A
presidência perigosa
É muito cedo para
discutir cenários de catástrofe. Trump deve ser levado a sério mas
ainda não sabemos o que ele vai exactamente fazer.
Jorge Almeida
Fernandes
20 de Janeiro de
2017, 7:3
A presidência de
Donald Trump será manifestamente diferente das anteriores. Entre as
muitas interrogações que suscita, destaco duas: saber se será um
Presidente forte ou vulnerável e o modo como enfrentará as
situações de crise que a sua personalidade e as suas propostas
políticas desde já anunciam.
O discurso inaugural
tem a obrigação de surpreender. A imprevisibilidade é a sua marca,
arma para destabilizar adversários e criar um clima de insegurança.
Não é difícil prever "cem dias" frenéticos, para
desfazer o "legado de Obama" e mostrar que cumpre as
promessas. Trump precisa de ganhar legitimidade e credibilidade. Sabe
que é minoritário e que sobre ele paira uma incómoda "sombra
russa". Tem de subir nas sondagens para se impor ao Partido
Republicano.
Será um Presidente
fraco, enredado nas contradições da sua política ou o "mais
perigoso Presidente da História americana"? Para ser um
Presidente forte tem de dominar o Congresso, o que não é garantido.
Não é um dirigente republicano, é um independente que ganhou as
primárias republicanas. Sem o partido não teria vencido.
É alto o potencial
de conflito com os conservadores republicanos. Um primeiro sinal já
foi dado pela questão do Obamacare. Quando os republicanos começaram
a preparar a sua imediata supressão, Trump avisou-os de que só o
faria depois de estar pronto outro plano de saúde alternativo. Não
quer voltar contra si 18 ou 20 milhões de pessoas. Ganhou as
eleições a prometer empregos e solidariedade social.
O jornalista francês
Antoine de Tarlé denuncia os estereótipos que dominam a opinião
europeia. "O afrontamento não se joga entre um Trump
reaccionário e cripto-fascista e parlamentares republicanos
moderados e razoáveis. A realidade é inversa. Donald Trump é um
populista e um demagogo, mas não é um ideólogo, passou a vida em
Nova Iorque, uma cidade liberal. Ora, o Partido Republicano começou
há 30 anos uma viragem para a extrema-direita, designadamente em
matéria social." Viragem depois radicalizada pela emergência
do Tea Party.
Do ponto de vista
social e de costumes, os concorrentes republicanos nas primárias,
como Ted Cruz ou Marco Rubio, foram muito mais "reaccionários"
do que Trump. Inversamente, a maioria republicana não apoia a
deportação maciça de imigrantes ilegais nem se entusiasma com o
muro mexicano. E muito menos com a sua anunciada política russa. A
aliança de Trump com a nova ultradireita, a "alt-right", e
o seu conselheiro Steve Bannon, é marginal no esquema politico.
Trump tem um
calcanhar de Aquiles: os conflitos de interesses que, em caso de
confronto grave com os republicanos, podem levar à abertura de um
processo de impeachment. Não faltarão pretextos. Estará sob
permanente escrutínio.
America First
Trump não tem uma
estratégia nem um programa articulado. Tem uma ideia: "America
First". Afasta-se da concepção tradicional do "excepcionalismo
americano", assente na crença de que os Estados Unidos são uma
nação diferente e destinada a inspirar e dirigir o mundo. A sua
ideia é outra: fazer uma América maior, arrebatando mais riqueza e
poder do que os outros.
A América combinou
o excepcionalismo com o isolacionismo, recusando envolver-se em
alianças militares permanentes. A II Guerra Mundial marca uma
viragem. Os EUA decidem fundar a Aliança Atlântica e estabelecem
alianças no Oriente, que sobreviveram à Guerra Fria. É este mundo
que Trump aposta destruir. "É um assalto directo contra a ordem
liberal que construímos desde 1945 e o repúdio da ideia de que os
EUA devem liderar o mundo", resume o diplomata americano
Nicholas Burns.
À imagem do mundo
empresarial, propõe substituir as instituições e alianças fixas
uma "diplomacia transacional" — "negócios" ou
acordos temporários segundo os interesses imediatos da América. Um
"negócio" com a Rússia pode sacrificar os interesses e a
segurança de "aliados".
Fez da China o
adversário principal. Admite-se que aceite correr o risco de
desencadear uma guerra comercial com Pequim. O que poderá ter um
preço elevado: não é certo que os aliados tradicionais alinhem com
Washington. Um candidato não precisa de aliados, mas um Presidente
não passa sem eles.
Que é estratégico
e que é expediente táctico nas suas ameaças? Não sabemos. A
questão de Taiwan parece uma forma de tentar arrancar concessões a
Pequim. A atracção por Moscovo também é nebulosa e pode ser
percebida como um "negócio" para reforçar Washington no
confronto com Pequim. Entretanto, a Rússia marca pontos com as
tiradas de Trump contra a Europa, declarando a NATO obsoleta e
augurando a desintegração da UE, definida como rival económica dos
EUA.
Trump é
proteccionista mas não é isolacionista. Pretende manter a
capacidade de intervenção global perante ameaças a interesses
directos americanos e aumentar o seu poderio militar.
Este cocktail
encerra um elevado potencial de conflito. Soam alarmes. O historiador
americano David A. Bell avisa que o populismo foi o contexto que
favoreceu a ascensão de Trump mas que a sua personalidade foi o
factor determinante. Não devemos pensar apenas nas "forças
impessoais" mas no papel de alguns homens na História, escreve
Bell na Foreign Policy.
"Ele tem
potencial para se tornar no mais poderoso Presidente da História
americana. E é também um dos mais imprevisíveis homens jamais
eleitos para o cargo. Não é guiado por uma ideologia sistemática".
A sua determinação, a egolatria, o desdém pela opinião dos outros
ou a dificuldade de escutar os conselheiros agravam a
imprevisibilidade.
"Como reagirá
numa situação de crise? Alguém consegue saber?" Bell enumera
as crises potenciais no mundo de hoje e recorda a crise dos mísseis
em Cuba de 1962. "Nestas decisões, a personalidade de Trump
poderá assumir (…) uma importância histórica mundial. As
personalidades de outros líderes, especialmente Vladimir Putin,
também contarão de forma crítica se entrarem em conflito com
Trump. Se forças impessoais promoveram a ascensão pessoal de Trump,
também é fácil imaginar a sua perturbada personalidade a arrastar
o país para uma queda colectiva."
É muito cedo para
discutir cenários de catástrofe. Trump deve ser levado a sério mas
ainda não sabemos o que ele vai exactamente fazer. Pode ser travado
por um fiasco na economia ou pelo pesado muro das realidades
geopolíticas. Os Estados não são negócios.
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