Reabilitação
ou comercialização de 30 monumentos nacionais?
Na
realidade, o que a maioria destes imóveis (que por alguma razão se
encontram classificados) necessita é de um conjunto de ações de
conservação e restauro capazes de se articularem, de forma
ajustada, com os novos usos e não obras de autor a competirem com o
que realmente interessa.
MARIA
RAMALHO
19
de Janeiro de 2017, 6:03
“Portadores de uma
mensagem espiritual do passado, os monumentos históricos de um povo
constituem um testemunho vivo das suas tradições seculares.”
ICOMOS, Veneza,
1964.
Num artigo do jornal
PÚBLICO do passado dia 28 de dezembro foi utilizada como título uma
frase que, na realidade, realça a questão principal quando se
discute a afetação, para uso turístico, de 30 monumentos: “ (…)
É vital definir o que se quer salvar”. A ideia subjacente à
afirmação é que realmente este conjunto muito expressivo de
edifícios históricos (quinze classificados como Imóveis de
Interesse Público e seis como Monumentos Nacionais) fica em risco de
sofrer uma intervenção de tal modo radical que se torna urgente
definir o que é mais importante. Como tivemos ocasião de defender
em artigo de opinião neste jornal em 2014 (30 de outubro), o debate
sobre os modelos de uso ou gestão dos bens culturais que são
propriedade do Estado deverá colocar-se, em primeiro lugar, ao nível
das “ideias” e dos “valores”, ou seja, definir o que se
entende e o que se pretende do património cultural português, se
estes bens devem ser olhados como um ativo ou produto que deve ser
rentabilizado à custa da sua descaracterização, ou se, pelo
contrário, deverão, em primeiro lugar, ser olhados como aquilo que
são, “testemunhos com valor de civilização ou de cultura” (Lei
de Bases do Património Cultural).
Consultando a
informação disponível sobre o Programa Revive do Turismo de
Portugal, verifica-se que este grande conjunto de bens culturais é
encarado simplesmente como um qualquer valor imobiliário ou um mero
ativo económico, não esquecendo, no entanto, a sua mais-valia (em
termos de negócio), do valor histórico subjacente, ou seja, a
possibilidade dos investidores contarem, desde logo, com um belo
enquadramento cénico. Mas se é impressionante o património que
está em jogo, mais impressionante é ver também os números já
avançados para este programa que o Estado, através do Turismo de
Portugal, pretende lançar – 150 milhões de euros - que vão
diretamente para as mãos de privados para que, durante pelo menos 50
anos, se encarreguem da sua gestão. Neste pacote estão monumentos
associados a zonas verdes importantes, algumas sensíveis em termos
ecológicos, áreas arqueológicas relevantes e diversos conjuntos
edificados como o Mosteiro do Lorvão ou o Castelo de Portalegre
entregues, por mais de duas gerações, à iniciativa privada (exceto
as igrejas), quebrando-se assim o paradigma que os monumentos
nacionais com valor identitário devem ser, em primeiro lugar,
usufruídos pelos cidadãos em geral.
Observando este
esfusiante movimento em torno dos listados poderemos recuar a um
outro programa semelhante, mas mais antigo, o programa das “Pousadas
de Portugal” e verificar o que na realidade se passou. De facto,
foram necessários muitos anos e muitos erros também, para se
compreender que dificilmente dentro de um edifício histórico cabe
um estabelecimento hoteleiro ou qualquer outro tipo de programa
semelhante que se pretenda razoavelmente rentável, sem que com isso
não se condene, de forma irreversível, o imóvel que se diz
pretender reabilitar. A propósito das “Pousadas de Portugal”
muito se discutiu, quer em termos académicos, quer cívicos, sobre
como conseguir compatibilizar novos usos, rentabilidade e salvaguarda
dos monumentos. Foi, de facto, um longo percurso, hoje aparentemente
esquecido num país cada vez mais desmemoriado como é o nosso, desde
as intervenções pseudo-historicistas até ao uso dos monumentos
como pretexto para a afirmação de obra de autor, ou seja, desde os
anos 30 do século passado numa época de exaltação dos valores
pátrios pela mão de António Ferro, até ao seu final, já numa
fase de declínio com o fecho de muitas unidades e a concessão de
outras, as mais rentáveis, a um grupo hoteleiro privado (Grupo
Pestana).
Visto este longo
historial muitas questões se colocam: Como se explica que, depois de
tanto investimento público, estejam várias destas pousadas fechadas
e outras com problemas de ocupação? Como se explica que se tenha
perdido o rasto do importantíssimo espólio artístico (mobiliário,
pinturas, esculturas etc.) que as mesmas encerravam? Como será
possível retirar lucros de imóveis tão complexos, como delicados,
a exigirem uma manutenção tão especializada e dispendiosa? Tendo
em mente estas questões julgo que será agora mais fácil olhar para
a famosa lista e rapidamente chegarmos à conclusão que certamente
quem sairá neste negócio mais prejudicado será o Estado, caso o
negócio corra mal, bem como os cidadãos impedidos de usufruir os
espaços já devidamente turistificados a não ser pagando, quando na
realidade os ajudaram antes a pagar.
Se a análise for
correta e não contaminada por toda a propaganda política e
comercial a que agora se assiste, facilmente se chegará à conclusão
que, para a maior parte destes 30 imóveis, será muito escassa a
possibilidade de compatibilizar negócio e proteção do património,
como já antes o foi e em circunstâncias bem mais favoráveis.
Veja-se, por exemplo, o caso da Pousada no Mosteiro de Santa Maria do
Bouro que, parecendo ser um puro restauro, na realidade não o é,
sendo o próprio arquiteto Souto Moura a revelá-lo quando
sistematicamente aponta os diversos atentados patrimoniais que teve
de cometer face às exigências do programa, pois para ser rentável
e para cativar os clientes (aqueles que dão lucro) é necessário
rebentar com a escala do existente, demolir, desmontar, remontar,
inventar... Só quem nunca teve a oportunidade de visitar um
estaleiro de obra destinado a adaptar para uso turístico um imóvel
histórico, é que poderá ainda ter ilusões. Ou o programa é
minimalista e verdadeiramente protetor das pré-existências e daí,
dificilmente se retirará grande lucro, ou então será sempre pouco
respeitador do “espírito do lugar”.
Depois de tudo isto
e não querendo fugir à magna questão: então o que fazer com eles?
Atrevo-me a apresentar cinco reflexões, tendo em mente que existe
financiamento público disponível para investir na recuperação
deste património:
Como primeira
consideração partiria da noção radical, mas que deverá ser
equacionada, de que um monumento, dependendo sempre da sua tipologia,
não tem que obrigatoriamente ser “salvo” por qualquer programa,
na errada ideia que mais vale fazer mal do que nada fazer, ou que
tudo tem que ter uma utilidade ou, menos ainda, que tudo tem de ser
rentável. Na Irlanda, por exemplo, é possível visitar dezenas de
monumentos religiosos que foram apenas consolidados, mostrando-se
assim na sua mais completa nudez, ostentando todas as suas belas
marcas da passagem do tempo, mas não sendo, por isso, menos
visitados ou amados.
Segunda reflexão,
um edifício histórico tem sempre de ser alvo de um “Plano
Diretor” assente, antes de mais, num profundo estudo dos seus
contextos (histórico, arqueológico, artístico, geográfico,
social, etc.) e num imprescindível registo gráfico do edificado
acompanhado de uma necessária análise do âmbito da Arqueologia da
Arquitetura antes mesmo de se realizar qualquer tipo de intervenção.
Neste labor, nesta incontornável exigência, o papel das tutelas do
património tem de ser exemplar e perfeitamente independente de
quaisquer tipos de pressões, definindo, com grande rigor, o que pode
e não pode ser executado. Igualmente neste ponto os cidadãos devem
ter um papel ativo e exigir que se cumpram as normas nacionais e
internacionais, instrumentos legais criados para garantir a
salvaguarda da autenticidade e da integridade deste tipo de bens.
Terceira observação,
um programa de valorização de um imóvel com valor histórico, não
deverá ser apenas dirigido a uma única função, neste caso
turística. Será um erro crasso procurar garantir a subsistência
dos valores patrimoniais em causa ou até mesmo o sucesso económico
do projeto, se se tiver em mente apenas um tipo de uso.
Quarta reflexão, os
novos usos devem, em primeiro lugar, ser encontrados nas
caraterísticas e necessidades reais das comunidades que lhe estão
próximas, a sua provável utilização turística, que não se
propõe que seja esquecida, deve ser apenas uma das várias
possíveis, sobretudo em imóveis com a grandiosidade de um antigo
Mosteiro, possibilitando-se o acesso de mais cidadãos, empresas ou
ONG aos imóveis escolhidos, e oferecendo também a vantagem das
autarquias estarem mais envolvidas no processo. Julgo que se existe
dinheiro, por parte do Ministério da Economia para investir,
deveremos todos nós cidadãos exigir que ele seja bem aplicado e
que, caso o negócio falhar, não fiquem os encargos maiores “os
Monumentos Maus” para o Estado e os restantes para os privados, mas
sobretudo que não fiquem também, no final de todo este processo, um
punhado de monumentos reduzidos a meros contentores sem uso e sem
história.
Quinta e última
observação, não se resolve o problema entregando o projeto a um
qualquer “arquiteto estrela”, como se de uma verdadeira “via
verde” se tratasse, capaz de resolver, apenas com o seu nome bem
cotado no mercado, todos os problemas relativos à preservação dos
espaços. Na realidade, o que a maioria destes imóveis (que por
alguma razão se encontram classificados) necessita é de um conjunto
de ações de conservação e restauro capazes de se articularem, de
forma ajustada, com os novos usos e não obras de autor a competirem
com o que realmente interessa.
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