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A
retórica da campanha deu lugar aos insultos nas ruas
ANA FONSECA PEREIRA
(Londres) 27/06/2016 – PÚBLICO
Polícia
britânica confirmou aumento de 57% nas queixas de incidentes
racistas. Agressões verbais e propaganda xenófoba visaram
imigrantes europeus e minorias étnicas
Domingo de manhã,
Hammersmith, zona oeste de Londres. Na fachada da associação
cultural que há 40 anos representa a comunidade polaca no Reino
Unido, alguém escreveu “Go Home”. Dois dias antes, postais com a
frase “Saída da UE – Acabaram-se os parasitas polacos” foram
colocados em caixas de correio e automóveis junto de uma escola em
Huntingdon, no Leste de Inglaterra. No Twitter, Agata Brzezniak, uma
estudante de doutoramento polaca, contou que foi abordada no
autocarro por uma mulher que lhe disse: “Se fosse a si eu estava
assustada e preparava-me para pedir um visto de residência no meu
país”.
O aumento da
xenofobia num país que se orgulha de ser tolerante era uma das
consequências mais temidas do referendo à União Europeia depois de
a campanha ter sido dominada pelo tema da imigração, que muitos
eleitores culpam pela descida dos salários, pelos hospitais e
escolas sobrelotados, pelas mudanças demográficas nas suas
comunidades. Um desagrado a que o partido populista UKIP deu voz na
campanha e que agora se ouve sem dificuldade nas ruas e mesmo na
televisão – numa reportagem transmitida pelo Chanel 4 News durante
o fim-de-semana um eleitor de uma cidade no Norte de Inglaterra
explicou que votou pela saída da UE apenas por “causa da
imigração”, para “impedir os muçulmanos de virem para este
país”.
O que ninguém
esperava era a sucessão de incidentes racistas dos últimos dias,
desencadeando uma onda de estupefacção e medo que as redes sociais
amplificaram. O Twitter foi inundado por histórias de quem ouviu
insultos ou viu outros serem insultados, como o consultor polaco Max
Fras. No sábado, estava num supermercado em Gloucester com o filho
quando um homem que esperava na fila começou a gritar: “Isto é
Inglaterra, os estrangeiros têm 48 horas para se porem a andar. Quem
é que é estrangeiro aqui?” Em Romford, subúrbio a leste de
Londres que o PÚBLICO visitou no sábado, um homem foi fotografado
vestindo uma t-shirt com a inscrição “Ganhámos! Agora mandem-nos
embora”.
Numa tentativa de
reacção, foi criada uma página no Facebook para reunir os relatos
de incidentes racistas e, em menos de 24 horas, mais de cinco mil
pessoas tinham aderido. “Quisemos criar um espaço para as pessoas
que se sentiam inseguras”, disse à BBC Sarah Childs, que lançou a
ideia juntamente com amigos de origem indiana e paquistanesa.
Porque não são
apenas os cidadãos europeus, especialmente os polacos, que se viram
visados nos últimos dias. Há também negros, árabes e asiáticos,
nascidos e criados no país, a ouvirem os mesmos insultos.
O Conselho Muçulmano
no Reino Unido revelou ao jornal The Times que desde sexta-feira
reuniu informações de mais de cem casos que podem constituir
“crimes de ódio”, incluindo um protesto violento junto a uma
mesquita de Birmingham. Shazia Awan, empresária galesa que fez
campanha pela permanência, foi aconselhada por um seguidor no
Twitter a “fazer as malas e regressar a casa”. “Esta campanha
foi vil e racista” e “arruinou o país para sempre”, lamentou.
Graffiti desprezível
A polícia britânica
prometeu “tolerância zero” e pediu que ninguém esconda os
insultos ou agressões – o Times noticiou que dois cidadãos
polacos, pai e filho, foram espancados sábado à noite no Leste de
Londres, mas não há certezas sobre as motivações do incidente. E
já nesta segunda-feira, revelou que o número de queixas
apresentadas nos últimos quatro dias através de um site
especializado aumentou 57% em comparação com o mesmo período da
semana anterior, num total de 85 incidentes. “Não é coincidência
que isto tenha acontecido depois da votação sobre a UE”, disse ao
jornal Guardian uma fonte da polícia.
“Como muitos
polacos neste país temia que o resultado do referendo pudesse
aumentar a intolerância, a discriminação e racismo. Mas não
pensei que fosse tão agressivo nem tão rápido”, lamentou
Brzezniak, que vive há oito anos no Reino Unido, numa entrevista ao
Independent. A embaixada polaca em Londres mostrou-se também
“chocada e profundamente preocupada” com incidentes contra os
seus cidadãos, ao mesmo tempo que agradeceu o apoio recebido –
nesta segunda-feira no centro cultural polaco em Hammersmith, a zona
de maior concentração de polacos em todo o país, foram recebidas
dezenas de ramos de flores com mensagens de solidariedade.
Referindo-se ao
“graffiti desprezível” deixado no centro cultural, o
primeiro-ministro demissionário, David Cameron, afirmou no
Parlamento que tanto os imigrantes como as minorias étnicas “deram
uma contribuição fantástica para o país”. “Estes crimes serão
combatidos”, prometeu. Uma mensagem idêntica à do mayor de
Londres, Sadiq Khan, que revelou ter dado instruções à polícia
para redobrar a vigilância. “É muito importante que nos
mantenhamos vigilantes perante qualquer aumento de crimes que podem
servir-se do referendo da semana passada para tentar dividir-nos”,
afirmou.
Sem se referir
directamente aos incidentes, Boris Johnson, líder da campanha pela
saída da UE, escreveu também no Telegraph que não podem restar
dúvidas de que “o Reino Unido é parte da Europa e sempre será”.
“Os cidadãos europeus que vivem neste país terão os seus
direitos totalmente protegidos.”
Mas é muito difícil
distanciar os incidentes do tom da campanha, que teve o seu ponto
mais baixo no cartaz divulgado por Nigel Farage, o líder do UKIP,
que lembrava o milhão de refugiados que chegou à Europa no último
ano – a mensagem implícita era que muitos poderiam ir para o Reino
Unido se o país ficasse na UE. Johnson e os aliados repudiaram o
cartaz, mas repetiram à exaustão que o país precisava de
“recuperar o controlo das fronteiras” – Farage nunca se
retractou.
“A campanha pela
saída parece ter legitimado a retórica do ‘outro’. Agora que
vamos deixar a UE, algumas pessoas sentem-se confiantes para proferir
publicamente opiniões que até agora estavam muito mais reticentes
em manifestar”, disse ao Times Jasvir Singh, advogado e activista
do Partido Trabalhista. Joanna Ciechnowska, directora cultural na
associação polaca, disse ao Guardian que, em 35 anos no país,
nunca se sentiu vítima de racismo. “De repente, um pequeno grupo
de extremistas sente-se fortalecido. As margens da sociedade sentem
que podem fazer tudo porque pensam ter o apoio de metade da nação”.
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