O
“Brexit” pode ser o abanão de que a Europa precisa
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 25/06/2016 – PÚBLICO
A
saída do Reino Unido pode ser muito positiva para a União Europeia,
que, já se viu, se não muda “a bem” só pode mudar “a mal”.
Mais do que uma vez
disse que tinha “mixed feelings” em relação ao Brexit, era
sensível a argumentos a favor ou contra a permanência do Reino
Unido, embora estivesse convencido que no fim ganharia o “remain”
por uma pequena margem. Depois do assassinato da deputada
trabalhista, pensei que o efeito perverso seria inverter as
tendências que apontavam para a vitória do “Brexit” e foi isso
que pareceu nas últimas sondagens. No entanto, nada disso se
verificou e basta olhar para o mapa dos resultados para percebermos
como a divisão do voto no referendo penetrou fundo no tecido social,
nacional e político inglês. Vai muito para além dos anátemas com
que os europeístas quiseram exorcizar um monstro que em grande parte
criaram quando estão há décadas a erodir a democracia na Europa.
“Take our country
back” é um slogan poderoso, entre outras coisas, porque é
verdadeiro. O “país”, sob formas mais ou menos capciosas e nunca
legitimadas pelo voto com a clareza que é precisa nestas matérias,
tinha de facto sido “roubado”, como aliás acontece com muitos
países da Europa, a começar pela Europa do Sul. Querer impor
sanções a Portugal e Espanha e não à França, porque “a França
é a França”, como diz Juncker, é o exemplo do que é a Europa de
hoje, indiferente ao voto nacional, comportando-se de forma diferente
conforme o tamanho dos países, e correndo para punições como um
polícia velho. Aliás o referendo inglês teve algo de parecido com
o grego: as tácticas do medo reforçaram o sentimento nacional.
No Reino Unido não
votaram os anti-emigrantes contra os amigos dos emigrantes, porque o
benefício que Cameron levou para a campanha, dado por uma Europa sem
princípios, foi exactamente a excepção para o Reino Unido de poder
retirar direitos aos emigrantes. No Reino Unido não votaram os
velhos contra os jovens, o campo contra cidade, os populistas
emotivos contra os “racionais”, os que olham para o “futuro”
contra os que olham para o “passado”. Votaram os escoceses a
favor da independência da Escócia por via do sim à Europa, votaram
os irlandeses do Norte que não querem uma fronteira externa da União
ao lado da República da Irlanda, e votaram os mais pobres e mais
excluídos, tirando o tapete ao Partido Trabalhista, e recusaram o
voto a tudo quanto é grande interesse, a começar pelo capital
financeiro e pelas grandes empresas que são, há muito, mais
internacionalistas do que qualquer Internacional Comunista.
Era uma combinação
muitas vezes contraditória de intenções de voto? Era, mas as
democracias são assim. E os ingleses têm uma velha democracia, e um
conjunto de “peculiaridades”, que permitiram a E. P. Thompson um
dos mais notáveis ensaios sobre como o adquirido democrático e
liberal, penetrou tão fundo no Reino Unido sem paralelo na Europa, e
“pertence” a todos. Do habeas corpus, ao julgamento por um júri,
do respeito pelas tradições próprias mesmo quando parecem
irracionais e pouco eficazes, como seja a recusa do sistema métrico,
ou a condução pela esquerda, a resistência ao controlo de
identificação, a momentos que só podiam acontecer em Inglaterra
como o apoio dos homossexuais aos mineiros durante as grandes greves
contra Thatcher, que ainda hoje faz com que um dos sindicatos mais
duros do Reino Unido, participe por gratidão nas paradas gay. Existe
uma forte cultura nacional identitária. Umas coisas são mais
importantes, outras menos e nem todas são boas, mas isso é que
significa “ser inglês”, um complexo de história, cultura,
tradição, laços de identidade, que justificaram o “take our
country back”.
Os burocratas
europeus e os interesses internacionais do dinheiro não percebem
esta realidade, e acham que é um anacronismo, mas Jean Monnet, um
dos fundadores de uma Europa que já não existe, percebia-o bem
demais. E por isso defendia uma Europa de iguais, de “pequenos
passos”, de solidariedade e que, para existir, tinha de ter em
conta a diversidade das nações. Uma classe política como a
portuguesa, que andou anos a jurar nas campanhas eleitorais que não
era federalista e que agora acordou toda federalista e
hiper-europeia, não percebe isso, porque há muito perdeu os laços
com a identidade nacional e aceita tudo. Aceita tudo agora porque o
modelo económico imposto é próximo dos seus interesses, porque se
a política europeia fosse keynesiana, havíamos de os ver todos
anti-europeus.
De há muito que de
cada vez que há um sobressalto ao acelerar de “mais Europa”
prometem-se juras de reforma e “debate” e, mal o susto passa,
tudo continua na mesma ou pior, torneia-se o voto de que não se
gosta através de estratagemas muito pouco democráticos. A actual
liderança europeia já vinha de ter feito um Tratado de Lisboa que é
um verdadeiro exemplo de dolo na vida pública, visto que foi assente
no engano de fazer passar as medidas que tinham sido recusadas nos
referendos holandês e francês debaixo da mesa, com a traição de
vários governos e partidos de fazer um referendo. Como, em Portugal,
fizeram o PS e PSD.
Claro que o
referendo tem riscos e o mecanismo referendário não pode
sobrepor-se ao normal funcionamento dos parlamentos. Mas o que
acontece é que não há um normal funcionamento dos parlamentos, em
que maiorias “centrais” de conservadores e partidos muito virados
à direita e socialistas que abandonaram o socialismo, aceitaram um
caminho que punha em causa a soberania das nações europeias e o
próprio poder dos parlamentos nacionais que nenhum tratado, nem
nenhum debate público eleitoral clarificou a nível nacional. Como
em Portugal, a União Europeia usurpou poderes nacionais sem nunca
ter havido uma discussão democrática que dissesse claramente “o
meu Parlamento vai perder este e aquele poder, estão de acordo?”,
sendo que os poderes perdidos estavam, como estão, no centro da
democracia, como seja o poder orçamental. Bem pelo contrário, uma
discussão com puros objectivos de marketing, como aconteceu quando
do Tratado de Lisboa, dizia exactamente que o contrário ia
acontecer: ia haver “devolução” de poderes aos parlamentos
nacionais.
A saída do Reino
Unido pode ser muito positiva para a União Europeia, que, já se
viu, se não muda “a bem” só pode mudar “a mal”. Claro que
os países da União podem acantonar-se numa atitude revanchista
contra o Reino Unido para lhe fazer “pagar” a ousadia. Não é
impossível que isso aconteça, num remake do que se fez à Grécia
com os brilhantes resultados conhecidos. Ou podem compreender que há
um vasto conjunto de laços com o Reino Unido que nada impede serem
mantidos, mesmo que o país não faça parte das instituições
políticas da União. O Reino Unido continua a ser fundamental para a
defesa da Europa, por exemplo, numa Europa que deixou de ter forças
armadas credíveis. É parceiro na NATO de muitos países europeus,
que precisam desse laço para manterem a sua soberania face à
Rússia. E por aí adiante.
Se seguirem uma
linha à grega de vingança, que é o que presumo passa pela cabeça
de alguns gnomos europeus e pela burocracia, cujo comportamento teve
um grande papel em alimentar o “Brexit”, os problemas da Europa
só se agravarão. Uma negociação punitiva com o Reino Unido
favorece a independência escocesa com os efeitos que isso tem em
Espanha, e agravará nas opiniões públicas a reacção soberanista
que tem crescido com a política de dolo das últimas décadas e com
a transformação da política “austeritária” na vulgata imposta
na Europa.
O que aconteceu no
Reino Unido não é da mesma natureza da ascensão da Frente Nacional
em França, embora a ecologia que a União Europeia está a criar
seja propícia a estes movimentos. Por isso, o abanão inglês pode
incentivar uma crescente contestação, à direita em França, na
Hungria, na Polónia, e à esquerda em Espanha e em Portugal. Não
adianta, como fazem os nossos europeístas, que nunca percebem nada
do que se passa a não ser quando têm o fogo à porta, meter todos
os movimentos de contestação ao actual estado de coisas na Europa
no mesmo saco de “populistas e extremistas”. Mas deviam meter no
mesmo saco as causas dessa ascensão, porque as causas são de sua
responsabilidade: a engenharia política do “mais Europa” à
revelia da vontade dos povos e feita com truques e sem democracia, a
erosão das democracias que, verifica-se agora, funcionam apenas no
espaço da soberania, o poder solitário de um país e dos seus
aliados com políticas económicas e sociais de “austeridade” que
levaram à estagnação económica da Europa, a captura pelo poder
financeiro dos centros de poder, a mono política de ir atrás de
salários e pensões enquanto se fecha os olhos aos paraísos
fiscais, e o tratamento inaceitável dos refugiados (anote-se, muito
pior do que o do Reino Unido) inscrito no acordo sinistro com a
Turquia.
Continuem assim e o
fim da União não vai ser bonito de se ver. O abanão do Reino Unido
pode ser a última oportunidade de a mudança na Europa não ser
convulsiva.
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