Empresas do pai,
da mãe, do irmão e da própria ministra da Cultura fizeram contratos com o
Estado
31.07.2019 às
15h31
Alguns dos contratos
foram feitos quando Graça Fonseca era secretária de Estado. Advogados explicam
ao Expresso a incompatibilidade destes negócios
MARTA GONÇALVES
MARIANA LIMA
CUNHA
Há pouco mais de
um ano, a Joule e a Joule Internacional, empresas do ramo da engenharia,
celebravam cada uma delas um contrato público com o munícipio de Lisboa. Ora,
as empresas contratadas são detidas pelo pai, pela mãe e pelo irmão de Graça
Fonseca - e também pela própria ministra da Cultura, que à época ocupava ainda
o cargo de secretária de Estado. Apesar de a percentagem detida pela ministra
não ultrapassar os limites impostos na lei, o mesmo não acontece com os seus
familiares, que têm participações superiores a 10%. Os contratos assinados
correspondem a mais de 22 mil euros (ou a quase 150 mil euros, se nas contas
também incluirmos negócios com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa).
Ambos os
documentos são de 26 de junho do ano passado. O contrato celebrado com a Joule
Internacional envolve um montante de €19.990 e deve-se à “aquisição de serviços
de consultoria em matéria de especialidades de engenharia para as áreas de
intervenção do programa Renda Acessível” no Vale de Santo António, no Bairro do
Condado e no Alto da Ajuda. Já com a Joule os serviços foram pedidos para
começar “o projeto de reformulação da rede de distribuição de baixa tensão do
Complexo dos Olivais II” e pressupõe o pagamento de €2800.
Graça Fonseca foi
vereadora da Câmara Municipal de Lisboa entre 2009 e 2015, quando António Costa
liderou a autarquia. O Expresso contactou o gabinete da ministra, que respondeu
assim: "Remetemos para o comunicado de ontem do gabinete do senhor
primeiro-ministro e para as declarações de hoje do senhor ministro dos Negócios
Estrangeiros".
A família da
ministra tem duas empresas: a Joule - Projetos, estudos e coordenação, LDA (com
cerca de 40 anos de existência) e a Joule Internacional - serviços de
engenharia, LDA (criada há cerca de uma década). A mais antiga tem como sócios
o pai de Graça Fonseca (38%), a mãe (38%) e o irmão (16%). Os restantes 8% são
participação da governante. Ao mesmo tempo, na empresa mais recente, são apenas
sócios o pai, a ministra e o irmão, com 70%, 8% e 22%, respetivamente.
De acordo com
legislação, a participação de 8% de Graça Fonseca em ambas as empresas não
incorre em qualquer ilegalidade. No entanto, a mesma legislação define como
incompatível “participações superiores a 10% de parentes, ascendentes ou
colaterais até ao segundo grau” com exercício da função de altos cargos
públicos. Ou seja, a situação dos pais e irmão da ministra.
João Paulo
Batalha, presidente da associação Integridade e Transparência, não tem dúvidas:
“a lei é clarinha” e o que prevê, em casos como o de Graça Fonseca, é mesmo a
“demissão”. O que a atual polémica demonstra - com o primeiro-ministro a pedir
um parecer sobre estes casos à Procuradoria-Geral da República e o ministro dos
Negócios Estrangeiros a considerar que seria “absurdo” interpretar a lei de
forma literal - é que “a lei não foi feita para ser cumprida”. Ou seja, para
João Paulo Batalha, a alteração que tornou a legislação mais restritiva em 1995
- deixando de impedir apenas contratos públicos com a área tutelada pelo
político em causa, e passando a abranger todos - foi feita num período de
“ânsia eleitoral” e nunca posta em prática.
“Este caso mostra
que as leis de impedimentos não são desenhadas para serem cumpridas e não são
fiscalizadas por ninguém: estes casos são sempre levantados pela comunicação
social.” Até porque, se a versão da lei que vigora atualmente fosse aplicada,
“haveria uma razia até nos presidentes de câmara”. Mas tal nunca aconteceu:
como o próprio primeiro-ministro notou, não existe jurisprudência sobre o assunto,
apesar de a norma existir há mais de 20 anos.
Também para
Dantas Rodrigues, advogado especialista em direito Administrativo, “é evidente”
a incompatibilidade dos casos. “Nem cônjuges nem descendentes nem ascendentes,
familiares de pessoas em cargos públicos podem prestar serviços ou colaborar
com instituições públicas. É isso que diz a lei.”
Segundo a lei que
ainda vigora, há incompatibilidade. No entanto, se analisarmos a nova
legislação, que deve entrar em vigor brevemente, a incompatibilidade desaparece
devido às alterações votadas pelo Parlamento. Esta terça-feira, o
primeiro-ministro pediu parecer à Procuradoria-Geral da República para
esclarecer a legislação que ainda vigora. Uma decisão, sublinha Dantas
Rodrigues, que ao nível político parece servir apenas para “ganhar tempo”.
“Todos sabem que
um parecer da Procuradoria demora sempre algum tempo e parece que isto vai
servir para que, quando o parecer aparecer, já esteja em vigor a nova lei.
Então aí já não haverá qualquer incompatibilidade”, nota o especialista.
Para o
constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, a nova legislação “parece ter sido
criada para evitar que mais casos” surjam. A consequência para quem não cumpra,
defende, deve ser a “nulidade dos contratos” e não a demissão do cargo público.
Todos os
contratos em causa foram concretizados por ajuste direto, significa isto que
não foi aberto concurso público e que as entidades escolheram a empresa a que
iria entregar o projeto, alegando sempre “ausência de recursos próprios”.
MAIS TRÊS CONTRATOS
COM A SANTA CASA
O mais recente
contrato na BASE, a plataforma que disponibiliza todos os contratos celebrados
pelas instituições públicas, que envolve a Joule e a Joule Internacional, é de
fevereiro deste ano, já Graça Fonseca era ministra da Cultura, e diz respeito a
uma contratação de serviços por parte da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Além deste há mais dois.
E aqui as
opiniões divergem quanto à natureza da Santa Casa. Por um lado, Bacelar Gouveia
defende que se trata de uma “entidade integrada na administração publica, até
porque os órgãos são nomeados pelo Governo e exerce uma autoridade delegada
pelo Estado”. “Aliás, entendemos a Santa Casa como entidade pública porque até
a estudamos em Direito Administrativo”, justifica. Por outro lado, o advogado
Dantas Rodrigues aponta que esta é uma situação dúbia e que, nestes casos,
duvida da incompatibilidade, “porque apesar de tudo não se trata de uma
instituição do Estado - tem cariz social e na sua fundação e orgânica tem uma
autonomia muito diferente e independente do Estado”.
A Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa é uma organização secular católica portuguesa de direito
privado e utilidade pública administrativa.
Desde 26 de abril
de 2016 que os três contratos com a Santa Casa e os dois com o município de
Lisboa são os únicos contratos públicos assinados pela empresa familiar. Todos
os anos um contrato foi feito, sempre mais ou menos pela mesma altura: a Joule
com a Santa Casa em abril de 2016 e em junho de 2017 e ainda com o município de
Lisboa em junho de 2018; já a Internacional assinou um outro contrato com a
autarquia lisboeta também em junho do ano passado.
No total, se
forem somados os cinco contratos, os negócios implicaram €144.590.
Antes da pasta da
Cultura, Graça Fonseca assumiu funções no atual Executivo como secretária de
Estado. Tomou posse a 26 de novembro de 2015 e, dias depois, deixou a gerência
da Joule, permanecendo apenas como sócia.
Este é mais um
caso para juntar aos que nos últimos dias têm vindo a público: a empresa do pai
de Pedro Nuno Santos fez contratos públicos, assim como o marido da ministra da
Justiça tem colaborado várias vezes com o Governo, incluindo com o Ministério
da Administração Interna, além do filho do secretário de Estado da Proteção
Civil, que celebrou pelo menos três contratos com o Estado já depois de o pai
assumir funções governativas. O nome de Graça Fonseca junta-se agora ao leque.
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