quinta-feira, 16 de junho de 2016

Faz-se teatro na Baixa lisboeta para salvar as lojas históricas


Faz-se teatro na Baixa lisboeta para salvar as lojas históricas
O Teatro das Compras já chegou à Baixa e aí vai permanecer até 25 de Junho. Ao todo, são nove lojas, nove actrizes e nove histórias com uma missão: preservar as lojas históricas que ainda sobrevivem

Das 50 lojas com que o director artístico trabalhou em oito anos, entre 15 e 20 fecharam e há outras em risco
Teresa Serafim / 17-6-2016 / PÚBLICO
A porta da loja está aberta para todas as bonecas que precisem de uma reparação. Mas ontem de manhã, os “doentes” deste velhinho hospital, na Praça da Figueira, receberam visitas inesperadas. A sala de espera transformou-se numa sala de espectáculos. Está quase a subir o pano —é o Teatro das Compras a chegar às lojas históricas de Lisboa para aí ficar até ao último fim-de-semana de Junho.

Mónica Calle deu corpo à peça Do Avesso, de Dulce Maria Cardoso, no Hospital das Bonecas
Há só uma luz de candeeiro acesa. A actriz Mónica Calle entra com um vestido preto simples e descalça. Atrás dela estão bonecas sem pernas, com cabelos por arranjar e sem roupa. “O saque é uma festa”, começa. “Para haver quem vença é preciso haver quem seja vencido”, continua. A história envolve um militar numa aldeia em África e o clima é de guerra, a Guerra Colonial. O militar encontra, numa casa de palhota, uma boneca e leva-a com ele, chama-lhe Imperatriz. Chega a independência e o militar traz para Portugal a guerra e a boneca. O brinquedo está com danos, então leva-a ao Hospital das Bonecas. A boneca torna-se numa menina. A luz desliga-se.
Na plateia de dez pessoas, a coreógrafa Madalena Victorino acaba emocionada. “Fiquei tocada com a peça. Tem a capacidade muito invulgar de estabelecer uma relação verdadeira com o espaço”, conta. “A peça lançanos para um dos paradigmas mais fortes e atrozes de toda a guerra colonial, da indiferença que a sociedade portuguesa demonstrou”, aponta.
Desde muito pequena que é cliente da loja. “Eu roía os dedos das bonecas e ficava com muita pena. Depois escrevia com esferográfica no cabelo dos bonecos para ficarem com outro penteado e ficava triste porque a tinta não saía”, conta com nostalgia. Como espectadora, é também uma repetente.
Para a actriz Mónica Calle, esta é a primeira experiência no Teatro das Compras. O director artístico, Giacomo Scalisi, viu o seu espectáculo
Rua de Sentido e decidiu convidá-la. O texto Do Avesso, de Dulce Maria Cardoso, também a atraiu. “É um texto muito impactante e violento”, afirma. Durante a tarde vai participar em mais uma representação na A. Molder Filatelia. Para a actriz, a corrente que se criou com os nove textos, nas nove lojas escolhidas e com nove actrizes, é “mágico”. “Há ecos de histórias contadas de outras maneiras, de outros pontos de vista, mas que circulam pela Baixa toda. É como se houvesse uma circulação invisível de histórias e personagens nesta zona toda”, explica.
Tudo começou há oito anos com uma proposta do então presidente da EGEAC (Empresa municipal de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural), Miguel Honrado, ao actual director artístico, Giacomo Scalisi. Numa iniciativa, que classifica como “única”, Giacomo revela que os objectivos foram mudando. “No início, a ideia era trazer pessoas para a Baixa. A Baixa não era esta que é agora.” Actualmente descreve o projecto como “muito mais político”, tendo a intenção de preservar a identidade e história das lojas. “Há pessoas que trabalham 50 anos nas lojas e viram toda a história passar, desde a revolução, as greves ou as madames que vinham comprar os tecidos. É preciso guardar essas memórias”.
Das 50 lojas com que trabalhou em oito anos, revela que entre 15 e 20 fecharam as portas e algumas participantes estão em risco de encerrar, como a Marques e Sequeira. Para o director artístico, é preciso não ficar parado como outras capitais europeias, que “agora estão a chorar por este erro.” Para isso, está a pensar fazer um festival de quatro semanas com todas as lojas sobreviventes que já participaram e reunir os 80 textos escritos num livro.
Foi a caminhar pela Baixa que Giacomo descobriu e escolheu as lojas que “muitas vezes ninguém vê” para o Teatro das Compras. Foi assim que descobriu o Hospital das Bonecas. Para a proprietária da loja, Manuela Cutileiro, este movimento na casa já é normal. A participar desde os primeiros anos, denomina esta história como “dura”, mas a loja é um hospital e há lugar para tudo. “Trabalhamos com emoções e todas as histórias acabam por ficar bem”, diz, a sorrir.
Um teatro com franjas
O ambiente na Franjarte é de Festas de Santo António. A loja dedicada à sirgaria e passamanaria tem as sardinhas da EGEAC expostas nas paredes e ornamentadas com franjas a condizer com as cores de cada uma. Custódia Pinto foi a decoradora das sardinhas, é a dona da loja e uma das actrizes do texto Morrer na Arena, de Jorge Palinhos, juntamente com a actriz Maria Ana Filipe.
Custódia Pinto faz o papel de si própria e atende a actriz, que é uma cliente que pretende uns “galões dourados” para uma moldura. Numa loja com 70 anos, Custódia representa o mesmo papel que desempenha atrás do balcão há 40 anos. Quando começou, havia cinco lojas do mesmo género na Baixa, actualmente há apenas a sua. E não sabe até quando. “Da maneira que a Baixa está a ficar, com os prédios a serem vendidos para hotéis e as lojas de tradição a fechar, não sei até quando vou ficar. Noto que até já os turistas dizem que Lisboa está a perder identidade”, afirma. A proprietária defende que a câmara e a junta têm de actuar rapidamente, depois pode ser “tarde de mais”. “Devia haver um certo apoio em relação aos impostos, que são muito altos para um comércio tão pequeno.”
As vendas têm caído e já começou a dedicar-se ao artesanato. Custódia tem clientes de todos os cantos do mundo. Num dossier atrás do balcão, guarda os postais que lhe enviam, quer de portugueses no estrangeiro, quer de turistas que visitaram a loja. “Até já foram daqui cordões para a Austrália”, salienta. Isto é um dos factores que a motivam a continuar atrás do balcão. “O comércio tradicional é mais humano. Ao fim de tantos anos, até já somos médicos, psicólogos, conselheiros...”
Após ver o teatro de 20 minutos, Maria Ferreira está com pressa. Tem de ir à próxima representação na Rua da Conceição. A cliente “pontual” da Franjarte e “habitual” das retrosarias da Rua da Conceição, segue o projecto desde o início e elogia a representação de Custódia: “Adorei que a dona da loja colaborasse de forma tão espontânea.”
O Teatro das Compras segue para a retrosaria Arqui Chique que não fecha à hora de almoço. A empregada da loja, Flora, colabora nesta iniciativa há três anos e afirma que “de ano para ano está a melhorar”. Cláudia Gaiolas e Leonor Cabral são as actrizes que representam Carma
de Casal, de Sandro William Junqueira. Enquanto as actrizes se movimentam, Flora atende clientes. “Isto sempre traz algum movimento”, revela. É o caso de Maria Carolina, que, além de trabalhar naquela rua, é costureira e cliente da retrosaria. Com 31 anos, diz que é preciso estas iniciativas para trazer o público jovem às lojas tradicionais, em que a média da clientela está na casa dos 60 anos. “É preciso sangue novo e com estas representações os jovens voltam um pouco.”

As peças do Teatro das Compras têm horários variados, mas acontecem geralmente à hora de almoço, a meio de tarde e por vezes à noite. Decorrem às quintas, sextas e sábado até 25 de Junho no Hospital das Bonecas, Retrosaria Arqui Chique, Franjarte, Retrosaria Bijou, Marques e Sequeira, Barbearia Oliveira, Primeira Casa das Bandeiras, A. Molder Filatelia, Ginjinha sem Rival e Eduardino.

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