Alerta global: a
Terra não aguenta mais uso e abuso dos solos
Relatório do
Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas especificamente sobre o
uso do solo foi divulgado esta quinta-feira em Genebra, na Suíça. Os
especialistas apresentam um diagnóstico de uma Terra debaixo de uma dupla
pressão do homem e das alterações climáticas, previsões e soluções.
Andrea Cunha
Freitas 8 de Agosto de 2019, 9:01
A Terra já está
sob uma crescente pressão humana e as alterações climáticas estão a aumentar
ainda mais essa pressão. Esta pode parecer uma constatação óbvia, mas, desta
vez, os especialistas do Painel Intergovernamental para as Alterações
Climáticas da ONU fornecem uma série de dados, argumentos, previsões e até
possíveis soluções para evitar o desastre. Está tudo no relatório sobre
Alterações Climáticas e Solo que foi apresentado esta quinta-feira de manhã em
Genebra. O importante documento mostra como o insustentável peso do homem na
Terra é um problema que só pode ser resolvido pelo homem, com mudanças e
adaptações e, sobretudo, com a redução de emissões de gases com efeito de
estufa. “Sustentabilidade” ainda é a palavra-chave para um futuro melhor.
Se a superfície
da Terra fosse uma pele, estaria seca, enrugada, coberta de cicatrizes,
queimaduras e feridas abertas. Sem recurso a qualquer metáfora, sobra a
realidade nua e crua: a actividade humana degradou os solos, expandiu os
desertos, derrubou florestas, eliminou vida selvagem, entre outros danos. Até
agora, o homem fez com que o solo passasse de um meio para combater as
alterações climáticas para um agente causador dessa mudança. Os especialistas
avisam que estamos a forçar os limites da Terra, o uso do solo há muito tempo
que se tornou abuso. Há soluções e quase todas envolvem o conceito de
sustentabilidade – a única forma de aliviar o peso do homem e das alterações
climáticas no planeta.
Estima-se que
entre um quarto e um terço de todas as emissões de gases com efeito de estufa
provenham do uso do solo. A agricultura, florestação e outros usos da terra são
responsáveis por 23% de todas as emissões de gases com efeito de estufa (CO2,
metano, óxido nitroso). Se juntarmos ainda as emissões associadas as
actividades pré e pós-produção do sector alimentar a estimativa estará entre os
21 e 37%. Os processos naturais da Terra absorvem apenas o CO2 equivalente a
quase um terço das emissões de gases com efeito de estufa (GEE) produzidos
pelos combustíveis fosseis e indústria.
Mais de 70% da
superfície da Terra (que não está coberta pelo gelo) é directamente afectada
pelo uso humano. Um quarto dessa superfície é sujeito a uma degradação induzida
pelo homem. A erosão nos terrenos agrícolas está estimada como sendo 10 a 20
vezes (no caso dos campos não lavrados) até a mais de 100 vezes (nos lavrados)
superior à taxa de formação de solo.
Há mais: a
agricultura é responsável por 70% do actual consumo de água no planeta. No
comunicado de imprensa, Hans-Otto Pörtner, um dos especialistas no grupo de
trabalho do IPCC, constata que os terrenos que actualmente são usados poderiam
alimentar o mundo e fornecer biomassa para energia renovável, mas, para isso, é
preciso que a acção em várias áreas comece cedo e chegue longe. “O mesmo vale
para a conservação, recuperação de ecossistemas e biodiversidade”, acrescenta.
Actualmente entre
25 a 30% da produção de alimentos é desperdiçada ou perdida. Dados recolhidos
desde 1961 mostram que o fornecimento per capita de óleos vegetais e carne mais
que duplicou e o de calorias per capita nos alimentos aumentou cerca de um
terço. Cerca de 2000 milhões de adultos têm excesso de peso ou são obesos.
Estima-se que existam 821 milhões de pessoas subnutridas.
Mudar a
alimentação
Durante a semana,
as notícias já antecipavam o tom dos especialistas reunidos em Genebra, na
Suíça, na reunião do IPCC que deveria servir para discutir as alterações
climáticas e o uso do solo. Íamos ouvir falar na urgência de avançar para
biocombustíveis, substituir plásticos e fibras por material vegetal, proteger a
vida selvagem, ordenar a produção de madeira e novas formas mais sustentáveis
de alimentar uma população cada vez maior. O relatório, antevia-se, havia de
sublinhar que é preciso fazer escolhas sobre a forma como usamos o solo e que essas
escolhas seriam difíceis. E são. Porque mudam muita coisa.
“Este relatório
mostra que uma melhor gestão do solo pode contribuir para combater as
alterações climáticas, mas não é a única solução. Reduzir as emissões de gases
de efeito estufa de todos os sectores é essencial se se pretender que
aquecimento global deve ser mantido a menos de dois graus Celsius, se não mesmo
1,5 graus”, refere o comunicado de imprensa que recorda a meta definida em 2015
no Acordo de Paris.
Uma das
bandeiras, também se adivinhava há já algum tempo, seria colocada na produção e
consumo alimentar, e mais especificamente no alto consumo de carne vermelha que
coloca o planeta numa pressão insuportável, seja por precisar de solos para
produzir ração animal, seja pela água e outros recursos que explora de forma
gananciosa.
“Algumas escolhas
alimentares exigem mais terra e água, e causam mais emissões de gases”, afirma
Debra Roberts, que também assina o relatório do IPCC, recomendando dietas equilibradas
com alimentos à base de plantas e grãos, tais como cereais (excepto o trigo e o
arroz), legumes, frutas e vegetais, e produtos sustentáveis de origem animal
que sejam produzidos em sistemas com reduzidas emissões de GEE.
O relatório
destaca que as alterações climáticas afectam os quatro pilares da segurança
alimentar: disponibilidade (rendimento e produção), acesso (preços e capacidade
de obter alimentos), utilização (nutrição e cozinha) e estabilidade
(interrupções na disponibilidade). “Veremos diferentes efeitos em diferentes
países, mas haverá impactos mais drásticos nos países pobres em África, Ásia,
América Latina e Caraíbas”, afirma Priyadarshi Shukla, outro dos investigadores
do IPCC, citado no comunicado.
Soluções e
limites
Entre outras opções,
os especialistas apontam para a urgência de uma produção sustentável de
alimentos, uma gestão sustentável das florestas, uma gestão do carbono
orgânicos do solo, conservação dos ecossistemas, recuperação dos solos, menos
deflorestação e degradação e uma redução das perdas e desperdício alimentar.
Sem surpresas. Algumas das soluções podem ter um efeito imediato, outras podem
demorar décadas a mostrar um resultado, admitem no relatório.
“O solo deve permanecer produtiva para manter
a segurança alimentar à medida que a população aumenta e que os impactos
negativos das mudanças climáticas na vegetação aumentam. Isso significa que há
limites para a contribuição da terra para enfrentar as alterações climáticas,
por exemplo através do cultivo de culturas energéticas e de arborização. Também
demora algum tempo até que árvores e solos armazenem carbono de forma eficaz”,
refere o comunicado. Os bons resultados, dizem, vão depender de políticas
locais adequadas e sistemas de governação.
“A maior parte
das opções baseadas na gestão dos solos que não aumentam a competição por terra
e quase todas as opções baseadas na gestão da cadeia de valor (por exemplo,
escolhas alimentares, perdas reduzidas, redução de desperdício de alimentos) e
na gestão de riscos podem contribuir para erradicar a pobreza e eliminar a
fome, promovendo a boa saúde e bem-estar, a água, saneamento, acção climática e
vida na Terra”, referem os especialistas no relatório.
Especificamente
sobre a desertificação, os cientistas propõem medidas que, dependendo da
disponibilidade de água na região, podem por exemplo passar pela construção de
“muros verdes” ou “barragens verdes”, onde a plantação de espécies de árvores
resilientes pode ajudar a criar barreiras à erosão e melhorar a qualidade do
ar. Aproximadamente 500 milhões de pessoas vivem em áreas que estão a sofrer
com a desertificação e que são mais vulneráveis às alterações climáticas e a
fenómenos de seca, ondas de calor e tempestades de poeiras.
É claro que
também encontramos no relatório a necessidade de recurso a fontes mais limpas
de energia e na obrigatoriedade de colocar a tecnologia ao serviço do clima e
da sustentabilidade do planeta. “Existem coisas que já estamos a fazer. Estamos
a usar tecnologias e boas práticas, mas de facto precisamos de as ampliar e
transferir para locais mais adequados onde ainda não estão a ser usadas”, diz
Panmao Zhai, cientista do IPCC.
O relatório apresenta
uma série de dados a que atribui uma confiança média, alta ou muito alta. São
páginas e páginas de danos causados ao planeta, organizados por quatro
capítulos com muitas (demasiadas) alíneas que denunciam a degradação e
destruição do nosso planeta. Um dos gráficos mais esclarecedores mostra a curva
(ascendente) do uso do solo a servir de sombra à mesma trajectória da linha
sobre os efeitos das alterações climáticas. O que fazer com estes dados? Mudar,
não há alternativa e não há tempo a perder.
O primeiro
capítulo é dedicado a “pessoas, solo e clima num mundo a aquecer”. Entre outros
dados que constatam o que já mudou, há uma parte dedicada a pensar o futuro.
Para isso, os especialistas apoiam-se em cinco cenários, com mais ou menos
exigências de mudança de comportamento ou de adaptação, que, por sua vez, se
articulam com vários níveis de mitigação do aquecimento global. “A mudança
climática cria tensões adicionais nos solos, exacerbando riscos existentes para
a subsistência, a biodiversidade, a saúde humana e dos ecossistemas,
infra-estruturas e sistemas alimentares. Impactos crescentes no solo são
projectados em todos os cenários futuros de emissões de gases com efeito de
estufa. Algumas regiões enfrentarão riscos mais elevados, enquanto outras enfrentarão
riscos que não estavam previstos. Os riscos que produzirão um efeito em cascata
terão impacto em vários sistemas e sectores e vão variar entre regiões”,
anunciam os especialistas.
Região a região,
ninguém parece estar a salvo de uma desgraça. Quase parece que alguém está a
rogar pragas a todas as regiões do mundo. Se a Ásia e a África se apresentam
como as regiões que serão mais afectadas pelo aumento da desertificação, a
América do Norte e do Sul, a Sul de África, a região mediterrânea e a Ásia central
serão atingidas por incêndios e as regiões tropicais e subtropicais as mais
vulneráveis ao declínio das colheitas. Nas regiões costeiras, a degradação do
solo que vai resultar do aumento do nível do mar e ciclones mais intensos vão
colocar vidas em risco. Entre todas as pessoas, são as mulheres, os muito
novos, os idosos e os pobres que estão mais em risco. “A gestão insustentável
dos solos levou a impactos económicos negativos. A mudança climática deverá
exacerbar esses impactos”, avisam.
Mais exemplos:
com o aumento do aquecimento global, a frequência e intensidade de cheias
deverão aumentar particularmente na região mediterrânica e no Sul de Africa.
Nas regiões tropicais, em cenário de emissões médias e altas de GEE, o
aquecimento vai provocar “a emergências de condições climáticas sem
precedentes” em meados do século XXI. Com os níveis actuais de aquecimento
global ficamos perante um “risco moderado” de escassez de água, erosão do solo,
perda de vegetação, fogos, degelo do permafrost, degradação das zonas costeiras
e declínio do rendimento das culturas. Com um aumento de 1,5 graus Celsius os
riscos passam a ser altos e com dois graus muito altos.
Em relação à
estabilidade de fornecimento de comida as projecções indicam que se encontra
ameaçada. Por um lado, os fenómenos extremos vão perturbar as cadeias
alimentares, por outro o aumento de CO2 na atmosfera poderá diminuir a
qualidade nutricional das colheitas. Recorrendo uma vez mais aos cenários, os
especialistas mencionam o mais provável (nem demasiado optimista, nem demasiado
pessimista) para prever um possível aumento do preço médio dos cereais de 7,6%
em 2050 por causa das alterações climáticas. Isto, por sua vez, vai levar a um
aumento dos preços dos alimentos e a um maior risco de insegurança alimentar e
fome. Os mais afectados serão, obviamente, os mais vulneráveis.
Ainda apoiados no
tal cenário mais equilibrado em que o crescimento da população fica a rondar os
9000 milhões de pessoas, os peritos anunciam que, com um aumento da temperatura
de 1,5 graus Celsius, em 2050 teremos 178 milhões de pessoas vulneráveis a
escassez de água, cheias e degradação do habitat. Se o aquecimento chegar aos
dois graus Celsius, serão 220 milhões de pessoas e aos três graus serão 277
milhões.
Vamos continuar a
ouvir falar nestes dados, previsões e soluções. Este relatório será “um
contributo científico essencial para as próximas negociações sobre o clima e o
ambiente”, como a Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas de
Combate à Desertificação (COP14) em Nova Deli (Índia) em Setembro e da
Conferência da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas
em Santiago, Chile, agendada para Dezembro.
O tom é
alarmante, mas, pelo menos por enquanto, os cientistas do IPCC ainda deixam
espaço para uma ponta de esperança. Se alterarmos o uso que estamos a dar ao
solo, podemos ainda mudar muita coisa. Podemos, por exemplo, diminuir a
probabilidade, intensidade e duração de fenómenos extremos. As mudanças na
gestão e exploração de um pedaço de terra aqui, garantem os especialistas,
podem afectar a temperatura e a precipitação numa região num raio de centenas
de quilómetros de distância.
O relatório
prometia ser um guia de boas práticas para usar o solo da Terra, depois de
tantas décadas de abuso. Entre outras conclusões, percebe-se que Terra pode ser
uma chaminé de emissões de CO2 que nos vai sufocar ou um sumidouro de emissões
de CO2 que nos serve de pulmão para respirar. Ou de uma forma mais geral: uma
parte de um imenso problema ou uma parte da solução. A escolha é nossa, de
todos e, sobretudo, dos decisores políticos. A melhor notícia do relatório será
mesmo essa: aparentemente, ainda temos escolha. Até quando?
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