A
queda da Europa das elites
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 24/06/2016 – PÚBLICO
Uma
Europa que só entusiasma elites desnacionalizadas e tecnocratas não
tem futuro.
1. A votação
favorável à saída dos britânicos da União Europeia confirmou, da
pior maneira, o que já deveria ser óbvio para os responsáveis
nacionais e europeus. É o culminar de um processo de miopia
colectiva das elites políticas, económicas e intelectuais que nos
dirigem, o qual dura há mais de uma década. As suas raízes
directas podem ser traçadas a 2005, quando o modelo de integração
europeia, que fazia consenso entre as elites governantes, era
amplamente rejeitado pela população em referendos. Por isso, os
sinais do seu esgotamento estão longe de ser novos. Qualquer
observador atento, qualquer observador minimamente neutral e
razoável, poderia verificar isso há já há mais de uma década
atrás. Persistir num modelo de integração esgotado, que ignorava a
vontade dos cidadãos, foi uma tragédia independentemente das boas
intenções que lhe possam ser apontadas. Em democracia, ninguém
pode (deve) ignorar a vontade dos cidadãos. Vale a pena olhar para
esse passado recente para colocar o referendo britânico em
perspectiva. Só assim iremos perceber como chegamos até aqui e onde
a obstinação absurda e míope das elites governantes nos levou.
2. Os referendos
sobre o Tratado Constitucional Europeu (Constituição Europeia),
ocorridos 2005, em França e na Holanda, foram uma clara rejeição
de um modelo de integração elitista e tecnocrático, desligado da
vontade da população. Importa recordar que, na altura, a
participação eleitoral em ambos os países foi substancialmente
elevada. Algo que, normalmente, nunca ocorre nas eleições para o
Parlamento Europeu. Aí registam-se os índices de abstenção mais
elevados de todos os actos eleitorais. Em ambos os referendos, a
votação contra, na ordem dos 60%, foi um inequívoco sinal de
rejeição. Mais: ambos eram efectuados em Estados que faziam parte
do núcleo dos seis fundadores das Comunidades. Deveriam ter obrigado
a uma paragem para pensar. À partida, eram casos onde teríamos a
maioria da população identificada com os avanços da integração
europeia. Mas não tínhamos. Por isso, há mais de uma década que
existem sinais de alarme — e bastante inequívocos —, quanto ao
descontentamento dos cidadãos face à forma como a integração
europeia está a ser prosseguida. Prevaleceu, no entanto, a miopia e
a arrogância. Em vários Estados-Membros, nos parlamentos, a
Constituição Europeia era ratificada por maiorias esmagadoras de
deputados em desfasamento com a população. Nesses mesmos Estados,
os inquéritos de opinião mostravam uma população muito dividida,
ou até maioritariamente contra essa ratificação.
3. Na época, tudo
isto deveria ter obrigado a repensar profundamente o modelo de
integração europeia. A resposta generalizada das elites nacionais e
europeias foi a pior possível. Menosprezou e contornou a votação
contra a Constituição Europeia. Quem votou contra certamente
estaria mal informado; quem votou contra provavelmente votava contra
o governo nacional e não contra o Tratado; quem votou contra era um
eurocéptico militante e desprezível. A hipótese de a maioria ter
mesmo votado contra, simplesmente porque não queria o Tratado
Constitucional — ou o caminho que a integração estava europeia a
seguir —, não lhes parecia concebível. Por isso, fazer um novo
Tratado, em mais de 90% igual ao anterior, foi a forma de iludir o
problema. Assim, surgia o actual Tratado de Lisboa. Foi apresentado,
a nós, portugueses, como uma grande vitória diplomática. Quanto ao
conteúdo, não interessava. As elites é que sabiam (ter o nome de
Lisboa já deveria ser motivo de orgulho). Era muito técnico para a
população compreender. À porta fechada, todos combinaram não
fazer referendos. Só o quadro mental de elites habituadas a governar
com a arrogância iluminista, de saberem o que é melhor para a
população, pode explicar esta forma absurda de governar em
democracias. A lógica continuou com a pressão para a repetição do
referendo na Irlanda — o único país onde a Constituição obriga
a isso —, até dar sim à ratificação do Tratado de Lisboa.
Prosseguiu com Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e
Governação na União Económica e Monetária de 2012 (o pacto
orçamental), em plena crise da Zona Euro. Tudo isto mostra um enorme
desfasamento entre os que representam politicamente os cidadãos e a
visão do mundo e vontade da destes em matéria de integração
europeia. Em democracia, esse desfasamento é grave e tem
consequências. Estas surgem mais tarde ou mais cedo.
4. O dia 23 de Junho
de 2016 vai marcar a história britânica e europeia deste início de
século XXI. Não é certo onde nos vai levar. A União Europeia
poderá ter de enfrentar um efeito dominó, com referendos similares
em vários Estados-membros. Para além das incertezas económicas, o
Reino Unido vai ter de gerir delicadas questões políticas internas,
mais óbvia é ambição independentista da Escócia. Quanto à
sociedade britânica, em geral, ficou profundamente dividida. O voto
de saída foi, largamente, um voto da província inglesa e das
classes média e media-baixa, contra os ganhadores da integração /
globalização. O voto pela permanência veio, sobretudo, da grande e
cosmopolita Londres — que muitos britânicos têm abandonado por se
sentirem estranhos na sua terra —, e das outras componentes
nacionais do Reino Unido: a Escócia, o País de Gales e a Irlanda do
Norte. Há, também, uma forte clivagem entre os mais novos
(maioritariamente a favor da permanência) e os mais velhos
(maioritariamente a favor da saída). David Cameron fez uma jogada
política de grande risco. Pretendia consolidar o seu poder sobre o
partido e o eleitorado conservador, incluindo o que estava a fugir
para o UKIP de Nigel Farage, atraído pelo populismo anti-União
Europeia. Perdeu estrondosamente. Hoje deve estar bem arrependido.
Boris Johnson liderou a campanha de saída da União Europeia a
pensar, provavelmente, mais em chegar à liderança do Partido
Conservador, sendo o referendo instrumental para a sua ambição de
poder. As motivações dos que votaram a favor da saída são
múltiplas (a imigração é apenas mais óbvia), contraditórias, e
em vários aspectos também irrealistas. Se, com este resultado, os
conservadores ficaram completamente fracturados, já o Partido
Trabalhista — ou melhor, o círculo próximo de Jeremy Corbyn —,
vê no mesmo uma oportunidade. Apesar do apoio oficial à
permanência, há agora a possibilidade de chegada ao poder em
eleições legislativas antecipadas. Quanto à saída da União
Europeia, existem perspectivas que entusiasmam os mais à esquerda,
de romperam com políticas económicas de orientação (neo)liberal e
se afastarem da lógica do mercado único. Mas o Partido Trabalhista
está muito dividido nessa questão. Também Jeremy Corbyn não vai
ter a vida fácil no pós-referendo.
5. Chegamos a um
ponto de viragem na integração europeia. O contínuo processo de
adesão e de aumento de Estados-Membros vai ter, pela primeira vez,
uma reversão. A ideia de uma união cada vez mais estreita — ou
seja, do contínuo aprofundamento da integração europeia —, foi
posta em causa de uma maneira que não pode ser ignorada. O artigo
50.º do Tratado da União Europeia, o qual contém o dispositivo de
saída de um Estado-Membro, vai estar no dentro das discussões
políticas batalhas e jurídicas dos próximos tempos. Ironicamente,
quando foi incluído no texto do Tratado da União Europeia, a
hipótese de saída era meramente teórica. Hoje tornou-se real. Mas
tudo isto é o culminar do mal-estar acumulado há mais de uma
década. Achar que o problema é apenas britânico é um erro grave.
Se, do lado da União Europeia, se quiser fazer prevalecer um
espírito de retaliação nas negociações de saída dos britânicos,
será péssimo. Abrirá novas fracturas entre os Estados-Membros.
Mais do apontar o dedo aos britânicos, as elites que nos governam
têm de tirar uma ilação. Este modelo de integração europeia está
esgotado. A Europa não pode ser construída à margem da vontade dos
cidadãos. Não podem continuar assim. As elites governantes deveriam
ter percebido isso em 2005, na altura da rejeição da Constituição
Europeia. Ao persistirem neste caminho, são responsáveis pela
situação crítica em que hoje a União Europeia se encontra. A
todos os que têm um sentimento europeísta resta a esperança que
este choque possa levar a uma viragem de página. Uma Europa que só
entusiasma elites desnacionalizadas e tecnocratas não tem futuro.
Investigador
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