O destino da
Amazónia nas mãos de Bolsonaro faz tremer o planeta
Sem precisar de
aprovar leis, o Presidente tem permitido que a destruição da floresta tropical
regresse a máximos históricos. A Amazónia está muito próxima de vergar.
João Ruela
Ribeiro 9 de Agosto de 2019, 20:45
A Amazónia está a
morrer. A maior floresta tropical do planeta está perto de deixar de existir
como a conhecemos. As árvores frondosas e exuberantes serão substituídas por
capim, uma vegetação rasteira facilmente inflamável, e as chuvas darão lugar a
períodos de seca mais extensos. A biodiversidade única da região ficará
impreterivelmente mais pobre, e os povos que aqui têm a sua casa e modo de vida
serão expulsos.
É difícil
encontrar adjectivos que não pequem por defeito para definir a importância da
Amazónia para o planeta. “A Humanidade precisa da Amazónia e da floresta
amazónica de pé”, diz ao PÚBLICO, pelo Skype, o investigador do Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazónia (IPAM), Paulo Moutinho. A sua existência é
condição indispensável para que o aquecimento global possa ser mitigado. Mas as
condições únicas da floresta tropical também são fundamentais para a regulação
do clima na América do Sul.
E, no entanto, há
muito tempo que a Amazónia está sob ataque. Calcula-se que tenha perdido em
três décadas cerca de 20% da sua área florestal original – o equivalente a oito
vezes o território de Portugal. A história da sua preservação reflecte o
percurso recente do Brasil, quase como se os ritmos biológicos daquele “oceano
verde”, como descreveu Moutinho, pressentissem as mudanças na sociedade da qual
também faz parte. Como tal, os tempos tornaram-se ainda mais conturbados para a
Amazónia desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência do país.
Como sempre desde
que Bolsonaro chegou ao poder, tudo começou com uma polémica. O mundo
concentrou as suas atenções na floresta amazónica nas últimas semanas, quando o
Presidente brasileiro disse que os dados sobre desflorestação na Amazónia eram
“mentirosos”. O caso subiu de intensidade e o director do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (INPE), Ricardo Galvão, foi afastado do cargo. A voz
incómoda de Galvão saiu de cena, mas os dados continuam a mostrar uma tendência
de aumento da área desflorestada na Amazónia – e o mundo ficou alarmado.
Na revista
britânica Economist, Bolsonaro é apresentado como o “chefe de Estado
ambientalmente mais perigoso do mundo”, enquanto o jornal Guardian pedia, em
editorial, “medidas firmes” às autoridades europeias para pressionarem o Brasil
a proteger a Amazónia. Num artigo na Foreign Policy, um especialista em
Relações Internacionais chegou mesmo a reflectir sobre a “obrigação de os
Estados intervirem num país estrangeiro para impedi-lo de causar danos
irreversíveis e possivelmente catastróficos ao ambiente”.
Limite perigoso
Há muito tempo
que se estuda até onde é que a floresta amazónica pode resistir aos avanços da
desflorestação. Tradicionalmente os cientistas punham a fasquia em 40% da área
florestal total da Amazónia, mas estudos mais recentes apontam para um limiar
mais baixo, em torno dos 25, o que faz com que a situação actual se aproxime
perigosamente desse ponto irreversível.
Assim que se
atingir esse nível de desflorestação, “a floresta deixa de funcionar como uma
bomba de água”, explica Moutinho. A floresta tropical amazónica tem a
capacidade única de reciclar a água das chuvas, transportando-as pela mancha
florestal através de um fenómeno conhecido como “rios voadores” da costa atlântica
até à cordilheira dos Andes e à bacia do rio da Prata, no sul do continente.
“Estamos a furar essa bomba de água que distribui humidade por toda a América
do Sul”, observa o cientista.
O fim desse ciclo
auto-sustentável irá ditar a destruição do que resta da floresta, que deixa de
contar com as preciosas chuvas e a humidade que a alimentam. E aí, é o mundo
que passa a ter um problema grave. Paulo Moutinho compara a Amazónia a um
“grande armazém de carbono”. “O desmatamento e a queimada das florestas transformam
esse carbono aprisionado nas árvores em dióxido de carbono”, o principal gás
com efeito de estufa. Esta gigantesca injecção de dióxido de carbono seria o
equivalente a um ano de emissões do planeta inteiro, calcula o cientista do
IPAM. Ou seja, a meta prevista pelo Acordo de Paris – limitar a subida média da
temperatura mundial a 2ºC acima dos níveis pré-industrialização – seria
praticamente impossível de cumprir.
O ponto de não
retorno da desflorestação amazónica continua a ser objecto de debate científico,
mas há um aspecto em que há convergência: a destruição florestal deve ser
contida. “Pela razão sensata de que não faz sentido descobrir o limiar preciso
de não retorno atravessando-o”, avisavam os investigadores Thomas Lovejoy e
Carlos Nobre, num artigo publicado no início do ano passado na revista Science
Advances.
Hoje, algumas
áreas da Amazónia já funcionam como uma janela para esse futuro de pesadelo
ambiental. Paulo Moutinho identifica uma “alteração drástica do regime de
chuvas” nas zonas desmatadas, onde chove mais tarde e num volume menor do que o
que era usual. “Isso afecta bastante a produção de alimentos na região”,
observa.
Floresta
fora-da-lei
A destruição da
floresta amazónica é feita por motivos diferentes, mas têm em comum uma forte
componente predatória e uma natureza sobretudo ilegal. O fenómeno conhecido
localmente como “grilagem” explica grande parte da desflorestação. Quando
alguém se quer apropriar de terras – geralmente para as vender a preços
especulativos – costuma falsificar títulos de propriedade e para lhes dar um
aspecto envelhecido guarda os pretensos documentos em caixas com grilos que
roem e amarelecem o papel.
A pastagem
extensiva é outra das razões da desflorestação. Um dos problemas, explica Paulo
Moutinho, é que muitas das áreas usadas para a pecuária têm uma densidade muito
reduzida, aproveitando muito pouco o espaço. “Há menos de uma cabeça [de gado]
por hectare, o que faz com que seja preciso manter uma grande área e um
desmatamento elevado.”
Finalmente, o
investimento em infraestruturas, especialmente estradas, relaciona-se
intimamente com a destruição da floresta. Estima-se que mais de 70% da
desflorestação ocorra numa faixa de 50 km em torno das auto-estradas
amazónicas.
A desflorestação
foi um problema que acompanhou todo o percurso da redemocratização brasileira,
sem que nunca tivesse sido erradicado. Mas o seu crescimento está relacionado
com a menor ou maior vitalidade e capacidade de influência política do sector
agro-pecuário. Ou seja, há mais árvores derrubadas na Amazónia quanto mais numerosa
é a chamada “bancada ruralista” no Congresso Nacional.
O coordenador de
comunicação do Observatório do Clima, Claudio Ângelo, descreve um sector com
“muito poder” que se destaca na luta “pela desregulamentação ampla e
irrestrita”. “É um grupo que não admite uma série de provisões da Constituição
de 1988, que estabelece que a propriedade rural tem uma função social, e
precisa de ser regulada. No entender desse sector, estas normas limitam o
direito de propriedade no Brasil”, explica o ambientalista, numa entrevista ao
PÚBLICO por Skype.
Quando os
primeiros picos de desflorestação são detectados, nos anos 1990, o Governo de
Fernando Henrique Cardoso decidiu criar várias áreas protegidas na Amazónia,
incluindo reservas indígenas. A par disso, a fiscalização através do Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também
se intensificou. Com Lula da Silva, a desflorestação sofreu uma forte queda a
partir da moratória da soja, de 2006, que reuniu os principais produtores num
compromisso de não comercializar soja plantada em zonas desmatadas da Amazónia.
O segundo mandato
de Dilma Rousseff apresentou aos “ruralistas” uma rara oportunidade. “O Governo
da Dilma era politicamente mais fraco que o do Lula, e eles conseguiram alterar
o Código Florestal. É a partir daí que o desmatamento começa a subir de novo”,
conta Ângelo.
O anti-ministério
Eis que entra com
estrondo no Palácio do Planalto o capitão reformado Jair Messias Bolsonaro que
escolhe os “xiitas” do ambiente, como se costuma referir aos ecologistas, como
um dos seus muitos inimigos. “Bolsonaro é o primeiro Presidente da história
desde a redemocratização a ser activamente oposto a tudo o que é agenda
ambiental, e é assim por ideologia, não é apenas por uma questão de
sobrevivência política ou pela aliança com os ruralistas”, diz Claudio Ângelo.
Inicialmente, Bolsonaro queria extinguir o Ministério do Meio Ambiente, mas
ironicamente foi impelido a mantê-lo por parte do lobby do agro-negócio, que
temia as repercussões externas para a imagem dos seus produtos.
Acabou por nomear
o advogado Ricardo Salles, que pisou pela primeira vez a Amazónia aos 44 anos,
já depois de estar no cargo. Apesar de não ter acabado com o ministério,
Bolsonaro tornou-o ineficaz e praticamente inexistente. Em Maio, os oito
antecessores de Salles no Meio Ambiente juntaram-se para subscrever uma carta
em que criticavam a “política sistemática, constante e deliberada de
desconstrução e destruição das políticas ambientais”.
Uma das dimensões
mais preocupantes da inacção governamental é a ausência de fiscalização. As
operações do Ibama caíram a pique desde o início do ano – apesar de terem
recebido uma média diária de quase 30 alertas por dia do INPE, o Ibama passou
apenas seis multas diárias, segundo a Folha de São Paulo. Os 27
superintendentes estaduais do Ibama foram demitidos e a maioria ainda não foi
nomeada, incluindo nos estados da Amazónia. Desde o início do ano, a força de
elite do instituto fiscalizador não foi mobilizada uma única vez para operações
na Amazónia.
A falta de
fiscalização convida à impunidade, mas um sinal mais forte ainda de que a
corrida ao desmatamento começou tem sido dado pelo próprio Presidente. São
frequentes as declarações de Bolsonaro a desautorizar os organismos ambientais,
como o Ibama, que apelida de “indústria da multa”. Numa das intervenções mais
polémicas, Bolsonaro criticou uma operação em que os fiscais tinham incendiado
os veículos e máquinas usadas por invasores de terrenos protegidos na Amazónia
– uma medida de dissuasão máxima prevista pela lei.
Claudio Ângelo
diz que ao incentivar a desflorestação, Bolsonaro está a cometer um “crime de
responsabilidade”. “O desmatamento sobe porque o Governo federal dá
sinalizações políticas para os sectores produtivos e para o crime ambiental de
que tudo será perdoado daqui por diante”, denuncia o ambientalista.
O Governo de
Bolsonaro tem sido caracterizado por uma ineficácia gritante em fazer progredir
a sua agenda legislativa, mas no que respeita à destruição da floresta
amazónica, a aprovação de leis nem sempre é o mais decisivo. “Na Amazónia,
frequentemente, o sinal dado pelos agentes públicos é mais importante do que o
que está na letra da lei. Estamos a falar de quase cinco milhões de quilómetros
quadrados com uma presença baixíssima do Estado”, explica o coordenador do
Observatório do Clima.
O fim do consenso
Durante anos, a
defesa da Amazónia mereceu um consenso na sociedade brasileira e mesmo hoje os
estudos de opinião continuam a mostrar que as alterações climáticas são um dos
temas que mais preocupa os brasileiros. Claudio Ângelo considera que “a
sociedade brasileira não quer o desmatamento da Amazónia”, mas a polarização
política que se abateu sobre o país nos últimos cinco anos desfez todos os
consensos. “Esse sentimento nobre do brasileiro está um pouco sufocado”,
lamenta o ecologista.
Entre um Governo
que olha para a floresta como um entrave ao desenvolvimento económico e
desconfia das alterações climáticas, e uma sociedade embrenhada nas lutas
partidarizadas, à Amazónia parecem restar poucas soluções. A réstia de
esperança parece estar nas mãos de uma desejável indignação à escala global que
redunde em cooperação. “É uma necessidade global manter a floresta de pé”, diz
o investigador Paulo Moutinho. “A questão é que existe um custo grande para
manter de pé esta floresta e, portanto, precisamos de avançar com mecanismos
financeiros em larga escala para trazer valor à floresta.” Um falhanço neste
desígnio irá decretar uma certidão de óbito à Amazónia, à sua biodiversidade,
às suas chuvas, e aos seus povos. As próximas gerações de brasileiros – e de
seres humanos, em geral – dependem disso.
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