Faz-se
teatro na Baixa lisboeta para salvar as lojas históricas
O
Teatro das Compras já chegou à Baixa e aí vai permanecer até 25
de Junho. Ao todo, são nove lojas, nove actrizes e nove histórias
com uma missão: preservar as lojas históricas que ainda sobrevivem
Das
50 lojas com que o director artístico trabalhou em oito anos, entre
15 e 20 fecharam e há outras em risco
Teresa Serafim /
17-6-2016 / PÚBLICO
A porta da loja está
aberta para todas as bonecas que precisem de uma reparação. Mas
ontem de manhã, os “doentes” deste velhinho hospital, na Praça
da Figueira, receberam visitas inesperadas. A sala de espera
transformou-se numa sala de espectáculos. Está quase a subir o pano
—é o Teatro das Compras a chegar às lojas históricas de Lisboa
para aí ficar até ao último fim-de-semana de Junho.
Mónica Calle deu
corpo à peça Do Avesso, de Dulce Maria Cardoso, no Hospital das
Bonecas
Há só uma luz de
candeeiro acesa. A actriz Mónica Calle entra com um vestido preto
simples e descalça. Atrás dela estão bonecas sem pernas, com
cabelos por arranjar e sem roupa. “O saque é uma festa”, começa.
“Para haver quem vença é preciso haver quem seja vencido”,
continua. A história envolve um militar numa aldeia em África e o
clima é de guerra, a Guerra Colonial. O militar encontra, numa casa
de palhota, uma boneca e leva-a com ele, chama-lhe Imperatriz. Chega
a independência e o militar traz para Portugal a guerra e a boneca.
O brinquedo está com danos, então leva-a ao Hospital das Bonecas. A
boneca torna-se numa menina. A luz desliga-se.
Na plateia de dez
pessoas, a coreógrafa Madalena Victorino acaba emocionada. “Fiquei
tocada com a peça. Tem a capacidade muito invulgar de estabelecer
uma relação verdadeira com o espaço”, conta. “A peça lançanos
para um dos paradigmas mais fortes e atrozes de toda a guerra
colonial, da indiferença que a sociedade portuguesa demonstrou”,
aponta.
Desde muito pequena
que é cliente da loja. “Eu roía os dedos das bonecas e ficava com
muita pena. Depois escrevia com esferográfica no cabelo dos bonecos
para ficarem com outro penteado e ficava triste porque a tinta não
saía”, conta com nostalgia. Como espectadora, é também uma
repetente.
Para a actriz Mónica
Calle, esta é a primeira experiência no Teatro das Compras. O
director artístico, Giacomo Scalisi, viu o seu espectáculo
Rua de Sentido e
decidiu convidá-la. O texto Do Avesso, de Dulce Maria Cardoso,
também a atraiu. “É um texto muito impactante e violento”,
afirma. Durante a tarde vai participar em mais uma representação na
A. Molder Filatelia. Para a actriz, a corrente que se criou com os
nove textos, nas nove lojas escolhidas e com nove actrizes, é
“mágico”. “Há ecos de histórias contadas de outras maneiras,
de outros pontos de vista, mas que circulam pela Baixa toda. É como
se houvesse uma circulação invisível de histórias e personagens
nesta zona toda”, explica.
Tudo começou há
oito anos com uma proposta do então presidente da EGEAC (Empresa
municipal de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural), Miguel
Honrado, ao actual director artístico, Giacomo Scalisi. Numa
iniciativa, que classifica como “única”, Giacomo revela que os
objectivos foram mudando. “No início, a ideia era trazer pessoas
para a Baixa. A Baixa não era esta que é agora.” Actualmente
descreve o projecto como “muito mais político”, tendo a intenção
de preservar a identidade e história das lojas. “Há pessoas que
trabalham 50 anos nas lojas e viram toda a história passar, desde a
revolução, as greves ou as madames que vinham comprar os tecidos. É
preciso guardar essas memórias”.
Das 50 lojas com que
trabalhou em oito anos, revela que entre 15 e 20 fecharam as portas e
algumas participantes estão em risco de encerrar, como a Marques e
Sequeira. Para o director artístico, é preciso não ficar parado
como outras capitais europeias, que “agora estão a chorar por este
erro.” Para isso, está a pensar fazer um festival de quatro
semanas com todas as lojas sobreviventes que já participaram e
reunir os 80 textos escritos num livro.
Foi a caminhar pela
Baixa que Giacomo descobriu e escolheu as lojas que “muitas vezes
ninguém vê” para o Teatro das Compras. Foi assim que descobriu o
Hospital das Bonecas. Para a proprietária da loja, Manuela
Cutileiro, este movimento na casa já é normal. A participar desde
os primeiros anos, denomina esta história como “dura”, mas a
loja é um hospital e há lugar para tudo. “Trabalhamos com emoções
e todas as histórias acabam por ficar bem”, diz, a sorrir.
Um teatro com
franjas
O ambiente na
Franjarte é de Festas de Santo António. A loja dedicada à sirgaria
e passamanaria tem as sardinhas da EGEAC expostas nas paredes e
ornamentadas com franjas a condizer com as cores de cada uma.
Custódia Pinto foi a decoradora das sardinhas, é a dona da loja e
uma das actrizes do texto Morrer na Arena, de Jorge Palinhos,
juntamente com a actriz Maria Ana Filipe.
Custódia Pinto faz
o papel de si própria e atende a actriz, que é uma cliente que
pretende uns “galões dourados” para uma moldura. Numa loja com
70 anos, Custódia representa o mesmo papel que desempenha atrás do
balcão há 40 anos. Quando começou, havia cinco lojas do mesmo
género na Baixa, actualmente há apenas a sua. E não sabe até
quando. “Da maneira que a Baixa está a ficar, com os prédios a
serem vendidos para hotéis e as lojas de tradição a fechar, não
sei até quando vou ficar. Noto que até já os turistas dizem que
Lisboa está a perder identidade”, afirma. A proprietária defende
que a câmara e a junta têm de actuar rapidamente, depois pode ser
“tarde de mais”. “Devia haver um certo apoio em relação aos
impostos, que são muito altos para um comércio tão pequeno.”
As vendas têm caído
e já começou a dedicar-se ao artesanato. Custódia tem clientes de
todos os cantos do mundo. Num dossier atrás do balcão, guarda os
postais que lhe enviam, quer de portugueses no estrangeiro, quer de
turistas que visitaram a loja. “Até já foram daqui cordões para
a Austrália”, salienta. Isto é um dos factores que a motivam a
continuar atrás do balcão. “O comércio tradicional é mais
humano. Ao fim de tantos anos, até já somos médicos, psicólogos,
conselheiros...”
Após ver o teatro
de 20 minutos, Maria Ferreira está com pressa. Tem de ir à próxima
representação na Rua da Conceição. A cliente “pontual” da
Franjarte e “habitual” das retrosarias da Rua da Conceição,
segue o projecto desde o início e elogia a representação de
Custódia: “Adorei que a dona da loja colaborasse de forma tão
espontânea.”
O Teatro das Compras
segue para a retrosaria Arqui Chique que não fecha à hora de
almoço. A empregada da loja, Flora, colabora nesta iniciativa há
três anos e afirma que “de ano para ano está a melhorar”.
Cláudia Gaiolas e Leonor Cabral são as actrizes que representam
Carma
de Casal, de Sandro
William Junqueira. Enquanto as actrizes se movimentam, Flora atende
clientes. “Isto sempre traz algum movimento”, revela. É o caso
de Maria Carolina, que, além de trabalhar naquela rua, é costureira
e cliente da retrosaria. Com 31 anos, diz que é preciso estas
iniciativas para trazer o público jovem às lojas tradicionais, em
que a média da clientela está na casa dos 60 anos. “É preciso
sangue novo e com estas representações os jovens voltam um pouco.”
As peças do Teatro
das Compras têm horários variados, mas acontecem geralmente à hora
de almoço, a meio de tarde e por vezes à noite. Decorrem às
quintas, sextas e sábado até 25 de Junho no Hospital das Bonecas,
Retrosaria Arqui Chique, Franjarte, Retrosaria Bijou, Marques e
Sequeira, Barbearia Oliveira, Primeira Casa das Bandeiras, A. Molder
Filatelia, Ginjinha sem Rival e Eduardino.
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