quarta-feira, 15 de junho de 2016

No coração de Lisboa há uma vila que insiste em sobreviver



No coração de Lisboa há uma vila que insiste em sobreviver
A primeira fase de reabilitação da Vila Berta, na Graça, já está concluída. Com fachadas e iluminação renovadas, o próximo desafio é a restauração dos azulejos

Teresa Serafim /16 jun 2016 / PÚBLICO

Bem no centro de Lisboa, no Bairro da Graça, os moradores da Vila Berta viram, na manhã de ontem, a projecção de um local que já não existe. Fachadas esburacadas ou com cores gastas e portas sem cor foram uma realidade até há pouco tempo mas agora já só persistem em fotografias datadas de 2014, antes do início de uma reabilitação que contou com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e de mecenas, como a Barbot ou a EDP.

“Quando a Joana, a arquitecta, veio com o projecto de reabilitação, pôs os moradores em alvoroço”, recorda Rosa Tojal. Neta do impulsionador da construção do local, Joaquim Francisco Tojal, que já não chegou a conhecer, foi testemunhando a degradação dos edifícios. “Os proprietários e moradores tentavam sempre minorar a degradação, mas era difícil, porque há inquilinos antigos e com rendas baixas. Não se podia fazer uma conservação como deve ser”, acrescenta.
O projecto nasceu a partir da “cabeça” da arquitecta Joana Grilo, da Vai Associação. Num workshop onde conheceu Estêvão Tojal, da família do fundador do sítio, foi feita a proposta da Vila Berta se candidatar ao Bip Zip, o programa da câmara municipal para os bairros e zonas de intervenção prioritária. Joana nunca viveu em Vila Berta mas, afirma, o sítio “faz parte da história da arquitectura” e é de interesse público, desde 1996, justificando assim o seu carinho pelo local. “A ideia era reabilitar o sítio como espaço público, por isso fazia sentido um financiamento público”, afirma.
O primeiro passo foi organizar os moradores e os 30 proprietários actuais. Para isso, fundou-se a Associação de Defesa do Património da Vila Berta (ADPVB), em Abril de 2014. Mas apenas uma candidatura a apoios públicos não era suficiente. Era necessário envolver a população de forma mais intensa. “Porque não chamar as escolas e a faculdade, para isto ter alguma dimensão?”, questionou-se na altura. Por outro lado, era urgente que as novas gerações percebessem a dimensão histórica de Vila Berta e a respeitassem. “Uma das queixas era que muitas crianças vinham para cá falar muito alto e fazer graffitis”, revela.
Durante um ano, semanalmente, Joana dirigiu-se à Escola Básica Natália Correia, no Agrupamento Nuno Gonçalves, e à Escola Básica Marqueses de Távora, no Agrupamento Gil Vicente. “A proposta era que conhecessem a Vila Berta a partir do padrão do azulejo. Até chegámos a fazer uma maquete gigante em que as crianças usaram o corpo para medir a Vila Berta”, recorda. O culminar da iniciativa aconteceu na inauguração de uma exposição na Galeria Arte Graça, em que pais e avós encheram o espaço.
No início de 2015, começa a primeira fase da reabilitação. Ao apoio de marcas como a Barbot, a EDP, a PT ou a Weber, juntou-se a verba do programa Bip Zip, o que deu o impulso definitivo para a recuperação da Vila Berta. “A partir daí temos sido imparáveis”, afirma Estêvão Tojal, com entusiasmo. O arquitecto destaca que o objectivo está a ser atingido: “Vamos passar a Vila Berta às próximas gerações.”
Falar com os candeeiros
As paredes foram rebocadas, os cabos escondidos e o resultado está à vista. “Uma das coisas que se conseguiram com esta reabilitação foi ter a uniformidade de todas as fachadas conforme eram as originais”, diz Estêvão Tojal, apontado para as paredes pintadas de amarelo pálido. “Até então, reabilitava-se um prédio e escolhia-se mais ou menos aquela cor, mas a cor do prédio do lado estava queimada e nunca ficavam iguais. Uma vez que foi tudo pintado ao mesmo tempo ficou tudo igual”, adianta.
Também a iluminação foi alvo de uma mudança significativa e funcionou por tentativas. Inicialmente colocaram-se lâmpadas LED com
uma cor muito fria e que os moradores não gostaram. Tiveram de ser removidas. Agora, conseguiuse uma iluminação quente e muito intimista. “À noite não se sente perigo, nem insegurança”, salienta. “Agora já podemos falar com os candeeiros como fazia o Vasco Santana”, brinca, lembrando que foi na Vila Berta que se fizeram as gravações do remake do Pátio das Cantigas e de um episódio de Jardins Proibidos.
A próxima “guerra saudável” já está pensada, mas ainda não se sabe para quando. Estêvão Tojal informa que os azulejos das fachadas, muitos deles originais, estão degradados, assim como os degraus das casas estão gastos. “A nossa próxima aventura é procurar parceiros para a reabilitação”, informa.
Um arraial com 100 anos
Ontem, pela ruas de Vila Berta ainda se podiam ver as bandeiras coloridas da decoração do arraial de Santo António. André Tojal é um dos responsáveis pelo reavivar de uma festa feita pela primeira vez em 1910, na inauguração do local. André e o irmão Miguel são também descendentes do fundador e moradores de Vila Berta. Há já alguns anos que montavam o arraial em casa, antes de saírem para as festas de outros bairros. “Em 2010, pelos 100 anos do primeiro arraial, decidimos fazer as festas aqui, convidámos os moradores e vimos o que era possível fazer durante uma noite”, conta.
Se nesse primeiro ano tiveram uma “aderência espectacular”, neste último arraial houve uma “multidão”. Também o dinheiro que foram ganhando, desde 2010, serviu para a reabilitação do espaço. “Nunca pensámos em reabilitar a rua toda, mas em reabilitar pequenas coisas, como repor os vasos ou arranjar os jardins ou pintar uma outra janela”, afirma André Tojal.
Todos ajudam à festa. “Os mais novos sobem aos escadotes para pendurar coisas, os mais velhos enrolam rifas e os de média idade vendem”, revela. André Tojal destaca também a nova organização do arraial como “muito menos cansativa e muito mais prática”. “Este ano tivemos um corredor de segurança, walkie talkies e segurança particular. Evitamos também que se torne numa feira, como em outros sítios, com roulotes ou com farturas”, esclarece.
Outro dos objectivos da organização é não promover a concorrência. “Por exemplo, os bares pertencem a um só, as bifanas a outro e todos eles são moradores. A única banca exterior é a da Santini, porque tem uma logística prática e tem a ver com o tipo de pessoas que temos aqui”, esclarece André Tojal. Quanto às bancas, foram disponibilizadas e montadas pela Sagres.


Rosa Tojal sente-se orgulhosa dos novos moradores de Vila Berta. “A última geração é a mais entusiasmada de todas”, destaca. Actualmente a viver na Rua da Graça, mas todos os dias visitante do local, olha para um folheto com uma fotografia de 1910 e outra de 2016 e abana a cabeça dizendo: “Isto realmente sempre foi assim.” Texto editado por Ana Fernandes

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