A Europa só tem
interesse em facilitar a vida ao Reino Unido
TERESA DE SOUSA
29/06/2016 – PÚBLICO
Merkel avisou
Londres que não pode escolher a seu gosto o que quer e o que não
quer das políticas da União Europeia. Mas conseguiu travar o
revanchismo das reacções iniciais, para uma saída amigável e não
conflituosa.
1. Deve ter sido um
jantar triste, como disse o primeiro-ministro britânico já
demissionário. Fora dos holofotes, os líderes europeus seriam
loucos ou completamente inconscientes se o ambiente tivesse sido
outro. Não foi. E o primeiro sinal de que alguma serenidade caiu
sobre as suas cabeças está visível na declaração final dos 27,
na qual é dado a Londres o tempo necessário para deixar assentar a
poeira, antes de accionar o artigo 50º e iniciar as negociações
para uma saída amigável e não conflituosa.
Merkel acabou por
ganhar essa batalha sobre os mais apressados, retirando uma
indisfarçável carga de revanchismo presente nas reacções
iniciais. Mas a chanceler foi avisando que o Reino Unido não pode
escolher a seu gosto o que quer e o que não quer das políticas da
União Europeia, o que também é razoável. Uma das principais
reivindicações de Londres é negociar o acesso ao mercado interno
sem ter de aceitar a livre circulação de pessoas. O líder
britânico disse aos seus pares que o ponto fulcral para o Brexit foi
a entrada em massa de cidadãos europeus, mesmo com o mecanismo de
“travagem de emergência” que negociou antes do referendo.
A declaração dos
27 deixa essa questão resolvida, pelo menos por enquanto: o acesso
ao mercado interno implica aceitar as quatro liberdades. O mais
provável modelo para as negociações deve ser o norueguês. O Reino
Unido passa a fazer parte do Espaço Económico Europeu (uma espécie
de sucessor da EFTA), terá livre acesso ao mercado interno, pagará
para os cofres de Bruxelas de acordo com a sua própria riqueza, e
não poderá colocar qualquer limite à livre circulação de
pessoas. E, evidentemente, não estará sentado à mesa quando os
governos europeus decidirem as regras do jogo.
Falta ainda saber
quem será o novo líder dos conservadores: Boris Johnson, o rosto do
"Brexit", ou Theresa May, herdeira de Cameron. Da escolha
dependerá provavelmente uma negociação mais ou menos cooperante.
Ainda é cedo para saber quando e como estabilizará a cena política
britânica, depois do tiro de canhão que a atingiu no peito. Por
enquanto, e por causa da Europa (é sempre por causa da Europa), os
dois grandes partidos estão em profunda crise de liderança, de cuja
resolução dependerão também as negociações com Bruxelas. Os
britânicos vão ter de fazer escolhas muito difíceis, a partir do
momento em que romperam com uma opção estratégica de 40 anos e
quando o mundo está ele próprio em profunda convulsão.
2. A Europa vai ter
igualmente de se adaptar, ao perder um dos seus membros mais
poderosos. E, de preferência, tirar as devidas lições para si
própria. Ontem, na declaração que aprovaram no final da reunião a
27, os líderes prometeram aos europeus prestar mais atenção às
suas preocupações. Destacaram a dimensão de segurança, por causa
do terrorismo. Não falaram na Defesa. A preocupação com o
crescimento e o emprego, que não constava no draft inicial, acabou
por ser incluída, o que é uma pequena vitória dos que defendem que
é preciso devolver aos europeus uma perspectiva de futuro que não
se resuma à austeridade. Estão marcadas várias reuniões para
reflexão. Não será fácil encontrar um caminho comum.
3. Quando David
Cameron regressava a Londres, aterrava em Bruxelas a
primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, para um encontro com
Jean-Claude Juncker sobre as eventuais relações da Escócia
(independente?) com a União. Um encontro com o presidente do
Conselho Europeu já tinha sido excluído. Mas o presidente da
Comissão decidiu que “a Escócia ganhou o direito de ser ouvida”.
Não foi uma decisão muito avisada e é um bom exemplo daquilo que
não deve ser feito. A Escócia é parte do Reino Unido. O interesse
europeu é manter uma boa relação com um país suficientemente
forte para acrescentar o seu peso na cena internacional ao da União
Europeia. O mínimo que se pode dizer é que contribuir para a sua
desagregação não é uma decisão sensata, para não dizer
legítima. Tudo o que a Europa não precisa é alimentar os
movimentos independentistas ou nacionalistas. Basta pensar na
Catalunha.
4. É também
urgente que os governos e as instituições europeias percebam que o
"Brexit" não é uma excepção à regra. Os problemas que
levaram a uma votação a favor da saída já são hoje comuns à
maioria dos países europeus. Outros países podem cair num impasse
idêntico. Ignorar o crescente alheamento dos cidadãos europeus em
relação à Europa, que vêem como uma realidade cada vez mais
distante que interfere nas suas vidas sem lhes ser perguntado o que
pensam, é alimentar o populismo em todas as suas formas. “O
resultado do referendo britânico, deve ser visto não como uma
anomalia mas como uma parte de um forte tendência da revolta popular
contra as elites que está a afirmar-se em toda a Europa”, escreve
Jeremy Shapiro do European Council on Foreign Relations.
4. O choque do
"Brexit" foi tão grande que a imprensa britânica continua
a falar de um recuo qualquer que acabe por impedir a saída. Na
terça-feira, o colunista do Financial Times Gideon Rachman,
insistindo em que a saída ainda pode ser evitada, dava o exemplo da
Dinamarca e da Irlanda, que tiveram de fazer dois referendos para
aprovar os dois últimos tratados. Parece um salto demasiado grande
para um país que preza a sua velha democracia como algo que faz
parte do seu mais profundo ADN. Mas Rachman não é o único imaginar
uma solução que acabe com o que pensa ser um pesadelo. Citado pelo
mesmo jornal, um diplomata britânico diz que, em última análise, o
"Brexit" "não acontecerá”.
Simon Tilford, no
site da Carnegie Europe, responde à mesma pergunta: “Talvez, mas
só pode acontecer depois de uma estadia no Espaço Económico
Europeu”. A França terá eleições presidenciais na próxima
Primavera. A Alemanha em Setembro. Até às eleições, e sabendo o
que divide Paris e Berlim, não se espera nada a não ser, citando um
diplomata francês, “uma ilusão credível de movimento”. Só
resta uma separação que seja boa para as duas partes. “A Europa
não deve tratar o Reino Unido como um foragido mas como um
compatriota”, escrevia ontem Henry Kissinger no Wall Street
Journal. Ontem, os líderes evitaram o pior: não afrontaram o Reino
Unido e abriram as portas para uma solução que possa servir aos
dois lados. Já não foi mau.
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