmente sempre foi assim.” Texto editado por Ana
Fernandes
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