sábado, 10 de agosto de 2019

O destino da Amazónia nas mãos de Bolsonaro faz tremer o planeta



O destino da Amazónia nas mãos de Bolsonaro faz tremer o planeta

Sem precisar de aprovar leis, o Presidente tem permitido que a destruição da floresta tropical regresse a máximos históricos. A Amazónia está muito próxima de vergar.

João Ruela Ribeiro 9 de Agosto de 2019, 20:45

A Amazónia está a morrer. A maior floresta tropical do planeta está perto de deixar de existir como a conhecemos. As árvores frondosas e exuberantes serão substituídas por capim, uma vegetação rasteira facilmente inflamável, e as chuvas darão lugar a períodos de seca mais extensos. A biodiversidade única da região ficará impreterivelmente mais pobre, e os povos que aqui têm a sua casa e modo de vida serão expulsos.

É difícil encontrar adjectivos que não pequem por defeito para definir a importância da Amazónia para o planeta. “A Humanidade precisa da Amazónia e da floresta amazónica de pé”, diz ao PÚBLICO, pelo Skype, o investigador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazónia (IPAM), Paulo Moutinho. A sua existência é condição indispensável para que o aquecimento global possa ser mitigado. Mas as condições únicas da floresta tropical também são fundamentais para a regulação do clima na América do Sul.

E, no entanto, há muito tempo que a Amazónia está sob ataque. Calcula-se que tenha perdido em três décadas cerca de 20% da sua área florestal original – o equivalente a oito vezes o território de Portugal. A história da sua preservação reflecte o percurso recente do Brasil, quase como se os ritmos biológicos daquele “oceano verde”, como descreveu Moutinho, pressentissem as mudanças na sociedade da qual também faz parte. Como tal, os tempos tornaram-se ainda mais conturbados para a Amazónia desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência do país.

Como sempre desde que Bolsonaro chegou ao poder, tudo começou com uma polémica. O mundo concentrou as suas atenções na floresta amazónica nas últimas semanas, quando o Presidente brasileiro disse que os dados sobre desflorestação na Amazónia eram “mentirosos”. O caso subiu de intensidade e o director do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Ricardo Galvão, foi afastado do cargo. A voz incómoda de Galvão saiu de cena, mas os dados continuam a mostrar uma tendência de aumento da área desflorestada na Amazónia – e o mundo ficou alarmado.

Na revista britânica Economist, Bolsonaro é apresentado como o “chefe de Estado ambientalmente mais perigoso do mundo”, enquanto o jornal Guardian pedia, em editorial, “medidas firmes” às autoridades europeias para pressionarem o Brasil a proteger a Amazónia. Num artigo na Foreign Policy, um especialista em Relações Internacionais chegou mesmo a reflectir sobre a “obrigação de os Estados intervirem num país estrangeiro para impedi-lo de causar danos irreversíveis e possivelmente catastróficos ao ambiente”.

Limite perigoso
Há muito tempo que se estuda até onde é que a floresta amazónica pode resistir aos avanços da desflorestação. Tradicionalmente os cientistas punham a fasquia em 40% da área florestal total da Amazónia, mas estudos mais recentes apontam para um limiar mais baixo, em torno dos 25, o que faz com que a situação actual se aproxime perigosamente desse ponto irreversível.

Assim que se atingir esse nível de desflorestação, “a floresta deixa de funcionar como uma bomba de água”, explica Moutinho. A floresta tropical amazónica tem a capacidade única de reciclar a água das chuvas, transportando-as pela mancha florestal através de um fenómeno conhecido como “rios voadores” da costa atlântica até à cordilheira dos Andes e à bacia do rio da Prata, no sul do continente. “Estamos a furar essa bomba de água que distribui humidade por toda a América do Sul”, observa o cientista.

O fim desse ciclo auto-sustentável irá ditar a destruição do que resta da floresta, que deixa de contar com as preciosas chuvas e a humidade que a alimentam. E aí, é o mundo que passa a ter um problema grave. Paulo Moutinho compara a Amazónia a um “grande armazém de carbono”. “O desmatamento e a queimada das florestas transformam esse carbono aprisionado nas árvores em dióxido de carbono”, o principal gás com efeito de estufa. Esta gigantesca injecção de dióxido de carbono seria o equivalente a um ano de emissões do planeta inteiro, calcula o cientista do IPAM. Ou seja, a meta prevista pelo Acordo de Paris – limitar a subida média da temperatura mundial a 2ºC acima dos níveis pré-industrialização – seria praticamente impossível de cumprir.

O ponto de não retorno da desflorestação amazónica continua a ser objecto de debate científico, mas há um aspecto em que há convergência: a destruição florestal deve ser contida. “Pela razão sensata de que não faz sentido descobrir o limiar preciso de não retorno atravessando-o”, avisavam os investigadores Thomas Lovejoy e Carlos Nobre, num artigo publicado no início do ano passado na revista Science Advances.
Hoje, algumas áreas da Amazónia já funcionam como uma janela para esse futuro de pesadelo ambiental. Paulo Moutinho identifica uma “alteração drástica do regime de chuvas” nas zonas desmatadas, onde chove mais tarde e num volume menor do que o que era usual. “Isso afecta bastante a produção de alimentos na região”, observa.

Floresta fora-da-lei
A destruição da floresta amazónica é feita por motivos diferentes, mas têm em comum uma forte componente predatória e uma natureza sobretudo ilegal. O fenómeno conhecido localmente como “grilagem” explica grande parte da desflorestação. Quando alguém se quer apropriar de terras – geralmente para as vender a preços especulativos – costuma falsificar títulos de propriedade e para lhes dar um aspecto envelhecido guarda os pretensos documentos em caixas com grilos que roem e amarelecem o papel.

A pastagem extensiva é outra das razões da desflorestação. Um dos problemas, explica Paulo Moutinho, é que muitas das áreas usadas para a pecuária têm uma densidade muito reduzida, aproveitando muito pouco o espaço. “Há menos de uma cabeça [de gado] por hectare, o que faz com que seja preciso manter uma grande área e um desmatamento elevado.”


Finalmente, o investimento em infraestruturas, especialmente estradas, relaciona-se intimamente com a destruição da floresta. Estima-se que mais de 70% da desflorestação ocorra numa faixa de 50 km em torno das auto-estradas amazónicas.

A desflorestação foi um problema que acompanhou todo o percurso da redemocratização brasileira, sem que nunca tivesse sido erradicado. Mas o seu crescimento está relacionado com a menor ou maior vitalidade e capacidade de influência política do sector agro-pecuário. Ou seja, há mais árvores derrubadas na Amazónia quanto mais numerosa é a chamada “bancada ruralista” no Congresso Nacional.

O coordenador de comunicação do Observatório do Clima, Claudio Ângelo, descreve um sector com “muito poder” que se destaca na luta “pela desregulamentação ampla e irrestrita”. “É um grupo que não admite uma série de provisões da Constituição de 1988, que estabelece que a propriedade rural tem uma função social, e precisa de ser regulada. No entender desse sector, estas normas limitam o direito de propriedade no Brasil”, explica o ambientalista, numa entrevista ao PÚBLICO por Skype.

Quando os primeiros picos de desflorestação são detectados, nos anos 1990, o Governo de Fernando Henrique Cardoso decidiu criar várias áreas protegidas na Amazónia, incluindo reservas indígenas. A par disso, a fiscalização através do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também se intensificou. Com Lula da Silva, a desflorestação sofreu uma forte queda a partir da moratória da soja, de 2006, que reuniu os principais produtores num compromisso de não comercializar soja plantada em zonas desmatadas da Amazónia.

O segundo mandato de Dilma Rousseff apresentou aos “ruralistas” uma rara oportunidade. “O Governo da Dilma era politicamente mais fraco que o do Lula, e eles conseguiram alterar o Código Florestal. É a partir daí que o desmatamento começa a subir de novo”, conta Ângelo.

O anti-ministério
Eis que entra com estrondo no Palácio do Planalto o capitão reformado Jair Messias Bolsonaro que escolhe os “xiitas” do ambiente, como se costuma referir aos ecologistas, como um dos seus muitos inimigos. “Bolsonaro é o primeiro Presidente da história desde a redemocratização a ser activamente oposto a tudo o que é agenda ambiental, e é assim por ideologia, não é apenas por uma questão de sobrevivência política ou pela aliança com os ruralistas”, diz Claudio Ângelo. Inicialmente, Bolsonaro queria extinguir o Ministério do Meio Ambiente, mas ironicamente foi impelido a mantê-lo por parte do lobby do agro-negócio, que temia as repercussões externas para a imagem dos seus produtos.

Acabou por nomear o advogado Ricardo Salles, que pisou pela primeira vez a Amazónia aos 44 anos, já depois de estar no cargo. Apesar de não ter acabado com o ministério, Bolsonaro tornou-o ineficaz e praticamente inexistente. Em Maio, os oito antecessores de Salles no Meio Ambiente juntaram-se para subscrever uma carta em que criticavam a “política sistemática, constante e deliberada de desconstrução e destruição das políticas ambientais”.

Uma das dimensões mais preocupantes da inacção governamental é a ausência de fiscalização. As operações do Ibama caíram a pique desde o início do ano – apesar de terem recebido uma média diária de quase 30 alertas por dia do INPE, o Ibama passou apenas seis multas diárias, segundo a Folha de São Paulo. Os 27 superintendentes estaduais do Ibama foram demitidos e a maioria ainda não foi nomeada, incluindo nos estados da Amazónia. Desde o início do ano, a força de elite do instituto fiscalizador não foi mobilizada uma única vez para operações na Amazónia.

A falta de fiscalização convida à impunidade, mas um sinal mais forte ainda de que a corrida ao desmatamento começou tem sido dado pelo próprio Presidente. São frequentes as declarações de Bolsonaro a desautorizar os organismos ambientais, como o Ibama, que apelida de “indústria da multa”. Numa das intervenções mais polémicas, Bolsonaro criticou uma operação em que os fiscais tinham incendiado os veículos e máquinas usadas por invasores de terrenos protegidos na Amazónia – uma medida de dissuasão máxima prevista pela lei.

Claudio Ângelo diz que ao incentivar a desflorestação, Bolsonaro está a cometer um “crime de responsabilidade”. “O desmatamento sobe porque o Governo federal dá sinalizações políticas para os sectores produtivos e para o crime ambiental de que tudo será perdoado daqui por diante”, denuncia o ambientalista.

O Governo de Bolsonaro tem sido caracterizado por uma ineficácia gritante em fazer progredir a sua agenda legislativa, mas no que respeita à destruição da floresta amazónica, a aprovação de leis nem sempre é o mais decisivo. “Na Amazónia, frequentemente, o sinal dado pelos agentes públicos é mais importante do que o que está na letra da lei. Estamos a falar de quase cinco milhões de quilómetros quadrados com uma presença baixíssima do Estado”, explica o coordenador do Observatório do Clima.

O fim do consenso
Durante anos, a defesa da Amazónia mereceu um consenso na sociedade brasileira e mesmo hoje os estudos de opinião continuam a mostrar que as alterações climáticas são um dos temas que mais preocupa os brasileiros. Claudio Ângelo considera que “a sociedade brasileira não quer o desmatamento da Amazónia”, mas a polarização política que se abateu sobre o país nos últimos cinco anos desfez todos os consensos. “Esse sentimento nobre do brasileiro está um pouco sufocado”, lamenta o ecologista.

Entre um Governo que olha para a floresta como um entrave ao desenvolvimento económico e desconfia das alterações climáticas, e uma sociedade embrenhada nas lutas partidarizadas, à Amazónia parecem restar poucas soluções. A réstia de esperança parece estar nas mãos de uma desejável indignação à escala global que redunde em cooperação. “É uma necessidade global manter a floresta de pé”, diz o investigador Paulo Moutinho. “A questão é que existe um custo grande para manter de pé esta floresta e, portanto, precisamos de avançar com mecanismos financeiros em larga escala para trazer valor à floresta.” Um falhanço neste desígnio irá decretar uma certidão de óbito à Amazónia, à sua biodiversidade, às suas chuvas, e aos seus povos. As próximas gerações de brasileiros – e de seres humanos, em geral – dependem disso.

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