Balbúrdia
na política externa norte-americana
Nesta
altura — e não apenas por culpa de Trump —, os EUA estão num
dos pontos mais baixos da sua influência no pós-II Guerra Mundial.
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES
2 de Janeiro de
2017, 14:35
https://www.publico.pt/2017/01/02/mundo/noticia/balburdia-na-politica-externa-norteamericana-1756782
1. Se o assunto não
fosse dos mais circunspectos, a fase de transição de Barack Obama
para Donald Trump poderia ser um guião de um filme satírico mais ou
menos hilariante. Nos últimos dois meses de 2016, sucessivos
episódios da política externa norte-americana foram particularmente
desconcertantes. Fizeram-me lembrar uma bizarra sátira aos westerns
feita Mel Brooks nos anos 1970, intitulada em Portugal “Balbúrdia
no Oeste” (Blazing Saddles). O filme estava cheio de situações
insólitas e absurdas que ridicularizavam o falso moralismo, os
preconceitos racistas e a ganância desmedida de partes da sociedade
norte-americana. Num outro plano, mas com muitos traços estranhos e
por vezes quase absurdos, a política externa dos EUA, nesta fase de
transição de poder, tornou-se uma balbúrdia bem mais séria.
2. Os últimos
episódios surgiram ligados ao Médio Oriente e à Rússia. O
Presidente em final de mandato (Barack Obama) e o seu Secretário de
Estado (John Kerry) adoptaram posições de política externa não
usuais, tendo em conta ser uma fase de transição de poder para o
novo Presidente e estas não terem sido concertadas com este. Obama e
Kerry fazem diplomacia a partir da Casa Branca, em Washington, pelos
canais oficiais do Estado. Ao mesmo tempo, dado estarem em final de
mandato, sabem que tomaram decisões que serão mais ou menos
inconsequentes para o seu governo. Por sua vez, o novo Presidente
eleito, mas ainda não em funções (Donald Trump), actua a partir da
Trump Tower, em Nova Iorque. Pelas redes sociais (Twitter) e com
chamadas telefónicas a líderes internacionais, faz diplomacia
paralela (uma contra-diplomacia na realidade). Essencialmente,
propõe-se reverter a política externa de Obama após o dia 20 de
Janeiro de 2017 — data da sua entrada em funções —, em quase
tudo que este fez de emblemático.
3. O Médio Oriente
já normalmente é complexo e propenso à confusão política. Mas,
nesta fase de transição de poder na potência hegemónica, a
situação adquiriu contornos insólitos. Alguns dos aliados mais
importantes dos EUA no Médio Oriente (a Turquia e Israel, a primeira
até membro da NATO), estão em rebelião. A balbúrdia instalada é
propícia a atitudes impensáveis noutros contextos. No caso da
Turquia, o Presidente Recep Tayyip Erdogan, fala cada vez mais grosso
contra os EUA. Acusou a coligação por estes liderada no Iraque e na
Síria de apoiar o Daesh e ter provas disso. Na peculiar concepção
de terrorismo de Erdogan estão incluídos os grupos curdos, a
principal fonte de resistência aos avanços do Daesh, em 2014 e
2015. Ao mesmo tempo que fazia as acusações de apoio ao Daesh (que
os EUA consideraram ridículas e sem fundamento), Erdogan convidava a
Arábia Saudita e o Qatar a participarem na cimeira do Cazaquistão
prevista para Janeiro de 2017. Trata-se de uma iniciativa russa para
a paz na Síria. A isto podemos juntar o cessar-fogo negociado e
apoiado pela Turquia e pela Rússia, que entrou em vigor a 29/12.
Dificilmente um inimigo faria mais para contornar a influência dos
EUA. Mostra cruamente a perda de autoridade da política externa de
Obama e Kerry no Médio Oriente.
4. As relações
entre os EUA e Israel atingiram um dos pontos mais baixos de sempre.
A resolução 2334 (2016) do Conselho de Segurança das Nações
Unidas de 23/12 foi a “prenda de Natal” de Obama e Kerry para
Benjamin Netanyahu. Pela primeira vez, os EUA não vetaram uma
resolução que condena os colonatos israelitas na Cisjordânia e em
Jerusalém Oriental, ou seja, nos territórios conquistados na guerra
de 1967 aos palestinianos. O Primeiro-ministro de Israel, Netanyahu,
acusou Obama e Kerry de terem alimentado a iniciativa nas Nações
Unidas. No meio das jogadas de bastidores, Israel terá abordado a
Rússia para o adiamento da votação. Esta teria mostrado
compreensão dizendo estar pouco satisfeita com o texto da resolução.
(Cinismo de Vladimir Putin e de Sergey Lavrov, pois a Rússia votou
também a favor). Em qualquer caso também aqui a influência dos EUA
está em retrocesso. É politicamente significativo Israel ter
tentado a mediação da Rússia. Esta tornou-se uma potência
incontornável no Médio Oriente, ainda que pagando um preço
relativamente elevado: entre outras perdas, a recente morte a tiro do
embaixador russo na Turquia mostra bem isso.
5. As relações de
Obama e Kerry com Netanyahu sempre foram frias. O fracasso da última
iniciativa de paz, em 2014, e o acordo nuclear com o Irão, em 2015,
deixaram ambos descontentes, embora por razões opostas (os EUA pelo
fracasso da iniciativa de paz no conflito israelo-palestiniano;
Israel pelo acordo sobre o programa nuclear do Irão). No seu último
grande discurso, Kerry acusou o governo de Netanyahu de fazer perigar
os esforços de paz e a solução de dois Estados. Foi essa a
justificação para a abstenção dos EUA na votação da resolução
do Conselho de Segurança de 23/12. Quanto a Trump, na sua diplomacia
paralela pelo Twitter, atacou a política de Obama e Kerry em relação
a Israel, a quem pediu para se “manter forte” pois “20 de
Janeiro está quase a chegar”, ou seja, vai ser revertida. Mas o
seu ataque foi dirigido também às Nações Unidas. A ONU pode
sofrer sérios danos colaterais desta disputa entre Obama e Trump. As
críticas do Partido Republicano à organização são antigas.
Muitos vêem-na como despesista e um empecilho ao interesse nacional
em matéria de política externa. Se Trump estava à espera de um
pretexto para cortar no financiamento da ONU — os EUA suportam mais
de 20% do orçamento, sendo o maior contribuinte —, Obama e Kerry
deram-lhe um perfeito. Se for esse o cenário, António Guterres, o
novo Secretário-Geral, vai liderar uma organização bloqueada em
termos políticos e financeiros.
6. A sui generis
diplomacia do Twitter e de chamadas telefónicas de Donald Trump já
provocou vários sobressaltos, quer nos EUA, quer entre os seus
aliados europeus, asiáticos e do Médio Oriente, quer nos seus
inimigos. O governo de Pequim da República Popular da China ficou
completamente irritado com uma hipotética mudança de posição
sobre a questão de Taiwan (Formosa no nome tradicional em
português). Mas o maior sobressalto internacional foi provocado pela
intenção de modernizar e expandir o arsenal nuclear
norte-americano, até que o mundo “ganhe bom senso”, nas palavras
de Trump. Foi mais uma declaração em rota de colisão com a
política externa e a estratégia de segurança militar de Obama.
Este, várias vezes durante os seus dois mandatos apontou ter como
objectivo a redução do arsenal nuclear. Aspecto curioso: a
declaração de Trump ocorreu no mesmo dia em que Putin manifestou
similar intenção de modernização e aumento das capacidades
nucleares. Nova corrida aos aumentos à vista, a fazer lembrar a
Guerra-Fria com a União Soviética? Talvez não.
7. Na visão do
mundo de Trump, os grandes inimigos são a China, o
islamistas-jihadistas do Daesh e o Irão. A declaração de Trump
parece mais um convite à Rússia para uma parceria na manutenção
da supremacia militar e nuclear, com o objectivo conter os novos
aspirantes a grandes potências mundiais e regionais.
Independentemente dos seus eventuais méritos e problemas que
levanta, esta aproximação à Rússia é, por princípio,
inconcebível para Obama, Kerry, Clinton e muitos republicanos. É
neste contexto que se tem de interpretar a decisão de Obama de
expulsar trinta e cinco diplomatas russos acusados de tentativa de
interferência nas eleições presidenciais de 8/11. A resposta de
Putin, de não retaliar expulsando diplomatas norte-americanos, e de
esperar por Trump iniciar em funções (decisão logo elogiada por
Trump no Twitter), é parte deste jogo estratégico. É mais uma
amostra da bizarra situação de duas políticas externas paralelas
em curso nos EUA. Para já, Putin, indiscutivelmente hábil do ponto
de vista estratégico, é o maior ganhador. Nesta altura — e não
apenas por culpa de Trump —, os EUA estão num dos pontos mais
baixos da sua influência no pós-II Guerra Mundial. 2017 e os anos
seguintes mostrarão se é uma situação conjuntural ou uma
tendência estrutural de declínio norte-americano.
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