O
Presidente anda a pedir milagres ao Governo
O
Presidente quer que o Governo vire a página ao “virar da página
da austeridade” e pede um novo tempo ao “tempo novo”. No actual
quadro parlamentar, uma política a favor do crescimento vai exigir
um milagre político maior do que o de 2016
MANUEL CARVALHO
4 de Janeiro de
2017, 6:28
Os jornalistas
adoram descobrir os destinatários das mensagens presidenciais. O
exercício com o Presidente-rei Marcelo estava a ser particularmente
enfadonho – a sua sibilina argúcia tende a distribuir recados por
todos para que todos se sintam contentes. No caso da mensagem de Ano
Novo, porém, houve uma pequena subtileza. Marcelo elogiou António
Costa e não elogiou Passos ou Assunção Cristas, mas, no seu jeito
manso de ser, aproveitou o elogio como lastro para dizer ao país que
o Governo tem de se deixar de fintas e chutar à baliza. Dizer a um
Governo em estado de graça que está na hora de deixar de flutuar no
ar é mais do que um apelo: é também uma repreensão. A
“estabilidade política e social” de 2016 é óptima, o diabo
anunciado por Passos Coelho só azeda o “ambiente dos debates entre
os políticos”, mas, desta vez, para lá do seu proverbial
ecumenismo, o Presidente-rei preocupou-se principalmente em dar
recados ao Governo. Mais: fê-lo com argumentos do PSD.
Disse Marcelo Rebelo
de Sousa que “2016 foi o ano da gestão do imediato, da
estabilização política e da preocupação com o rigor financeiro”;
no dia seguinte, Passos Coelho escrevia no PÚBLICO que o Governo
vivia num irrealismo que o impedia de procurar “soluções
robustas, que fujam a encenações enganosas”. Marcelo dizia na sua
mensagem que 2017 tem de ser o ano “da gestão a prazo e do
crescimento económico”; dois dias depois, Passos Coelho sublinhava
que o país carece de uma “agenda de reforma económica e social
que [traga] mais confiança e investimento produtivo”. Não se sabe
se o almoço da passada semana entre o Presidente e Passos Coelho
teve direito a brinde, mas o que é facto é que o ano começa com
sintonia entre os dois.
O discurso de
Marcelo Rebelo de Sousa não foi em si mesmo um momento de grandes
novidades, mas a ênfase na economia e na visão a prazo do país
colocam a acção do Governo sob uma nova perspectiva. Afinal, o
Presidente constrói uma narrativa que culmina na necessidade de um
virar de página à farsa do “virar de página da austeridade”.
Exige ao Governo uma agenda que abra um tempo novo no “tempo novo”.
Acabada a temporada da sobrevivência no quadro de um apoio
parlamentar instável, cumprida a promessa de devolver salários e
rendimentos, fixado sem margem para equívocos o empenho no
equilíbrio financeiro, a hora é de olhar para o futuro. De ter
ambição estratégica muito para lá da manobra táctica do
dia-a-dia. Uma apologia que não serve apenas para incentivar a
ambição do Governo; ao mesmo tempo, confronta-o com os seus limites
e fraquezas.
É fácil perceber
porquê. Como o Presidente assinala, o desafio crucial do país passa
principalmente por “completar a consolidação do sistema bancário,
fomentar exportações, incentivar investimento e crescer muito
mais”. Na agenda social, o Governo passa com distinção e
continuará a ter todo o apoio do Bloco, do PCP e dos Verdes para
continuar esse caminho. Mas mudar o quadro da economia e das finanças
parece ser muito mais complicado. Por deficiências e erros próprios,
bem visíveis no desastre da gestão da crise da Caixa Geral de
Depósitos; por constrangimentos externos, que vão desde o mau
momento de Angola à persistente recusa da Alemanha em reduzir o seu
excedente na balança externa; mas também pelo bloqueio que os
parceiros da maioria exercerão sempre que em causa estejam
incentivos às empresas, a aposta na exportação (na qual o Governo
tem tido um discurso titubeante, tantas vezes em favor da procura
interna), o equilíbrio das contas do Estado ou a criação de
ambiente de confiança capaz de atrair o investimento. A irritação
com a redução da taxa social única é o prenúncio das
dificuldades que o Governo terá de enfrentar sempre que pensar em
políticas favoráveis às empresas.
Sendo um drama para
o país, esse bloqueio é igualmente um drama para o Governo, que,
com o passar do tempo, deixará de poder brandir a vitória sobre o
papão da austeridade e precisará de algo de novo para justificar
que existe. Se, como previmos na semana passada, não vier aí uma
“Geringonça 2.0”, o Governo arrisca-se a vegetar na repetição
de um programa cumprido e a degradar o seu estado de graça; se
decidir apostar numa agenda mais reformista que vá para lá das
curtas ambições para a descentralização ou o interior, que
perceba que jamais sairemos da crise enquanto suportarmos um Estado
obeso com uma economia anémica, então terá de contar com o final
das tréguas do Bloco ou do PCP. Para pedir mais férias, salários
mais altos, mais regalias sociais, mais Estado e mais regulação, as
famosas posições conjuntas chegam e sobram; para exigir mais
energia e determinação à sociedade civil ou para convencer os
investidores de que Portugal é um paraíso no actual quadro europeu
são insuficientes. Com a triste realidade de uma economia apanhada
há 15 anos na armadilha do rendimento médio, os cenários de 2016
são, por isso, difíceis. Para ter uma aposta consistente no
crescimento sem pôr em causa a estabilidade política, o Governo vai
precisar de um milagre ainda maior do que o que lhe garantiu a
sobrevivência ao longo de 2016.
2 – O país deve
andar ainda distraído com as rabanadas para não perceber que a
aprovação da construção de um aterro de resíduos nucleares no
estuário do Tejo, a cerca de 100km da fronteira, é não só uma
ameaça à segurança nacional como um acto de insolência que não
pode passar sem reparo. Não está em causa nenhuma bravata
nacionalista contra a Espanha, nem nenhum pavor milenarista sobre o
inverno nuclear ao virar da esquina: é uma leitura do mais elementar
bom senso. Como fazem os maus vizinhos, os espanhóis preparam-se
para deitar lixo ao pé da porta do vizinho, sem respeitarem as
regras europeias que exigem avaliações de impacte ambiental nos
dois lados da fronteira, sem darem cavaco a Lisboa, subvertendo
garantias negociais e apostando na política do facto consumado.
Fariam o mesmo, se Almaraz estivesse perto da fronteira francesa?
Com raras excepções,
o caso tem passado ao lado da actualidade – em Espanha nem sequer
existe. Mas não é por falta de empenho do Governo. Não é todos os
dias que se chamam diplomatas espanhóis em Lisboa para consultas,
nem é todos os meses que o embaixador português em Madrid entrega
notas de protesto ao Governo espanhol – e Augusto Santos Silva
ordenou uma e outra coisa. Também não é todos os dias que Portugal
faz queixas formais contra o seu vizinho em Bruxelas, nem é
frequente tornar-se pública a ameaça de cancelamento de reuniões,
como o fez Matos Fernandes, ministro do Ambiente. Este é um caso de
enorme sensibilidade – uma jazida de lixo nuclear no rio que corre
até Lisboa é uma questão que merece estudo, cuidado e consulta aos
vizinhos. Os espanhóis não ligaram a nada disso. Falar grosso para
um país amigo é sempre estúpido, excepto quando se reage a uma
afronta. É o caso.
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