António Barreto
OPINIÃO
As quotas
A correcção da
injustiça não se faz com a criação de uma nova injustiça, nem com a destruição
de um valor, o da ciência e da cultura.
4 de Agosto de
2019, 7:10
Em 1960, o corpo
docente do Ensino Superior era essencialmente composto por homens. As mulheres
eram 11% do total. Hoje, as mulheres representam 45%. Dentro de pouco tempo,
serão maioritárias.
Em 1960, as
mulheres eram 29% do total de estudantes no Ensino Superior. Agora são 54%.
Em 1960, as
mulheres eram 24% do total de licenciaturas obtidas nas universidades
portuguesas. Em 2018, as mulheres representaram cerca de 59% dos diplomados do
ensino superior.
Em 1970, os
doutoramentos defendidos por mulheres representaram cerca de 7% do total. São
hoje mais de 55%.
Actualmente, as
mulheres obtêm os seus diplomas de ensino superior em menos tempo do que os
homens.
Tudo isto se
obteve sem quotas nem qualquer outra forma de discriminação positiva.
Uns dirão que foi
o capitalismo, a fim de melhor explorar os trabalhadores. Há quem garanta que o
patronato foi obrigado a recorrer às mulheres, por causa da falta de homens.
Outros dizem que foram os homens que, assim, exploram as mulheres duas vezes,
em casa e no trabalho. Não falta quem diga que tudo isto se ficou a dever aos
homens e à democracia, unidos na promoção das mulheres. E podemos ainda contar
com os defensores das políticas educativas que conduziram a esta situação.
Também há quem assegure que tudo se deve aos movimentos feministas. São todas
excelentes explicações. Certo e seguro é que aqueles resultados se devem, não a
quotas, mas simplesmente ao trabalho das mulheres.
Quotas,
preferências e regimes ou concursos especiais para chegar ao ensino superior já
existem abundantemente. Residentes nos Açores e na Madeira, emigrantes
portugueses no estrangeiro, contratados e permanentes das Forças Armadas,
diplomatas no estrangeiro, bolseiros e funcionários a servir no estrangeiro,
cidadãos dos países africanos no quadro de acordos de cooperação, bolseiros dos
PALOP, funcionários estrangeiros de missões diplomáticas em Portugal, atletas
de alta competição, deficientes e naturais ou filhos de naturais de Timor-Leste
beneficiam de estatutos que lhes conferem facilidades, dispensa de notas mínimas
ou isenção de provas para ingressar nas Universidades. No total, cerca de 30%
dos candidatos são assim admitidos.
Discute-se agora
mais uma hipótese: a de criar quotas para as minorias africana e cigana. O
debate corre os seus trâmites, tendo já dado origem a polémica acesa no espaço
público. É uma infeliz via esta, a de aumentar o número de quotas e de regimes
especiais, de favor e de privilégio. Obrigar à admissão de minorias étnicas ou
de grupos raciais é uma das más invenções das fragmentadas sociedades
contemporâneas. Os avanços da cidadania democrática e da igualdade estão
constantemente a ser combatidos pelas tendências corporativas e cartelizadas
dos grupos políticos e de interesses que não hesitam em recorrer às vias do
despotismo legal para impor novas formas de apartheid multicultural. Verdade é
que a fragmentação racial sob qualquer forma é racista.
O caso da
“minoria africana” é particularmente sensível. Sobretudo porque dá origem aos
maiores mal-entendidos. Árabe, beduíno, berbere, mouro, bóer, branco e indiano
de vários países de África são africanos ou quê? E por que razão se deveria
criar quotas para africanos, de uma só ou de várias cores, e não para os
chineses, brasileiros, nepaleses, paquistaneses, ucranianos e outras minorias presentes
em Portugal?
É verdade que há
numerosos grupos de pessoas, com ou sem estigma racial, com desfavor familiar
ou social, sem meios económicos ou culturais, com muitas outras insuficiências
ou deficiências e que têm dificuldades em aceder aos bens imateriais, à
cultura, à educação, à formação profissional e a outras formas de promoção
pessoal. Conceder-lhes sistemas de favor, consagrados pela lei e traduzidos em
quotas de privilégio, é sempre um gesto de paternalismo indigno que desnatura o
essencial das instituições de ensino e formação. É enorme a injustiça que
reside na eliminação de umas centenas ou milhares de candidatos que reuniriam
as condições de admissão à universidade mas que são eliminados para poderem
entrar os dos regimes de favor em nome da bondade. Eliminar candidatos médios a
benefício de maus candidatos favorecidos pela etnia, pela profissão dos pais ou
pela região de origem é profundamente injusto, despótico, corporativo e
oportunista. Os fanáticos da engenharia social e política não se dão conta de
quanto são racistas.
Os grupos
desfavorecidos podem e devem ser apoiados por todos os meios existentes que não
ferem princípios fundamentais de justiça, de igualdade e de mérito. Mais úteis
do que as famigeradas quotas e do que a traiçoeira discriminação positiva são
os apoios, bolsas de estudo, incentivos, explicações, ajudas para alimentação e
alojamento oferecidos por fundações, misericórdias, cultos, associações,
autarquias e empresas. Assim se podem concretizar todos os apoios justos e
devidos a indivíduos e a comunidades regionais, religiosas, étnicas ou
nacionais!
A universidade
não é um direito de todos, é um mérito alcançado com trabalho e esforço. É algo
que se obtém com merecimento. É um bem raro e caro que deve ser valorizado por
quem o merece, por quem dele faz um instrumento de desenvolvimento pessoal, da
arte e do saber. A correcção das injustiças sociais que resultam da
desigualdade económica não deve ser feita através da destruição do que mais
importa numa instituição de ensino superior: o mérito que resulta do esforço. A
correcção da injustiça faz-se através do fornecimento de meios aos que querem
esforçar-se e lutar pelo saber e pela formação. A correcção da injustiça não se
faz com a criação de uma nova injustiça, nem com a destruição de um valor, o da
ciência e da cultura.
O debate sobre as
quotas no acesso ao ensino superior foi recentemente enriquecido por uma
proposta do CDS: os candidatos que, por falta de mérito e de nota, fossem
eliminados, poderiam comprar o seu lugar. Isto é, seriam equiparados a
estrangeiros que pagam elevadas propinas. O absurdo desta proposta é tal que
quase impede que seja discutida serenamente. Como é possível imaginar que seja
permitido comprar um lugar na universidade? É tão ou mais chocante do que as
políticas racistas que promovem ou dificultam o acesso de grupos étnicos.
Portugal necessita de políticas que promovam os melhores e os mais capazes de
todas as classes e de todas as etnias, não as que tentam criar e preservar
privilégios. Brancos ou negros. Ou assim-assim.
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