"Brexit"
e crise de civilização
FRANCISCO
BETHENCOURT 16/06/2016 – 07:50
O
efeito dominó da saída britânica significará o reforço da
extrema-direita e, provavelmente, a dissolução da União Europeia.
A saída do Reino
Unido da União Europeia é mais que provável. Nunca duvidei que em
caso de referendo o voto pudesse pender para a separação. As
estatísticas de emprego e desenvolvimento económico são
enganadoras: o trabalho precário cresceu exponencialmente, as
classes média e baixa vivem com maior precaridade que as gerações
anteriores, os ganhos do escasso crescimento económico são
apropriados pela elite que absorve 0,1% do topo dos rendimentos.
Existe igualmente uma ideologia nacionalista que é erradamente
considerada em declínio. O sentimento de abandono das camadas
marginalizadas pelo processo de globalização é agora canalizado
pela política anti-imigração, legitimada pelo referendo.
Finalmente, as pequenas e médias empresas que se queixam da
burocracia europeia não veriam com maus olhos a redução dos
direitos dos trabalhadores e consumidores consagrados pela UE. Embora
a história não se repita, há uma sensação do já visto em tudo
isto.
A campanha de saída
da UE é hábil: conseguiram fazer esquecer que os cortes orçamentais
do governo conservador são largamente responsáveis pela falta de
casas, pelo declínio do Serviço Nacional de Saúde e pelo aumento
da insegurança. Convenceram boa parte da população que a raiz de
todos os males reside na imigração descontrolada. Defendem que o
dinheiro pago à União Europeia pode ser melhor aplicado pelo
governo inglês nas necessidades locais, enquanto difundem a ideia
que o Reino Unido é governado por Bruxelas. Consideram irrisória a
ideia de garantia de paz que as instituições europeias forjaram nos
últimos setenta anos. Tudo isto num contexto internacional de
relativa estagnação económica e défice democrático da UE. O voto
pela permanência, em contraste, assenta numa série de dados
económicos convincentes, na ideia que a separação rompe com a
estabilidade financeira, comercial e política, comprometendo ainda
mais as fracas perspetivas de crescimento, na visão do impacto
benéfico da imigração como forma de rejuvenescer a população e
sustentar algum desenvolvimento económico. Mas é um discurso
defensivo, sem o elan do suposto impacto galvanizador da "recuperação
da soberania".
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Num ambiente de
viragem à direita do eixo da política internacional, é curioso
observar como a União Europeia, criada no quadro de uma ideologia
capitalista, seja agora vista como um reduto de direitos ameaçados.
É esta luta de retaguarda que explica a estranha aliança entre as
grandes empresas e os sindicatos, entre a lógica de acesso a grandes
mercados internacionais como a UE e a defesa de direitos
fundamentais. Não deixa de ser significativo que a luta britânica
entre ficar ou abandonar a União Europeia esteja limitada ao partido
conservador, dividido entre David Cameron e Boris Johnson. O Partido
Trabalhista passou a ser um espectador, deixando praticamente de
existir neste debate, embora os esforços desenvolvidos pela velha
guarda tenham sido silenciados pela vasta maioria da imprensa,
favorável ao Brexit. Neste quadro, que poderá ter como consequência
dramática o esvaziamento de um partido necessário aos equilíbrios
políticos e sociais, a campanha pela saída deixou de ter qualquer
escrúpulo, respondendo ponto por ponto a todos os dados económicos
que favorecem a permanência na UE. Resultado, empenhou-se em
promessas avaliadas em mais de 113 mil milhões de libras que sabem
perfeitamente não poder satisfazer. A demagogia deixou de ter
limites.
Mas haverá preço a
pagar? Não: em caso de saída as dificuldades serão atribuídas à
"herança" da União Europeia e à incapacidade de um
governo conservador fraco em conter a imigração. A acumulação de
enormes problemas em consequência da saída da UE – queda da
libra, crise económica, aumento do défice financeiro do Estado,
provável separação da Escócia, descontentamento no País de Gales
e na Irlanda do Norte – poderá não ser imputada aos proponentes
da saída. A esquerda, por seu lado, não viu chegar esta crise e
revela-se impotente para a conter. A nível internacional o efeito
dominó da saída britânica significará o reforço da
extrema-direita e, provavelmente, a dissolução da União Europeia,
se não se souber reformar a tempo.
É ainda possível
um sobressalto de racionalismo neste debate que se tornou feroz,
baseado na emoção e no ódio. O que está em jogo aqui no Reino
Unido é muito mais do que a sobrevivência desta entidade política,
seriamente ameaçada por aventuras demagógicas; é a própria
sobrevivência da Europa com as suas enormes capacidades culturais,
científicas e tecnológicas que está em jogo. A União Europeia não
poderá manter uma posição defensiva e de adiamento de decisões;
terá necessariamente que se reformar e renovar numa ligação
política fecunda com a maioria das populações envolvidas.
Professor, Charles
Boxer e King's College London
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