Lembram-se
da TINA?
É
esta a realidade que a Europa tem de enfrentar. Sem sonhos de
grandeza ou hipocrisias.
TERESA DE SOUSA
5 de Fevereiro de
2017, 6:23
1. Passaram duas
semanas desde que Donald Trump entrou na Casa Branca, que funcionaram
como uma espécie de sismógrafo, registando o terramoto que está a
provocar no mundo inteiro. O Presidente americano superou as piores
expectativas, fazendo um grande favor a toda a gente: não cair na
tentação de desvalorizar o significado da sua eleição. Mas é
preciso que a poeira assente para se olhar com mais atenção para a
mudança radical da política externa norte-americana, ou seja, da
única e poderosa superpotência mundial. Essa mudança vai
prevalecer, mesmo que se apresente, por vezes, menos radical. É
preciso contar com ela e é preciso, sobretudo, lidar com ela. A
Europa está no centro desta mudança porque viveu até hoje sob a
protecção de uma sólida aliança transatlântica e porque
percebeu, depois de alguns sonhos de grandeza, que esta aliança era
tão importante no pós-Guerra Fria como foi durante o equilíbrio do
terror, quando a fronteira entre dois sistemas e duas ideologias
antagónicas a dividia ao meio.
2. Começemos pela
cimeira informal de La Valetta, na sexta-feira. Os líderes europeus
evitaram exageros retóricos para classificar o novo Presidente.
Houve nuances, naturalmente. Nenhum morador do Eliseu, desde De
Gaulle, perde uma oportunidade para “acariciar” o ego
antiamericano dos franceses. François Hollande falou um pouco mais
grosso, aconselhando Trump a não interferir nos assuntos internos da
Europa e (pasme-se) criticando o seu proteccionismo. Tal como Merkel,
rejeitou a oferta britânica de fazer de “ponte”, que Theresa May
levou para Malta. O ainda Presidente francês foi leal aos Estados
Unidos durante os anos de Obama, confirmando que o centro-esquerda
não é certamente o maior cultor do “gaullismo” anti-americano
que caracteriza sobretudo a direita francesa. A conclusão é o que
importa e essa foi clara: a relação transatlântica tem de ser
preservada para além do actual Presidente. A segunda conclusão,
fácil de dizer mas difícil de fazer, é que a Europa vai ter de
esforçar-se muito mais por si própria, se quer continuar a ter
influência mundial e a responsabilidade inerente.
O que é mais
preocupante é que os líderes, quase todos, separaram nas suas
declarações a opinião sobre Trump e a realidade política
europeia, onde hoje florescem toda a espécie de “mini-Trump”,
cada vez mais próximos do poder e cada vez mais influentes na agenda
política dos respectivos países. Trump dá-lhes uma alma nova. Não
são dois mundos à parte. São duas tendências que se cruzam em
muitos aspectos e que representam um enorme desafio às democracias
ocidentais, seja nos EUA, seja na França ou na Alemanha, na Holanda
em Itália ou no Reino Unido. O "Brexit" é fruto dessa
tendência profunda. Mas a quase certa vitória de Le Pen na primeira
volta das presidenciais francesas também é. Tal como nos Estados
Unidos, a revolta contra as elites e a rejeição (ou o ódio) aos
“outros” abalam perigosamente as estruturas democráticas
europeias. Basta olhar, de novo, para a França, onde os perdedores
da globalização vêem a elite formada nas “Grandes Écoles”
agir como se estivesse acima de qualquer critério moral.
3. Mas esta não é
sequer a questão política central que os europeus enfrentam, quando
olham para a Sala Oval e vêem lá alguém disposto a destruir os
pilares da relação transatlântica, que garantiram a paz e a
prosperidade nos últimos 70 anos. A Europa pode singrar sozinha num
mundo que nunca lhe foi tão adverso? Pode reforçar a sua defesa,
aumentando os gastos e tentando compatibilizar armamento. Sozinha e
dividida quanto ao seu lugar no mundo, não está em condições de
combater o seu declínio estratégico e defender os seus interesses e
os seus valores, dispensando os EUA. Não vale a pena cair na
tentação de que há alternativas. A parceria com a China pode
aumentar as trocas comerciais, mas qualquer governo ou empresário
conhece os muitos entraves que Pequim coloca ao investimento
estrangeiro, a falta de regras estáveis nos seus mercados ou o
respeito pela propriedade intelectual. Xi Jinping pôde apresentar-se
em Davos como o “timoneiro” do livre comércio mas representa um
regime ditatorial que não respeita a lei internacional, desde que
isso não lhe convenha (vide o conflito latente no Mar do Sul da
China, provavelmente o sítio mais perigoso do mundo, se houver uma
falha de comunicação entre Pequim e Washington). A Europa pode
fazer o melhor acordo de comércio livre com o Japão, mas não pode
garantir a sua segurança nem impedir que Pyongyang cometa uma
qualquer loucura. A Rússia pode comungar da História e da cultura
europeia, mas nada faz prever que seja um parceiro fiável, quando se
trata de garantir a estabilidade nas fronteiras da União a Leste
como a Sul. Um qualquer acordo com Putin teria como preço o
sacrifício da sua parte Leste (e não só na Ucrânia). O único
objectivo do Presidente é alargar a zona de influência da Rússia
até às fronteiras do passado. Um dos mais reputados especialistas
europeus da Ásia-Pacífico, François Godement, resumia o dilema
europeu (entre Trump e a China), numa frase: “Uma ordem
multilateral com a China e sem a América é, pura e simplesmente,
impossível”. “É aqui que a Europa está no início de 2017”.
A Ocidente, Donald Trump, “desprezando a NATO” e a integração
europeia. A Oriente, Xi Jinping, “envergando o manto da defesa da
globalização, das instituições multilaterais, do respeito pelas
leis e do desarmamento nuclear universal”.
4. Não vale a pena
ter grandes ilusões sobre o que nos espera. Jim Mattis, um general
da velha escola atlantista que chefia o Pentágono, acaba de realizar
uma visita à Coreia do Sul e ao Japão para tranquilizar os dois
grandes aliados americanos na Ásia-Pacífico. Os acordos de defesa
são para manter, incluindo a defesa colectiva. O novo secretário de
Estado, Rex Tillerson, não pertencendo ao establishment da
estratégia, é um pragmático. Ouvimos a nova embaixadora (política)
na ONU avisar os países membros para não ousarem opor-se aos EUA,
sob pena de “irem para a lista”. Disse na sexta-feira que a
Rússia viola a lei internacional na Crimeia. O Congresso americano
já aprovou novas sanções (ligeiras) contra o Irão, em resposta
aos testes com mísseis balísticos que o regime teocrático acaba de
realizar. Trump não pára de denunciar o acordo nuclear com Teerão,
negociado por Obama com a Alemanha e os com os membros do Conselho de
Segurança da ONU. O vice-chanceler alemão, Sigmar Gabriel (que
acumula a pasta dos Negócios Estrangeiros), estava de visita a Mike
Pence em Washington nessa altura e não deixou de dizer aos
jornalistas que compreendia a decisão americana, insistindo, no
entanto, que o acordo não era para rever. São bons sinais? Podem
ser, mas arriscam-se a não ser o essencial. Na cultura política
americana quem manda é o Presidente e nenhum dos membros do seu
governo ousa desafiá-lo, mesmo que pense de forma diferente. Foi
assim com Collin Powell, Hillary Clinton ou John Kerry. Acresce que
os verdadeiros nacionalistas e nativistas estão na Casa Branca,
formando uma barreira impenetrável à volta do Presidente.
É esta a realidade
que a Europa tem de enfrentar. Sem sonhos de grandeza ou hipocrisias.
Sem esquecer, como escreve Natalie Nougayrède, no Guardian, que não
há alternativa aos Estados Unidos a não ser o caos. A colunista
chama-lhe a reincarnação da TINA, ainda que em ponto muito maior. A
Europa levará muito tempo a construir a sua autonomia estratégica,
se é que ainda consegue evitar o cenário da fragmentação. Não se
trata de rendição. Trata-se de algum realismo. A primeira
encarnação da TINA (a máxima There is no Alternative; não há
alternativa) deu mau resultado, mas pode e deve ser corrigida. A
segunda é ainda uma terrível incógnita. Exigirá unidade e coragem
às lideranças europeias, um combate a sério aos populismos
nacionalistas e uma visão do interesse comum. É pedir muito?
Talvez. Mas não há de facto alternativa.
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