Marcelo
e as elites. Mas, que elites?
Manuel Carvalho /
19-6-2016 / PÚBLICO
(
…) Por isso, este romance de cavalaria entre Belém e São Bento
começa a cansar. Porque é uma mistificação e uma perversidade. O
Presidente existe para moderar ou para arbitrar o jogo democrático.
Faz parte das suas incumbências introduzir-lhe perguntas, dúvidas e
tensão. Está na hora de pegar nas suas observações argutas e nas
suas constatações sábias e de exigir que não se extingam na
espuma dos dias.
Manuel
Carvalho
Quando o Presidente
da República subiu ao palco do 10 de Junho para recordar que “foi
o povo, a arraia-miúda, quem nos momentos de crise soube compreender
os sacrifícios e privações em favor de um futuro mais digno e mais
justo” ou para sublinhar que “foi o povo, sempre o povo, a lutar
por Portugal”, não se estava certamente a referir à crise de
1383-1385. Quando apontou o dedo a “algumas elites” que “nos
falharam, em troca de prebendas vantajosas, de títulos pomposos,
meros ouropéis luzidios, de autocontemplações deslumbradas ou
simplesmente tiveram medo de ver a realidade e de decidir com visão
e sem preconceitos” não estava seguramente a falar de D. João I
ou a pensar em Nuno Álvares Pereira. Para notória infelicidade do
povo, Marcelo Rebelo de Sousa pode pegar nas histórias da Caixa
Geral de Depósitos, no ilusionismo de José Sócrates, na fuga de
Durão Barroso, na arrogância venal de Ricardo Salgado ou na
incompetência premiada de Vítor Constâncio (o homem que travou o
debate sobre o desequilíbrio externo nacional acabou, recordese, na
vice-presidência do BCE) para dizer o que disse.
O que o Presidente
não disse, e nós gostaríamos muito de saber, é se acha que a nova
elite que governa hoje o país é capaz ou não de “ver a realidade
e decidir com visão e sem preconceitos”. Porque, definitivamente,
estamos cansados de andar sempre às voltas com o passado e de ver
como o país esperançoso de 1986 a 2000 acabou no limiar da
bancarrota e no sufoco de escândalos sucessivos. Sim, já sabemos
que uma parte da elite política portuguesa contemporânea é o
exemplo acabado do fracasso e da venalidade.
É por isso ridículo
que o PSD queira avançar com uma comissão parlamentar de inquérito
à Caixa Geral de Depósitos, porque todos e cada um dos seus
deputados sabem o que todos e cada um dos portugueses conhecem: que a
Caixa foi durante anos a fio um instrumento do tráfico de
influências políticas, o lugar onde o Estado se deixou aprisionar
em nome de uma rede de privilegiados sem o mínimo laivo de honra ou
de sentimento de dever público. A questão é: e agora?
Se houve nos anos de
chumbo da troika uma boa notícia foi a da varredela de uma certa
elite que se instituiu com o alto patrocínio do Estado e dos nossos
impostos. O fim do império do BES, a investigação judicial aos
indícios que pairam sobre os negócios de José Sócrates ou de
Armando Vara, a passagem à reserva (sejamos crédulos, ao menos por
uns instantes) de Miguel Relvas ou a queda da Ongoing deixaram entrar
algum ar fresco pela janela.
Mas, e o presente?
Nada nos garante que debaixo dos escombros do ajustamento tenha
nascido uma verdadeira elite política destinada a reformar o país e
a expurgar o Estado das suas pústulas e dos seus vícios. Pelo
contrário, podemos até suspeitar que nas negociatas da TAP ou nos
arranjos com os estivadores esteja outra vez presente o instinto de
sobrevivência de uma oligarquia política (a expressão feliz de Rui
Ramos nas suas crónicas no Observador) que faz tudo para se
perpetuar no poder.
Num livro lúcido e
admiravelmente bem escrito que a Fundação Francisco Manuel dos
Santos lançou recentemente ( Crime e Castigo, Os desequilíbrios e o
resgate da economia portuguesa, de Fernando Alexandre, Luis
Aguiar-Conraria e Pedro Bação) faz-se uma viagem pelos traumas do
passado recente que nos conduz a uma actualidade não menos
assustadora: os problemas que Portugal tinha no início da sua década
e meia perdida (por volta do ano 2000) e que nos obrigaram a pedir um
resgate à troika continuam presentes.
A dívida pública e
privada é mais elevada do que no início desta fase da vida nacional
e o crescimento económico continua a ser anémico. O défice, está
bem, melhorou, mas permanecemos sentados em cima de um barril de
pólvora. Portugal precisava de uma elite política que fosse capaz
de ter coragem de assumir que a gravidade deste problema não se
esgota nos artifícios fantasiosos do debate parlamentar actual. Que
tivesse coragem de assumir que há reformas profundas a fazer, sejam
as que se encaixam mais nos pergaminhos da direita ou as que reclamam
a adopção de mecanismos de protecção social que se revêm mais
facilmente nos programas da esquerda.
Infelizmente, mesmo
que a elite actual recuse “prebendas vantajosas” ou “títulos
pomposos”, ela continua a alimentarse de “autocontemplações
deslumbradas” sem que se digne encarar de frente o problema. Nas
semanas em que assistimos à cada vez mais provável saída da União
Europeia do Reino Unido, o nosso mais antigo aliado estratégico, nos
dias em que as notícias do desempenho económico vão de mal a pior,
o país enleva-se com celebrações gloriosas no Terreiro do Paço ou
em Paris e embevecese com o patrioteirismo por vezes alarve dos
diagnósticos sobre a forma de Ronaldo. A elite assobia para o lado,
como fez quando constatou que o país caíra num pântano ou quando
ficara de tanga.
Bem sabemos que
tristezas não pagam dúvidas, que o “tempo novo” também se faz
de confiança e optimismo, que o país precisava de respirar depois
de quase cinco anos de sufoco da troika e da “austeridade”. É
verdade que, ao contrário do que se previra, o balanço do poder
para os lados da esquerda radical não produziu nenhuma hecatombe.
Mas, ainda assim, é impossível não ouvir o discurso de Marcelo
Rebelo de Sousa e perguntar: “E vai daí, senhor Presidente?”
Mesmo que não seja venal, o que está a fazer a elite que nos resta
para quebrar as correntes que impedem um país com produção de
ciência de ponta, com universidades de nível internacional, com
novas gerações qualificadas e competentes de dar o salto que
deseja? Pois é, não nos parece que esteja a fazer grande coisa. E
tanto nós como Marcelo Rebelo de Sousa sabemos porquê: porque a
elite continua a ter “medo de ver a realidade e de decidir com
visão e sem preconceitos”. O “saber durar”, a arte que o
historiador Fernando Rosas identifica em Salazar, tornou-se a única
preocupação da política nacional.
Claro que a política
é a arte do possível e basta olhar para o lado, para Espanha, e
perceber que é melhor termos uma receita de poder conservadora,
medrosa e paralisante do que vivermos em permanente clima de crise ou
de instabilidade. Mas se pegarmos na dialéctica do Presidente,
podemos constatar que o povo que “ganha sempre” continua à
espera de uma elite política que se lhe compare.
Por isso, este
romance de cavalaria entre Belém e São Bento começa a cansar.
Porque é uma mistificação e uma perversidade. O Presidente existe
para moderar ou para arbitrar o jogo democrático. Faz parte das suas
incumbências introduzir-lhe perguntas, dúvidas e tensão. Está na
hora de pegar nas suas observações argutas e nas suas constatações
sábias e de exigir que não se extingam na espuma dos dias. O país
precisa de elites que, como disse o Presidente e nunca é demais
lembrá-lo, não tenham “medo de ver a realidade e de decidir com
visão e sem preconceitos”. Há que estimulálas e não deixá-las
a marinar na irrealidade de um país agonizante que se desdobra em
festas como se tudo estivesse bem.
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