Por
mares nunca dantes navegados
MANUEL CARVALHO
26/06/2016 – PÚBLICO
Mário
Centeno fez ao de leve uma crítica a Maria Luís ao dizer que, sim,
o Tesouro tem os cofres cheios, mas agravou-se o risco de alteração
da percepção de segurança da dívida portuguesa.
1. O mundo mudou
nesta sexta-feira. Aconteça o que acontecer a seguir, depois do
“Brexit” nada será como antes. Luis Villalobos lamentava, num
texto de opinião aqui no PÚBLICO, que “Portugal dispensava mais
más notícias”, mas a vida é o que é e há que encarar a saída
do Reino Unido da União Europeia com inevitável ansiedade e
obrigatória prudência. Podemos não saber ou sequer imaginar o que
vai acontecer nos próximos meses ou anos, mas temos todos
ingredientes à mão para perceber que não escaparemos à borrasca
que se adivinha. O desafio é tão grande que por instantes as
notícias sobre a execução orçamental no primeiro trimestre ou a
consumação de um dos maiores crimes que os portugueses cometeram
contra si próprios, o enchimento da barragem de Foz Tua, até
parecem irrelevantes. Os estilhaços desta semana vão-nos acompanhar
durante muitos anos e tudo o que pudermos fazer para prevenir as suas
consequências vai revelar não apenas a nossa sensatez colectiva,
mas também a nossa maturidade enquanto nação.
Sem o Reino Unido, a
Europa perderá o essencial da sua feição atlântica e tornar-se-á
ainda mais um projecto centrado na Alemanha, no centro e no leste. A
nossa periferia acentuar-se-á e o desejo velado dos que defendem uma
poda dos extremos mais pobres da Europa tenderá a ganhar peso.
Portugal deixa de ter ao lado em Bruxelas o seu mais velho aliado e,
mesmo que a memória só nos valha como exemplo, é impossível não
encarar a perda de uma voz contra a corrente como um reforço do
nosso isolamento e da nossa irrelevância. Mais grave ainda é que
estas conjecturas têm por base a preservação do actual projecto
europeu. Ora nada nos garante que a Europa como a conhecemos, com os
seus defeitos, as suas hesitações e os seus limites, continue a
existir. A História da Europa voltou a acelerar para parte incerta.
A extrema-direita ganha terreno e já se fala em referendos em cinco
países para testar a sua fidelidade à União. Todas as nossas
certezas dos últimos 30 ou 40 anos estão em causa.
É aqui que tem de
entrar o cenário mais terrível e angustioso de todos: o que será
de Portugal nesta Europa em convulsão ou, num cenário extremo, num
quadro pós-europeu? O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi talvez
o político português no activo a entender a profundidade e o
alcance destas incertezas. Ao convocar um Conselho do Estado, que
decorrerá no dia 11 de Julho, para debater "a situação
política internacional e suas incidências em Portugal", o
Presidente deixa no ar o aviso implícito que é preciso antecipar os
problemas. No curto prazo, há mais de 200 mil portugueses a viver no
Reino Unido e a extinção da cidadania europeia e uma mais do que
provável mudança das leis de imigração e de residência podem
causar problemas a muitos; o Reino Unido é o nosso quarto maior
cliente externo (para lá de uma das principais fontes emissoras de
turistas); a criação de barreiras alfandegárias vai perturbar e,
eventualmente, esvaziar esse importante destino das exportações
nacionais.
Mais grave ainda, o
“Brexit” voltou a desenterrar os pavores dos mercados da dívida.
Mário Centeno fez ao de leve uma carícia a Maria Luis Albuquerque a
dizer que, sim, o Tesouro tem os cofres cheios, mas o risco de uma
alteração na percepção de segurança da dívida portuguesa, que
faça subir as taxas de juro ou limite o acesso ao financiamento
externo, agravou-se. Mais do que nunca, Portugal tem absoluta
necessidade de ser capaz de viver com o que a economia produz. Mais
do que nunca, o défice e a dívida são os tormentos com os quais
não pode haver tolerância. O clima de incerteza que se adensou
neste final de semana obriga-nos a ter ainda mais cautela. Pedir e
obter ajuda externa, como em 2011, vai tornar-se mais difícil, senão
mesmo impossível. Olhando para o estado de ânimo das opiniões
públicas, não parece possível que os governos da Alemanha, da
Áustria ou da Holanda tenham meios para autorizar um novo recurso de
Portugal ao Mecanismo Europeu de Estabilidade.
Ao contrário dos
hábitos dos últimos 40 anos, o país e o Governo vão ter de
começar a trabalhar sobre cenários hostis. O de uma Europa
polarizada pela Alemanha e concentrada em cinco ou seis países
fortes do Norte da Europa. O do fim da Europa e do regresso das
fronteiras, das moedas, das rivalidades nacionalistas e dos fantasmas
que sempre as povoaram. Há dois anos, José Manuel Félix Ribeiro
avisava uma plateia reunida no Centro Regional do Porto da
Universidade Católica que a Europa era como um barco a atravessar
uma zona de icebergues, pelo que, por cautela, o melhor mesmo era
estarmos próximos dos botes salva-vidas. Se esse aviso feito há tão
pouco tempo podia parecer para muitos uma extravagância, hoje ele
faz todo o sentido. Há forças descontroladas à solta, que não
podemos prever e ainda menos controlar. O melhor mesmo é
prepararmo-nos para as suas consequências.
Mas, ao fazê-lo,
não podemos dar de barato que a Europa é um caso perdido, uma
batalha que já não faz sentido travar. Pelo contrário. Neste como
nos grandes momentos, haverá um directório a organizar o despacho e
a traçar directivas – a Alemanha já tratou de o constituir. Mas o
Portugal europeísta, o que recusa o isolamento, que quer ser
moderno, livre e democrático não pode subscrever o catastrofismo
satisfeito exibido por alguns dos representantes do Bloco de Esquerda
ou do PCP em relação ao referendo britânico. A Europa que se
deslaça exige cuidados internos, mas merece empenho e combate, mesmo
que esse seja um combate incerto.
2. Entre tantas
propostas e contrapropostas, auditorias e auditorias forenses,
comissões parlamentares de inquérito, pareceres e outros
expedientes é difícil perceber ao certo o que quer o complexo
partidário para a Caixa Geral de Depósitos. É difícil, mas não é
impossível. Porque lendo com atenção o que cada um dos lados da
barricada andou a dizer torna-se evidente que todos pensaram mais na
sua pele do que no futuro da Caixa ou do país. Principalmente o PSD,
logo acolitado pelo CDS, que tentaram encontrar numa comissão de
inquérito o bálsamo retemperador para a sua triste forma de vida.
É bom que se saiba
o que se passou na Caixa, mas não é preciso que se procure a
verdade nas vísceras de um organismo que continua vivo. Uma coisa é
discutir em público as supostas patranhas do senhor Salgado, as
provadas malfeitorias no BPN ou o laxismo e a incompetência levadas
ao zénite no caso do Banif; outra é adoptar o mesmo tipo de
princípios para a Caixa. Pode-se autopsiar um organismo morto; deve
evitar-se fazê-lo num banco que está em actividade e que precisa de
estabilidade e de credibilidade para superar os seus problemas. É
por isso que, ou a CPI imposta pelo PSD pega nos assuntos pela rama e
não vai a lado nenhum, ou espreme a questão e faz emergir ao mesmo
tempo o pus da infecção e sigilos bancários que abalarão a
confiança que um banco requer. É bom que se apure tudo o que se
passou e que se puna que deva ser punido. Mas, para chegar a estas
conclusões, não é necessário lavar toda a roupa suja em público.
Uma auditoria, ou, como propõe com mérito o Bloco, uma auditoria
forense, é um caminho muito mais eficaz e discreto para se lá
chegar.
Sem comentários:
Enviar um comentário