O
PSD ameaça tornar-se uma “geringonça”
O
chumbo anunciado da TSU justifica-se não tanto pela substância da
medida mas mais como uma reacção emocional ao desprezo do Governo.
O que faz do PSD um partido volátil, em equilíbrio precário, sem
coerência nem memória. Outra “geringonça”.
Manuel
Carvalho
18
de Janeiro de 2017, 6:29
O PSD não precisou
de fazer alianças contranatura para se transformar por iniciativa
própria numa outra “geringonça”. A reacção do partido à
redução da Taxa Social Única (TSU) é um monumento à volatilidade
política, uma homenagem à incoerência programática, um apagamento
da memória, uma vénia ao oportunismo, uma submissão à vertigem do
equilíbrio instável, que ora o leva a ser quem é, ora o move a
procurar identidades alternativas que lhe permitam dizer “eu
existo”. A apresentação de tecnicalidades pertinentes ou as
farpas justas que o PSD tem lançado a um Governo estranhamente em
paz com os aliados que lhe estragam os planos e cinicamente em guerra
com o principal partido da oposição não iludem o essencial: a
credibilidade e a coerência do partido ficaram em causa com o
anunciado chumbo à descida da TSU. O PSD regressou ao passado e
tornou-se um partido de humores. Por estes dias mostra-se irritadiço,
instável, nervoso, agressivo, sem desígnio, projecto ou identidade
programática perceptíveis, capaz de dar cabo da Concertação
Social mais por birra do que por divergência substancial. Razão tem
Marques Mendes: este é o maior erro de Passos desde que está na
oposição.
Vamos por partes,
começando onde se deve começar: no aumento do salário mínimo. Num
mundo ideal, como o que propõe o PSD, o aumento de 37 euros deveria
obedecer aos critérios de uma economia sã – a produtividade, a
inflação e o crescimento. Mas Portugal vive uma situação de
emergência. O salário mínimo vale hoje proporcionalmente menos do
que em 1974. A pobreza atinge um em cada dez trabalhadores. Haver uma
política voluntarista para o salário mínimo é um acto banal de um
Governo de esquerda. Difícil era levá-lo à prática em
concordância com os patrões. É aqui que entra a redução da TSU.
Não era a primeira vez que a TSU era chamada a financiar o aumento
do salário mínimo. E desta vez o patronato será responsável pelo
aumento de 30 euros, cabendo sete euros ao decréscimo de 1,25% da
TSU. Há neste acordo um certo artificialismo? Há. Há um risco para
a Segurança Social já de si debilitada? Sem dúvida. Mas há nos
seus termos um bem precioso: uma política activa em favor dos
trabalhadores mais pobres, feita pelo consenso entre os patrões e
uma parte dos sindicatos.
Como seria de
esperar, o Bloco, o PCP, os Verdes e a CGTP mantiveram a sua
coerência e estão contra o acordo. Para eles, o mundo é
brutalmente simples: trabalhar é um direito e pagar salários é um
dever dos patrões imune a conjunturas ou às condições da
tesouraria. O Governo ficou a flutuar com a vitória conseguida na
“feira de gado” da Concertação Social e, sabendo da hostilidade
da sua base de apoio, esperava que o PSD lhe desse a mão na hora
“H”. Uma atitude que revela arrogância e desprezo. E torna
cruelmente nítida a inconsistência de uma solução política que
obriga o Governo a governar por metade, por expedientes, caso a caso,
sem margem para opções de fundo em matérias sensíveis como a
política económica ou de rendimentos.
Apesar desta triste
realidade, o PS tinha razão em alimentar expectativas em relação
ao apoio do PSD. O PSD é o inventor da fórmula. O PSD já a aplicou
em 2014 e absteve-se de chumbar uma descida da TSU de 0,75% este ano.
O PSD chegou a pedir que o corte na taxa agora decidido fosse
aplicado às instituições de solidariedade social, o que foi aceite
pelo Governo. O PSD é o partido que mais se bateu pela Concertação
Social. O PSD é o partido que mais sensibilidade tem manifestado em
relação às necessidades do tecido económico. Esperava-se pois que
Passos barafustasse, que exigisse alterações no Parlamento, que
denunciasse o voluntarismo da política do Governo. Mas não se
esperava que pudesse ferir de morte o acordo. Porque em causa não
está uma divergência programática. Como Paulo Rangel bem
reconhece, “não está em causa – ao invés do que muitos já
discorreram com estrondo – a questão substantiva do acordo”. O
que está em causa é uma irritação, uma reacção emocional ao
desprezo com que o PS encarou o papel do PSD neste drama. Muito pouco
para fazer cair um acordo feito em sede da Concertação Social.
Passos talvez
consiga animar os seus incondicionais ou reunir o rebanho tresmalhado
– caso de José Eduardo Martins. Mas vai ser-lhe difícil explicar
a comunhão com a esquerda da esquerda, defender-se das críticas dos
empresários, sindicatos ou instituições do sector social que lhe
são próximos ou responder aos barões do partido que depressa se
insurgiram contra tamanha heresia. Se Passos tivesse dito que o
acordo devia ser melhorado, criando travões para que as empresas não
abusem dos salários mínimos ou procurando alternativas para
proteger a Segurança Social, teria marcado pontos. Agora, dizer que
o partido chumba a TSU porque não está para ser “bombeiro da
geringonça”, como o disse Luís Montenegro, é regressar ao tempo
da politiquice barata na qual o interesse partidário sobrelevava o
interesse geral do país. É, como escreveu Silva Peneda, um acto de
“puro tacticismo político, no qual nem o património passado do
partido nem o interesse da economia nacional estiveram presentes”.
Ligado ao Bloco e ao
PCP, o PSD integra-se agora numa aliança espúria que serve apenas
para provar que a política portuguesa se tornou ela própria uma
interminável “geringonça” em que a previsibilidade é
inexistente, a lógica improvável e os programas relativos. Não
sabemos como irá acabar esta história. Talvez António Costa
invente uma solução inesperada, sabidos que são os seus talentos
para tirar coelhos da cartola. Talvez o episódio mostre que nem os
seus poderes mágicos bastam para alimentar uma coligação tão
natural como um cocktail de água com azeite. Os danos estão à
vista e as suas consequências inevitáveis. O Governo recebeu um
cartão amarelo que pode inverter o ascendente na agenda que até
agora teve sobre o Bloco, os Verdes e o PCP, os partidos que, no meio
da algazarra, são os únicos que parecem saber o que querem. O CDS
espera, matreiro, para ver como acaba a confusão, e tenderá a jogar
com o baralho que tiver mais trunfos.
E o PSD? O PSD
tenderá a ser visto como o promotor do desconcerto social, o idiota
útil do Bloco e do PCP numa guerra contra os patrões, como um
partido que esgotou a sua paciência para ser oposição, que não
olha a meios para deitar o Governo abaixo. Nem que para isso tenha de
rasgar alguns dos seus mais preciosos pergaminhos. Os da proximidade
ao mundo da economia privada. Ou os que sustentam a importância de
acordos na Concertação Social para evitar que o país fragilizado
se esfrangalhe ainda mais.
Sem comentários:
Enviar um comentário