José
António Cerejo: “Não deve haver relações privilegiadas entre
jornalistas e poderes. Mas há”
Carolina Branco
(Media Lab - U.Nova), Foto: Zita Moura (Media Lab – Universidade de
Coimbra)
Está reformado
desde junho mas, nas suas palavras, continua a ser jornalista.
Durante quase 30 anos, José António Cerejo foi grande repórter no
jornal “Público”. É conhecido pelo trabalho na área da
investigação, na qual tratou casos como o do Freeport e escândalos
na política. Veio ao segundo dia do 4º Congresso dos Jornalistas e
não saiu sem nos dar uma entrevista.
Porque é que
decidiu reformar-se?
Estava muito cansado
e faltava-me paciência. Sentia cada vez mais dificuldades em seguir
os ritmos que o tempo presente impõe. Esses ritmos tinham-se
tornado, para mim pesados. Não é que exigissem que seguisse a
velocidade a que se tem de trabalhar, hoje em dia, nas redações.
Não me exigiam porque, bem sabiam, eu fazia outro tipo de trabalho
que não era compatível a esse ritmo. Mas eu próprio não me sentia
bem a ter tempo para fazer as minhas coisas e ver os meus camaradas
da redação, sobretudo os mais novos, a ganharem misérias e a
trabalharem loucamente a toda a hora. E, com os meus 1800 euros
líquidos, que recebia no jornal, fazia-me impressão.
Havia ainda outra
coisa. Foi um fenómeno que entretanto foi esbatido mas, durante
muitos anos, fazer o trabalho que eu fazia criava dificuldades, até
de relacionamento, entre mim e a hierarquia do jornal. Esses
trabalhos, embora gostassem de os publicar, tentavam publicar depois
de os tentar expurgar ou levar-me a expurgá-los de aspetos que eles
tinham o direito de não partilhar e de não aceitar mas que, para
mim, eram muitas vezes sentidos como formas de condicionamento.
Aconteceu-me muitas vezes, com todas as direções que o “Público”
teve, desde o princípio mas, sobretudo, nos últimos 15 anos de
redação. Muitas vezes tive que discutir demasiado coisas que para
mim não justificavam a discussão e o cansaço. Tive fricções
porque em determinadas matérias [as hierarquias] diziam que não
estava suficientemente fundamentado, mas para mim estava.
Seria medo?
Sim, medo de assumir
as chatices que dava a publicação de certas coisas. Nos últimos
dois anos, no Público, fui ganhando uma margem de manobra. Fazia
umas sugestões mas não me estava a massacrar como me aconteceu com
coisas que eu sabia que por vezes eram motivadas por fatores como a
proximidade entre as hierarquias e determinadas entidades ou pessoas
que eram visadas em coisas que eu escrevia. O que também é humano.
Eu percebo bem que
houvesse pessoas que tivessem uma relação privilegiada. Eu acho que
não deve haver relações privilegiadas entre os jornalistas e estes
poderes mas há essa tradição. É algo que, para mim, é muito mau
no jornalismo português que é a excessiva proximidade que os
jornalistas têm com os poderes todos. As pessoas muitas vezes
justificam esse tipo de aproximação com a necessidade de estar
próximo de fontes de informação importantes. Eu percebo, mas não
justifica que se vá além do necessário. Por exemplo, os políticos
têm de dar a informação porque têm a obrigação institucional e
constitucional. Os jornalistas não têm de andar sempre atrás deles
para nos dizerem as coisas que, por obrigação legal, têm de serem
ditas. Às vezes, são documentos que deveriam estar publicados que
são de natureza pública.
Zita Moura (Media
Lab - Universidade de Coimbra)
Acha que esse tipo
de relacionamentos pode ser um obstáculo ao jornalismo de
investigação?
Eu acho que é um
obstáculo a todo o tipo de jornalismo. Muitas vezes, os jornalistas
que cultivam este tipo de proximidade com este tipo de fontes de
informação pública, involuntariamente, acabam por ser
instrumentalizados por eles e manipulados. Eles dizem aquilo que
querem, ainda por cima sem darem a cara. Contam as coisas da forma
que querem, quando querem e o jornalista, na maior parte das vezes,
nesse tipo de situações não tem – às vezes tem, mas não a
exerce – a possibilidade de verificar o que aquela pessoa está a
dizer. O tipo está a dar uma versão que é a que lhe interessa a
ele e à facção dele, daquela organização, sob anonimato, e os
jornalistas ficam gratos ao homem que lhes disse aquelas coisas. Se
calhar, no dia seguinte, vão almoçar com ele porque até é um gajo
porreiro. É um problema sério.
Quais são, então,
os obstáculos específicos do jornalismo de investigação?
O primeiro obstáculo
é o desinteresse neste tipo de jornalismo – eu não gosto de usar
o termo “jornalismo de investigação” porque todo o jornalismo
implica investigação. Este jornalismo não é interessante para as
empresas de comunicação social, apesar de muitas vezes as
hierarquias dizerem que é óptimo e que precisamos de fazer mais
disso. Na verdade, nos tempos atuais, essas hierarquias estão
empedradas por estruturas acionistas, estão cada vez mais
concentradas, mais ligadas ao poder económico. Este tipo de
trabalho, quando publicado, suscita muitas vezes problemas das mais
variadas ordens. Desde pessoais, entre o meio que publica a história
e a pessoa que não queria que a história fosse publicada. E, por
vezes, essa pessoa é a tal com quem vamos almoçar.
Este tipo de
trabalhos acarreta, por vezes, problemas institucionais. Um partido
que fica zangado e que depois não quer falar nem com aqueles com
quem se almoça porque o jornal publicou coisas que lhe foram
desagradáveis. Podia falar do Mário Soares ou ao João Soares sobre
os quais escrevi coisas que devem ter sido desagradáveis para eles.
Em retaliação das coisas que eu publicava, muitas vezes com
dificuldade, fecharam praticamente as portas, durante anos a outros
colegas meus do “Público”. Não só a mim. Não falavam, não
queriam falar. O “Público” não. Não davam entrevistas. Mesmo
fora da área política. Vê-se muito no futebol, por exemplo. Esses
tipos recusam os jornalistas daquele jornal nas conferências de
imprensa, no campo de futebol, não atendem os telefones.
Depois há problemas
associados a estes que são os processos judiciais, os pedidos de
indemnização. Aliás, tenho um processo pendente em tribunal em que
há uma pessoa que pede 500 mil euros ao jornal. Esse valor,
contabilisticamente, é uma chatice para o jornal.
Este trabalho custa
dinheiro e mais dinheiro custaria se fosse feito em condições, se
os jornalistas que o fazem tivessem apoios a nível de consultadoria
jurídica, financeira e noutras áreas quando se está a tratar de
assuntos mais especializados.
Tem alguns artigos
arrumados na gaveta? Ou seja, alguma coisa que quis dizer e não
conseguiu?
Não. Publiquei
muita coisa com alterações propostas e de algum modo impostas pelas
direções, que eu não queria que tivessem sido introduzidas mas que
eu aceitei por achar que mesmo assim valia a pena publicar. Tenho
muitas coisas publicadas envergonhadamente numa página recôndita
para que ninguém desse por isso. Tenho histórias publicadas
parcialmente, porque foi decidido que ocupava muito espaço quando
muitas vezes o motivo não era a falta de espaço. Tenho histórias
de trabalhos que foram abafados no meio de outros. A direção
arranjava embrulhos muito grandes com trabalhos complementares
supostamente do mesmo tipo.
Acha que alguma vez
vai conseguir desligar-se do jornalismo?
Do jornalismo
prático, acho que sim. Para dizer a verdade, não sei. Quando me
reformei, a minha ideia era “não vou fazer mais nada, não quero
mais nada com os jornais e com os jornalistas, não quero mais nada
com a profissão”. Mas não sei responder.
Sem comentários:
Enviar um comentário