Arons
de Carvalho lava mais branco
A
história da ERC durante os governos de José Sócrates é de tal
forma escabrosa e protectora da sua actuação que ela deveria ter
sido encerrada no dia seguinte à sua saída do poder.
João Miguel Tavares
28 de Janeiro de
2017, 6:5
Alberto Arons de
Carvalho assinou há dias no PÚBLICO um texto sobre a Entidade
Reguladora para a Comunicação Social no qual, à semelhança do seu
amigo José Sócrates, tenta sem um pingo de pudor reescrever o
passado, louvando a independência da ERC ao longo dos últimos 11
anos. “Desde o início da ERC em 2006”, escreve Arons de Carvalho
com uma lata que vai de Lisboa a Macau, “constata-se que não
existe qualquer alinhamento partidário ou político ideológico.”
Com “uma única excepção”, diz ele: “A deliberação, em
Junho de 2012, por queixa do jornal PÚBLICO contra o então ministro
Miguel Relvas, em que a divisão entre os dirigentes da ERC
correspondeu à sua origem partidária.” Juro que ele escreveu
isto. Para Arons, a ERC foi sempre absolutamente independente nos
tempos de Azeredo Lopes e de Estrela Serrano, tendo cedido apenas à
partidarite no caso Miguel Relvas, já durante a presidência de
Carlos Magno. A indecência de um artigo como este não pode passar
em claro.
Sejamos
absolutamente cristalinos: a ERC, desde o maldito dia em que foi
inventada, só foi independente e unânime quando foi preciso
deliberar sobre a exibição do filme Grande Moca Meu – A Fuga às
duas da tarde ou sobre o conteúdo da reportagem A Casa da Mãe Kikas
(dois exemplos reais, escolhidos ao acaso). Sobre temas tão
prementes quanto estes a ERC, de facto, decidiu por unanimidade. E
como é esse o género dominante nas “perto de 2500 deliberações”
produzidas entre 2006 e 2016, não chega a ser digno de espanto que
89% das decisões tenham sido tomadas sem engulhos, como se orgulha
Arons de Carvalho. Sim, é verdade: Grande Moca Meu e A Casa da Mãe
Kikas não dividiram o conselho regulador. Mas quando aquilo que
esteve em causa não foi a Mãe Kikas, mas antes Miguel Relvas ou
José Sócrates, a ERC sempre se mostrou extraordinariamente
disponível para lamber a mão ao dono. O conselho regulador não viu
qualquer pressão ilegítima no caso Miguel Relvas, como não viu
qualquer pressão ilegítima em todos os casos (e foram muitos)
envolvendo directa ou indirectamente José Sócrates. Mais: afirmar
que o único acontecimento que deslustra a magnífica reputação da
ERC ocorreu em 2012, insinuando dessa forma que entre 2006 e 2011 a
ERC foi um prodígio de equilíbrio e independência, é uma mentira
tão descarada que Arons de Carvalho deveria ter vergonha de assinar
o seu texto como professor universitário.
A história da ERC
durante os governos de José Sócrates é de tal forma escabrosa e
protectora da sua actuação que ela deveria ter sido encerrada no
dia seguinte à sua saída do poder. Arons de Carvalho fala em
deliberações unânimes quando, na esmagadora maioria das decisões
envolvendo Sócrates, o vogal Luís Gonçalves da Silva, indicado
pelo PSD, votou contra e com badaladas declarações de voto. Em
Setembro de 2010, Gonçalves da Silva acabou mesmo por bater com a
porta, na sequência do caso Manuela Moura Guedes. Talvez Arons já
não se recorde do que ele disse à saída. Eu recordo-me: “A ERC
foi e é, em muitas situações, um obstáculo à liberdade de
imprensa.” Acrescentou ainda que em todos os processos “em que
estava em causa o poder político”, aconteceram “verdadeiras
entorses” às “normas procedimentais”. É a isto que Arons
chama “a independência do regulador face ao poder ou aos partidos
políticos”. Nós levámos com Sócrates durante seis horríveis
anos. Era o que faltava que tivéssemos de levar ainda com Arons de
Carvalho a reescrever a sua história.
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