O
mundo (ainda) não sabe o que esperar de Donald Trump
A
Europa enfrenta a sua prova de vida. Xi Jinping prepara-se para
ocupar o espaço que ficar vazio. Putin esfrega as mãos de contente.
20 de Janeiro de
2017, 6:30
Há oito anos,
milhões e milhões de pessoas assistiam em directo à tomada de
posse do primeiro Presidente afro-americano da História dos Estados
Unidos, no termo de uma campanha que fez dele uma estrela
internacional. Depois de George W. Bush, o mundo contemplava uma
América de novo luminosa e um Presidente capaz de alimentar a
esperança entre “os homens de boa vontade”, na expressão
perfeita de Pierre Hassner. Hoje, porventura os mesmos milhões
olharão para a tomada de posse do homem mais poderoso do mundo com
perplexidade e preocupação. Mas será, indubitavelmente, em Berlim,
Paris ou em Bruxelas, em Pequim e Nova Deli, em Havana ou em
Varsóvia, no Cairo ou em Teerão que o seu discurso inaugural será
acompanhado com a maior atenção. Não foi sequer preciso que
entrasse na Casa Branca para que o mundo se visse subitamente
confrontado com uma visão do papel da América que rompe
abruptamente com a política externa americana desde o fim da II
Guerra.
Trump prometeu
rasgar o legado dos seus antecessores em quase todos os domínios da
esfera internacional. Dos acordos de comércio livre às alterações
climáticas, passando pelas relações com as grandes potências
mundiais ou com os seus aliados mais próximos. Deixou um rasto de
imprevisibilidade que é o pior que pode acontecer à ordem
internacional quando ele vem da única superpotência.
O grande timoneiro
Feliz ou infeliz
coincidência, tivemos na última terça-feira o retrato pouco
animador do que pode ser esse mundo. Em Davos, a maior delegação
chinesa de sempre, liderada pelo Presidente Xi Jinping, conseguiu
marcar da forma mais inesperada o evento anual que reúne as elites
mundiais para tirar o pulso à economia e às grandes tendências
políticas dominantes. Xi fez o discurso que marcará este encontro.
Apresentou-se como o grande paladino do comércio livre, elogiou a
cooperação entre os EUA e a China, que souberam resistir “à
chuva e ao vento”, prometeu que não faria uma guerra cambial
desvalorizando o renminbi. Deixou um bom conselho aos que defendem o
proteccionismo: no fim, ninguém vence, apenas há perdedores.
Politicamente, o seu discurso, mesmo que surpreendente, indica que a
China não tenciona perder a oportunidade aberta por uma eventual
retirada dos Estados Unidos da cena internacional, para preencher o
vazio. Trump fez-lhe o favor de anunciar que rasgará a Parceria
Transpacífica de livre comércio, que Obama negociou com os países
da Ásia-Pacífico, menos a China.
As suas palavras
estão, obviamente, muito longe da realidade. Xi concentrou nas suas
mãos mais poder do que algum dos seus antecessores, à excepção de
Mao. Prometeu seguir um novo modelo de desenvolvimento económico
mais apostado no crescimento do consumo interno do que nas
exportações. Sabe que as fragilidades da economia chinesa o obrigam
a tentar por todos os meios uma “aterragem suave” para uma nova
era de crescimento que já não será de dois dígitos. O seu
interesse pela globalização é fácil de explicar. Foi ela que
permitiu à China desenvolver a sua economia ao ponto de conseguir
retirar mais de 400 milhões da pobreza e criar uma classe média com
um notável poder de compra. Sabe que a legitimidade do Partido
Comunista Chinês depende da melhoria de vida das pessoas. A
“ascensão pacífica” que marcou os anos de Deng até
recentemente, subordinando tudo ao crescimento, deu lugar a uma
“ascensão menos pacífica”, através da qual a China quer
reivindicar um papel muito mais activo na condução das grandes
questões internacionais. O Monde chamava-lhe ontem o “Grande
Timoneiro do comércio livre”.
Putin e as
prostitutas
Ao mesmo tempo que
Xi surpreendia o mundo com a sua linguagem poética (é típica do
discurso chinês), em Moscovo, Vladimir Putin dava uma conferência
de imprensa para desvalorizar o relatório secreto segundo o qual
Moscovo tem na sua posse formas de chantagear o próximo Presidente
americano. Quem é que acredita que “Trump chegou a Moscovo e foi
logo a correr encontrar-se com prostitutas russas?”. “É um homem
adulto e, para além disso, durante muitos anos organizou concursos
de beleza, socializando com as mais belas mulheres do mundo”. No
mínimo, um discurso surreal sobre um Presidente americano.
Putin foi o grande
vencedor das eleições americanas. Não apenas porque está
praticamente confirmada a sua “intervenção” na campanha
eleitoral através de pirataria informática, mas porque encontrou no
novo Presidente um parceiro que parece estar disposto a iniciar com
ele uma nova relação de cooperação, deixando para trás os anos
em que Obama e Merkel o obrigaram a pagar o preço da anexação da
Crimeia. Outros Presidentes antes dele aproximaram-se de Putin. Bush
chegou mesmo a dizer que o tinha olhado nos olhos e visto uma boa
alma. Obama tentou o reset logo em 2009 e presidiu a uma cimeira da
NATO (em Lisboa) destinada a pôr definitivamente cobro à Guerra
Fria. O que Trump propõe é muito diferente. É uma parceria
económica e política que passa por cima da Europa e dos seus
principais aliados, sem qualquer preocupação com a sorte daqueles
que o Presidente russo ameaça directamente. Admitindo que há uma
ideia política que preside a esta simpatia, ela será fazer da
Rússia um aliado e da China o inimigo principal.
No Pacífico, tudo
de novo
Trump conseguiu num
segundo pôr em causa a política americana sobre o reconhecimento de
uma só China, com um telefonema para a Presidente de Taiwan que
enfureceu Pequim. Xi mostrou em Davos que vê a sua eleição também
como uma oportunidade. Obama via na China o maior desafio estratégico
que o seu país e o mundo enfrentam no longo prazo. Tratou de
assegurar aos seus aliados regionais que continuaria a ser um
“potência asiática”, com a sua presença militar no Pacífico.
Reforçou a cooperação militar com o Japão e continuou a garantir
a segurança da Coreia do Sul perante a crescente ameaça nuclear de
Pyongyang. Tudo isto, que as autoridades chinesas viram como uma
tentativa de impedir a sua afirmação internacional, não o impediu
de manter a porta aberta à cooperação com Pequim, que teve o seu
momento alto na Cimeira do Clima em Paris. Trump avisou os aliados
regionais que tinham de se preocupar mais com a sua própria
segurança. Incitou-os a construírem a sua própria bomba nuclear.
Os pequenos países que rodeiam a China pelo Leste, do Vietname à
Tailândia, passando por Singapura, temem a sua crescente presença
militar e a sua nova agressividade. Sem os Estados Unidos não teriam
outro caminho senão estender-lhe a mão. Também eles esperam
ansiosamente ouvir Trump dizer ao que vem. Os analistas não
acreditam numa retirada. Philip Golub, professor da universidade
americana de Paris, diz ao Monde que os EUA são “uma potência do
Pacífico desse o século XIX e sobretudo depois da II Guerra”.
“Têm na região interesses estratégicos de primeiríssima
importância”, diz o académico francês. Uma retirada nesta
altura, “quando a China se afirma como grande potência” seria um
desastre.
Mas a ruptura mais
violenta pode estar reservada para a Europa. Durante 60 anos, a
aliança transatlântica foi crucial para as democracias europeias.
Os dois lados partilhavam os mesmos valores e, em boa medida, os
mesmos interesses. A Aliança Atlântica garantiu a segurança
europeia durante a Guerra Fria e continuou a fazê-lo depois.
Sobreviveu a todas as crises que podiam ter afectado a sua coesão.
Depois da Guerra Fria, Trump não é o primeiro Presidente a querer
que os europeus paguem mais pela sua própria segurança. Mas, mais
do que isso, a América funcionou como uma “potência europeia”,
apoiando a integração e garantindo ao longo dos anos que nenhum
país se sentisse ameaçado por outro. Mergulhada numa crise
existencial de uma dimensão inédita, a Europa enfrenta nas piores
condições a sua derradeira “prova de vida”. Trump põe tudo em
causa. A NATO, que considera obsoleta, a unidade europeia na qual não
vê qualquer sentido, os automóveis alemães que, alegadamente,
enchem as ruas de Nova Iorque. De uma penada, o novo Presidente põe
em causa “os dois pilares da estratégia americana nos últimos 70
anos, a União Europeia e a NATO”, escreve Josef Joffe no Guardian.
É muito para digerir.
Na entrevista que
deu ao Times e ao Bild no passado fim-de-semana, Trump elogiou o
"Brexit" e disse esperar que outros países lhe sigam os
passos. Nunca, mas nunca, os europeus ouviram tal coisa de um
Presidente americano. O seu discurso visa particularmente a Alemanha.
“Olhem para a União Europeia e vêem a Alemanha. Basicamente, é
um instrumento da Alemanha.” Classificou de “erro catastrófico”
a política de abertura aos refugiados. Arnaud Leparmentier escreve
no Monde que o Presidente “atiça o mesmo vento mau dos populistas
de todas as origens, Le Pen, Farage e consortes - a germanofobia”.
O seu entendimento
com Putin deixará Merkel em maior dificuldade para manter a frente
unida contra a Rússia, que Obama ajudava a suportar. Os Bálticos
ficarão mais expostos. Putin pode cair mais depressa na tentação
de uma nova aventura bélica. Trump diz que a Aliança é obsoleta
porque “não está a tratar devidamente do terrorismo”. Alguns
governos europeus, incluindo a Alemanha, insistem em que chegou o
momento de a Europa investir a sério na sua própria defesa. Não
será fácil, num clima em que a desunião perdura sobre o destino da
própria Europa. A retirada do Reino Unido é particularmente nociva
neste domínio. François Hollande está de saída e na corrida ao
Eliseu estão políticos de direita e de esquerda que vivem bem com
uma aproximação à Rússia e um distanciamento da América,
retomando a velha linha gaullista. Aos amigos de Putin somam-se agora
os amigos de Trump. Dificilmente a Europa vencerá este desafio.
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