Do medo do
“inverosímil” à ficção demasiado real: um livro para “reflectir” sobre o
turismo
Álvaro Filho
escreveu Alojamento Letal depois de uma explosão no prédio onde vivia, em
Alfama. O livro de ficção não é “panfleto” contra o turismo, mas um exercício
para pôr todos a pensar. Coabitar é possível, viver sem regras não
Mariana Correia
Pinto (texto) e Andreia Gomes Carvalho (fotografia) 26 de Agosto de 2019, 8:00
Naquela tarde de
domingo, a vida pareceu gritar-lhes uma daquelas frases feitas pronunciadas em
situações de catástrofe. Tudo muda num instante. Tivesse a explosão acontecido
dez minutos antes e a esposa e o filho mais novo de Álvaro Filho talvez não
estivessem cá hoje. Tudo muda num instante. Tinham saído de casa, número 59 da
Rua dos Remédios, em Lisboa, para ir a uma festa de aniversário. E esse festejo
salvou-os de um potente estrondo, seguido de outros, e de um incêndio que fez o
prédio deles desabar. E a vida estremecer.
Naquela noite, 13
de Agosto de 2017, o senhorio estava fora de Portugal e a Junta de Freguesia de
Santa Maria Maior ofereceu-lhe um talho desactivado para pernoitarem. Ajuda
inaceitável aos olhos de uma empregada de limpeza de um Alojamento Local da
zona, mulher nascida em Alfama que por ali se apercebeu da aflição da família.
Levou-os a um dos apartamentos dos quais cuidava e deixou-os dormir lá. A
roupa, pasta dos dentes e até alguns brinquedos para as crianças foram
oferecidos por uma comerciante polaca. “O bairro deu uma resposta”, elogia
Álvaro Filho, jornalista e escritor que publicou recentemente Alojamento Letal
(Editora), um livro de ficção saído das mãos de um imigrante que viveu um ano
em Alfama e testemunhou a velocidade – e às vezes violência – da mudança do
bairro.
Álvaro Filho fala
dessa generosidade dos vizinhos para afastar uma visão “maniqueísta” da
realidade quando o assunto é o turismo e o direito à habitação. Dessa noite,
diz, há também essa lição a tirar: “A instituição do Alojamento Local (AL) é
agressiva, mas pode também ser solidária.”
A motivação para
escrever sobre o tema veio após esse incidente com origem numa fuga de gás e do
qual cinco pessoas saíram feridas. A ficção foi uma arma para pôr as pessoas a
“ler sobre um assunto sobre o qual talvez não lessem de outra forma”. Palavra
de um jornalista brasileiro radicado em Portugal desde 2016 e para quem cumprir
a “missão social do jornalismo” em Lisboa se revelou missão quase impossível.
Em Alojamento
Letal, um empresário chinês que compra prédios para os transformar em
alojamentos locais é o principal suspeito de um conjunto de crimes a atormentar
Alfama. Para provar a sua inocência, o “senhor Ming” contrata Nuno Cobra,
escritor de romances policiais onde os cenários nórdicos são pano de fundo e
cujo vilão se assemelha com o assassino de Lisboa. Despejos forçados, clima de
medo, investigações policiais, turistas por todos os lados – o policial
ficciona toda a realidade de Lisboa e Porto.
Na obra de Álvaro
Filho cabe toda essa veracidade. Mas há também “coincidências terríveis”. Como
a de ter escolhido um empresário de naturalidade chinesa como suspeito dos
crimes e pouco tempo antes de o policial ser lançado - mas já depois de ter
sido escrito - um homem da mesma nacionalidade ter sido detido por alegadamente
ter posto fogo num prédio do Porto onde ainda morava gente, mas para o qual
tinha planos turísticos.
A editora estava
a promover o livro nas redes sociais quando se deu esse incêndio da Rua
Alexandre Braga, onde um homem morreu. E, de repente, Álvaro Filho deparou-se
com uma “enxurrada de comentários” no Facebook. Cheias de “conteúdo xenófobo”.
O jornalista inquietou-se. “Pedi à editora para interferir e expliquei que o
livro não se baseou em nada daquilo”, contou. “Aliás, nunca pensei que a
experiência chegasse a este nível.”
Nos primeiros
esboços da história, Álvaro Filho tinha, aliás, um “medo”: o de compor uma
narrativa demasiado “inverosímil”. As notícias, no entanto, foram dando corpo
ao seu imaginário da pior forma possível. “Hoje falo da sinopse e as pessoas
perguntam: e onde está a ficção? Isso está, de facto, a acontecer.”
A escolha da
nacionalidade chinesa para o empresário suspeito dos “crimes do Airbnb” nada
teve a ver com a tragédia portuense. E Álvaro Filho faz questão de o grafar em
letras garrafais para evitar equívocos. Depois de perder a casa em Alfama, na
busca de um novo tecto, o autor cruzou-se com um corrector a representar um
empresário chinês. Acabou por não ficar com a casa, por desinteresse do
proprietário, mas inspirou-se nesse episódio na hora de dar características a
uma das suas personagens principais. “Como dividi o livro pelos signos do
zodíaco chinês, achei interessante”, explicou.
Escritor vivia na
Rua dos Remédios, em Alfama, e o livro que escreveu tem esse bairro lisboeta
como cenário
O livro – com uma
organização alternada entre os signos e as fases da Lua - embebe uma série de
geografias e culturas. E explora os “papéis clássicos do imigrante”: o francês
galã, o alemão metódico, o inglês bêbedo, a brasileira sedutora, o português
retraído. Tudo está lá, como um “clichê”. Propositado e provocador.
A família do
autor brasileiro apalpou terreno para o futuro em Lisboa no início de 2016.
Álvaro Filho tinha planos de fazer um doutoramento e estava indeciso entre a
capital portuguesa ou outra cidade europeia. Nessa altura, hospedaram-se num AL
na Rua dos Remédios. E quando regressaram, em Setembro, já com planos de
permanecer, convenceram o proprietário desse apartamento a fazer um contrato de
longa duração.
“Queria muito que
os donos de AL lessem o livro. A violência pode ser um assassino e
apresentar-se de várias formas, não apenas como um maníaco que arranca olhos,
como no livro”
Álvaro Filho,
escritor e jornalista
No prédio, só
eles e outra família estavam lá nesse registo. O resto era AL. E isso não é
pormenor quando se fala do incêndio no edifício onde as ruínas permanecem, dois
anos depois, e não há uma solução jurídica à vista. O cheiro a gás era
frequente, tanto no interior da habitação como na rua, desde o início de 2017.
As chamadas para a EDP e para os bombeiros também - de tal forma que o filho
mais novo do casal chamava Patrulha Pata aos carros vermelhos e criou um
fascínio amedrontado sobre os incêndios. “No Brasil o gás não é comum, por isso
não sabíamos se o cheiro era normal ou não”, explica. “Se o prédio fosse
habitado por locais penso que as coisas seriam diferentes.”
O odor é uma
presença forte em Alojamento Letal. Tal como nas memórias da família do autor.
Ao ruírem as espessas paredes do prédio, partiu-se também o mobiliário da casa
deles. Mas a mala onde guardavam os documentos salvou-se, como por protecção
divina, fiada num espaço oco entre móveis. Enquanto o prazo de validade desses
passaportes durou, os documentos “tresandavam a fumo”, diz Álvaro Filho. E esse
aroma era viagem permanente àquela tarde: “Durante muito tempo andei com esse
cheiro...”
A experiência
traumática não fez Álvaro Filho trabalhar “um panfleto” contra o turismo.
Alojamento Letal, diz, quer sobretudo ser um ponto de partida para pôr todos a
“reflectir”. Por isso, quando um autor da sua editora, a Planeta, lhe perguntou
se a obra dele era “de esquerda” ele respondeu-lhe ter escrito com as duas
mãos. “Achei estranha a pergunta”, graceja. Também quando apresentou Alojamento
Letal em Lisboa, um colega desculpou-se por não ir ao evento: como proprietário
de um AL, explicou-lhe, sentir-se-ia “desconfortável no lançamento de um livro
contra isso”. Essa leitura, lamenta o jornalista, é uma derrota para ele:
“Queria muito que os donos de AL lessem o livro. A violência pode ser um
assassino e apresentar-se de várias formas, não apenas como um maníaco que
arranca olhos, como no livro.”
Álvaro Filho quer
distância desse olhar binário sobre o turismo. Há um papel para o AL na
economia. Mas esse caminho não pode ser feito sem regras: “Tem de haver
regulação, porque é urgente proteger algumas coisas”, defende. “Coabitar” é
possível - e até desejável. Confiar na “máxima capitalista de que os mercados
se regulam” não passa de uma visão “naif” a conduzir as cidades ao abismo.
No fundo, diz
Álvaro Filho sem querer desvendar demasiado a história, a especulação
imobiliária é o grande assassino. E todos podemos cair nesse erro, pela “venda”
ou “consumo” do produto: “Quando viajo fico em AL. Mas procuro ter o menor
impacto possível, para não contribuir para a invasão bárbara de quem chega como
turista sem pedir licença”, explica. Porque, no fundo, “a violência
podemos ser todos nós”.
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